Folha de S. Paulo
[RESUMO] Partido
do Real e da modernização do Estado brasileiro, o PSDB por duas décadas
protagonizou com o PT os rumos da política nacional, vangloriando-se de possuir
os mais bem preparados quadros políticos e técnicos do país. Com o mesmo
esmero, suas lideranças dedicavam-se nos bastidores a sucessivas traições e
sabotagens. Denúncias de corrupção e o surgimento de Bolsonaro acentuaram a
crise e rasgaram a superfície de polida competência do partido, que hoje
depende de fusão ou federação com outras siglas para sobreviver.
Era uma manhã de março de
2016 quando o destino tocou a campainha do Palácio dos Bandeirantes, sede do
governo paulista. Aécio Neves,
então senador, recém-desembarcado em Congonhas, atravessava a cidade com uma
comitiva de repórteres. Não vinha para conversar. Queria arrastar o
governador Geraldo Alckmin até a avenida Paulista, onde fervilhava a
maior manifestação pró-impeachment de Dilma Rousseff.
"Isso é uma
armadilha", murmurou o governador, seco, a dois assessores. Sabia que, se
não fosse, os jornais do dia seguinte o carimbariam como o responsável pelo
racha tucano. Suspirou, entrou na van e partiu. No trajeto, os dois homens, que
um dia representaram o futuro do país, viajaram lado a lado, calados, como
estranhos no mesmo velório.
Na Paulista, antes do cheiro
de fritura dos ambulantes, vieram as vaias. Cartazes pediam cadeia. Um
manifestante gritou "corrupto" diretamente a Aécio. Para quem
conhecia o ninho tucano por dentro, era o início do fim de um projeto que
prometera civilizar a política nacional —e acabava linchado no meio da rua.
Alckmin via nas
pedaladas fiscais atribuídas ao governo Dilma não um crime, mas uma farsa.
Dizia aos próximos que, sob aquele microscópio ideológico, nenhum prefeito
passaria sem arranhões. Para ele, o impeachment era juridicamente frágil e
politicamente perigoso, um precedente que poderia ser usado contra qualquer
governante.
A irritação do governador não era só jurídica. O PSDB começava a flertar com um terreno que jamais fora o seu: polarização sem freios, rua ensandecida, populismo do ódio. "Já não era um movimento que nos cabia bem", admite hoje Aécio Neves, em entrevista à Folha. "Era uma coisa esquisita, radicalizada."
Quem também enxergou o erro,
tarde demais, foi Aloysio Nunes Ferreira, vice na chapa de Aécio em 2014.
"Naquele processo de impeachment, estávamos misturados com gente da
extrema direita. Quando surgiu um líder de extrema direita, o eleitorado foi embora."
Da queda de Fernando Collor
(1992) à chegada de Jair Bolsonaro ao Planalto (2019), o Brasil deslizou para a
direita nos costumes, mas não gerou um líder conservador à altura do palco
nacional. O PSDB ocupou esse vácuo como figurante de luxo. Colheu votos, mas
perdeu a alma. Quando Bolsonaro enfim surgiu, o público voltou ao seu
"galinheiro ideológico".
A travessia do impeachment à
pandemia foi uma sangria lenta. O partido definhou em discurso, quadros e
votos. Alckmin filiou-se ao PSB e virou vice de Lula. Fernando Henrique Cardoso
e José Serra recolheram-se. Aloysio
saltou do barco, assim como os governadores Eduardo
Leite e Raquel
Lyra. Sobrou Aécio, condômino solitário de uma legenda vazia.
O desastre estourou nas
urnas: 59 deputados federais eleitos em 2002; 43 em 2006; 53 em 2010; 54 em
2014; 29 em 2018; míseros 13 em 2022. Testemunhei essa derrocada de perto, mais
especificamente de 2010 a 2018, nas campanhas presidenciais de Serra em 2010 e
de Alckmin em 2018. Entre essas duas datas, fui secretário de comunicação de
Alckmin no governo do Estado de São Paulo.
Hoje,
o PSDB vaga como um zumbi institucional: respira por aparelhos
fornecidos pela cláusula de barreira e só se mantém de pé graças à esperança de
uma fusão ou federação que lhe garanta tempo de TV e verba do fundo partidário.
A contradição de origem
O PSDB já foi o partido do
Plano Real e dos quadros mais bem preparados da política brasileira. Durante
duas décadas, encarnou o espírito do diálogo e do consenso. Entre 1994 e 2014,
o Brasil viveu sob um duopólio imperfeito. Os tucanos sustentaram seu lado da
equação com técnica, compostura institucional e ambição modernizante.
Esse foi o retrato traçado,
com certa nostalgia contida, pelo vice-presidente da República. Fundador do
PSDB, Alckmin disse à Folha que o partido foi "promotor
de grandes avanços sociais e econômicos", defensor intransigente da
democracia. Falava como quem olha para trás com gratidão. Sem ressentimento,
sem deslealdade. Talvez apenas com uma ponta de melancolia.
Atrás da superfície polida
da competência, o PSDB carregava, desde a origem, uma contradição estrutural.
Nunca foi exatamente um partido. Era mais uma federação de caciques, amarrados
por conveniências eleitorais e antipetismo comum. Uma social-democracia sem
sindicatos. Um clube de notáveis que confundia excelência técnica com
legitimidade popular. Seu maior trunfo, o rigor gerencial, foi também seu
limite. Sobraram planilhas, mas faltou povo.
Em 2015, FHC
parecia ter compreendido o impasse com a clareza dos que já não
disputam o poder. Essa lucidez se manifestava nas sessões de pôquer que
promovia em seu apartamento, ou no de João Rodarte, jornalista e parceiro de
cartas, das quais eu participava.
As apostas eram modestas:
quem vencia saía, no máximo, com R$ 200. FHC não blefava. Seu hobby era
desmascarar os blefadores —como se aquele jogo lhe oferecesse um simulacro
controlado da política real, onde tudo era engano, mas ao menos havia regras.
À volta da mesa, copos
d'água e silêncios longos acompanhavam alguns dos cérebros mais afiados da vida
intelectual brasileira —o sociólogo
Leôncio Martins Rodrigues, o
historiador Boris Fausto.
Em meio às rodadas, FHC
deixava escapar, entre ironias e desabafos, seus diagnósticos sobre o partido
que fundara. "A maternidade do PSDB encerrou suas atividades", dizia,
meio rindo, meio resignado. "Não nasce mais ninguém. São os mesmos desde
1994. Vão todos ficando velhos. O único que não envelhece aqui sou eu."
Em outra conversa, o
ex-presidente confessaria: "Se voltasse no tempo, teria me dedicado muito
mais ao PSDB". Soava como um pecado venial, mas ecoava como um epitáfio
precoce de um projeto que envelheceu antes de aprender a se renovar.
A ironia era afiada: o
sucesso do Plano Real destruiu qualquer senso de urgência pela
construção partidária. Com FHC no Planalto e os tucanos distribuídos por
governos estaduais e prefeituras, quem precisava de diretórios fortes,
convenções vibrantes ou quadros novos? O poder embriagava. A gestão
deslumbrava. Mas não deixava descendência.
2004 e 2008: A traição
paulistana
A sequência de
autossabotagens selou o destino tucano. Das punhaladas internas aos predadores
externos, o PSDB construiu sua própria erosão com esmero.
Uma das primeiras emboscadas
ocorreu em 2004, com a traição paulistana. Houve um telefonema que poderia ter
mudado o rumo da política brasileira.
No apartamento do velejador
Lars Grael, filiado ao então PFL, o aparelho tocou. Do outro lado, José Serra
fazia um convite improvável: queria o medalhista olímpico como seu vice na
disputa pela Prefeitura de São Paulo. Gestor competente, com passagem pelo
Ministério do Esporte no governo FHC, Lars era, para Serra, o tipo ideal de
político: alguém que ainda não era político.
A base reagiu com instinto
feroz. Tucanos e pefelistas, unificados como raramente se viu, lançaram o
ultimato: "Se o vice não for Kassab, a candidatura não vai pra rua".
Serra, pragmático como sempre, cedeu. E Gilberto Kassab, então deputado federal
pelo PFL, virou o vice e um dos mais fiéis parceiros do tucano.
Serra foi
eleito prefeito naquela eleição de 2004. Quinze meses depois, em março de
2006, quebrou
a promessa de cumprir o mandato e renunciou ao cargo para disputar o governo do
Estado. Deixou a prefeitura nas mãos de Kassab, que mais tarde construiria
o PSD.
Em 2008, o PSDB expôs à luz
do dia sua primeira grande fissura. Serra, governador de São Paulo, jogou todas
as fichas na reeleição de Kassab na prefeitura da capital, ignorando sem
cerimônia a candidatura de seu correligionário Geraldo Alckmin. Kassab
venceu. Alckmin nem chegou ao segundo turno. Mais que uma derrota eleitoral,
foi uma humilhação moral para o PSDB.
A ironia histórica foi
dessas que a política arquiva com gosto. Se Lars Grael tivesse sido vice de
Serra em 2004, Kassab jamais teria herdado a Prefeitura de São Paulo. Sem essa
vitrine, talvez não tivesse construído o partido que hoje comanda
como uma orquestra regida por pragmatismo implacável: o PSD.
2010: O teatro de Belo
Horizonte
A partir de São Paulo, o
PSDB se especializou em fazer oposição a si mesmo. Em 2010, foi a vez de Minas
Gerais entrar no palco. O teatro da harmonia entre Aécio e Serra encenado em
Belo Horizonte escondia, nos bastidores, a disputa mais silenciosa —e mais
venenosa— do partido.
Era 4 de março. A inauguração
da Cidade Administrativa parecia o que de fato era: o lançamento não declarado
de uma candidatura presidencial. Serra, convidado de honra, sorria
para as câmeras em sincronia com Aécio, então governador de Minas, como quem
sabe que está num jogo, mas finge que não decidiu se quer jogá-lo.
Ambos conheciam o roteiro:
2010 parecia um beco sem saída. Lula, no final de seu segundo mandato, batia
recordes de aprovação; Dilma Rousseff carregava o carisma transferido pelo
padrinho.
Aécio, favorito natural das
prévias tucanas, já havia deixado, discretamente, a disputa. Queria que o
provável sacrifício ficasse com Serra, a quem tratava com juras de lealdade,
incentivando-o a embarcar na disputa e prometendo o apoio de Minas. O mineiro
sabia que a provável derrota do paulista deixaria o campo livre em 2014,
quando, calculava, o ciclo do PT no Planalto chegaria ao fim.
O golpe colou, mas Serra e
Aécio jamais confiaram um no outro. Viviam mergulhados em clima de paranoia
mútua. Aécio suspeitava que
Serra espalhava rumores sobre seu suposto uso de drogas. Serra, por sua
vez, culpava Aécio por matérias publicadas na imprensa sobre supostos esquemas
de corrupção do PSDB paulista.
Na campanha de 2010,
levantamentos encomendados sob sigilo por Serra ao cientista político Antônio
Lavareda davam sinais dúbios. Apontavam o governador de São Paulo na frente,
mas também indicavam que Dilma teria grandes chances de vitória em um eventual
segundo turno. Não era o que Serra queria ouvir. O diagnóstico o incomodou
tanto que Lavareda foi temporariamente posto na geladeira, sem novas pesquisas
encomendadas a ele por um tempo.
Meses depois, Serra voava de
Belo Horizonte para São Paulo quando ouviu de um assessor irreverente a
pergunta dissonante: "Você já assistiu a 'O Show de Truman?" Fazia
uma comparação entre o filme de 1998, no qual o ator Jim Carrey é um
homem que desconhece que sua vida é uma realidade simulada por um programa de
TV, e a campanha presidencial tucana.
Nas imagens, viam-se
quarteirões tomados por militantes, bandeiras tremulando, aplausos esfuziantes.
Tudo parecia apontar para a vitória. Bastava, contudo, andar dois quarteirões
além do palanque para ver o que as lentes não mostravam: ruas desertas, ônibus
fretados discretamente estacionados, motoristas confessando que os passageiros
haviam vindo em troca de um lanche e algum trocado. Era uma encenação
meticulosa. Um "Show de Truman" tucano.
As urnas confirmaram a
profecia de Lavareda. Dilma
venceu Serra no segundo turno. E pior: mesmo com Aécio oficialmente
"ao seu lado", o tucano foi atropelado pela petista em Minas Gerais:
58,45% contra 41,55%. O estado em que o PSDB dominava o governo tornava-se,
ironicamente, seu território mais ingrato.
2014: A última chance
Quatro anos depois, seria a
vez de Aécio testar o próprio nome nas urnas. Na noite de 26 de outubro, no
início da apuração dos votos, o mineiro estava na frente. O ciclo tucano,
adormecido desde FHC, parecia prestes a ser religado.
A reviravolta começou pelo
Nordeste. Urna após urna, Dilma virou o jogo e consolidou a vitória apertada,
51,64% contra 48,36%, a
menor margem já registrada em uma eleição presidencial brasileira até então. O
fantasma de Minas assombrou os tucanos de forma ainda mais intensa: Aécio
perdeu em sua própria base eleitoral. Para o PSDB, foi ao mesmo tempo a maior
chance de voltar ao Planalto em 12 anos e o último suspiro de relevância
nacional.
Quatro dias depois do
segundo turno, o partido protocolou no TSE um
pedido de auditoria especial nos resultados da votação. Era o início de um
novo paradigma: difundiu-se a ideia de que eleições poderiam ser colocadas sob
suspeita quando o resultado desagradasse.
Aécio, até hoje, rejeita
essa leitura com veemência. "Essa versão foi espalhada pelo PT, e muita
gente comprou", afirma. "Nunca contestamos o resultado. Às 20h30 do
domingo da eleição, liguei para a presidente Dilma e a cumprimentei pela vitória."
Segundo ele, o pedido de
auditoria nasceu de pressões externas. Inundado por mensagens relatando falhas
em urnas, o partido se sentiu compelido a dar uma resposta institucional.
"Eu, pessoalmente, não duvido do resultado da eleição. Mas acho que uma
parcela razoável da população tem dúvidas. E defendo, muito antes de o
Bolsonaro existir, um sistema que possa eliminá-las."
Para Aécio, o problema não
está nas urnas eletrônicas, mas
na falta de transparência percebida pelo eleitorado. "Isso alimenta o
processo contínuo de contestação, principalmente por parte da direita mais
radical."
2016: O usurpador do
tucanato
A entrada de João Doria no
PSDB foi o atestado de óbito da última tentativa orgânica de reconstrução
tucana. Nos bastidores das prévias para a Prefeitura de São Paulo, o governador
Alckmin oscilava entre a indecisão e o controle. Andrea Matarazzo era o nome
natural do partido, respaldado por FHC, Serra e outras lideranças históricas.
Uma reunião pró-Matarazzo
aconteceu na casa de José Gregori, ministro da Justiça no governo tucano. A
alta cúpula do partido estava presente, incluindo Serra e FHC.
Alckmin foi convidado por
e-mail. Na verdade, ninguém o queria lá, o que o deixou extremamente irritado.
Leu a articulação como um ato de traição. O fato é que chamou Doria no dia
seguinte e disse: "Agora vá lá e ganhe essa convenção", contou uma
testemunha do episódio.
Uma das leituras é que o
apoio de Alckmin a Doria foi também um acerto de contas. Afinal, a lembrança de
2008, quando foi derrotado por um Kassab apoiado por Serra, ainda doía.
Eleito nas prévias tucanas
com gastos próprios até então nunca vistos pelo partido, Doria
demoliu nas urnas o petista Fernando Haddad, que buscava a reeleição.
A boa relação de criador e
criatura, contudo, durou pouco. Pouco após assumir a Prefeitura de São Paulo,
Doria embarcou com Alckmin rumo a Nova York para participar de um roadshow com
investidores.
No palco, vendiam o mesmo
Estado. O governador fez a defesa burocrática do modelo paulista. O prefeito
veio em seguida e apresentou-se como o gestor de que o Brasil precisava. Não
fez nenhuma menção a seu padrinho político. Nenhum gesto de deferência.
Na mesa ao lado, o
secretário estadual Saulo de Castro cochichou no ouvido do governador:
"Viu, Geraldo? Ele acabou de se lançar candidato à Presidência". No
íntimo, Alckmin esperava que Doria o consagrasse como o próximo presidente do
Brasil. Começou
ali um processo rápido e irreversível de arrependimento e ódio.
Em 2018, Doria repetiu a
tática de Serra. Rompeu a promessa feita ao eleitor e candidatou-se ao governo
estadual, vencendo
no segundo turno. Em 2022, venceu as prévias para concorrer ao Planalto,
mas depois
desistiu da corrida, alegando sabotagem do partido. Pela primeira vez desde
sua fundação, o PSDB ficou sem candidato à Presidência do Brasil.
O ex-deputado tucano José
Aníbal assim classifica a introdução de Doria no partido: "Eu disse desde
o início. Ele seria o cupim do PSDB". Aécio Neves concorda: "A
entrada do Doria foi o episódio mais trágico da história recente do partido."
A reportagem procurou João
Doria. O ex-governador preferiu não conceder entrevista. Enviou, por escrito,
uma mensagem com pedido explícito de publicação na íntegra.
"Venci as três prévias
do PSDB que disputei com bons candidatos do partido. Na sequência, venci as
eleições para prefeito de São Paulo no primeiro turno, em 2016 —fato único na
história política da cidade até hoje. Depois, venci as eleições para governador
do Estado, com mais de 11 milhões de votos, em 2018. Já em 2022, venci
novamente as prévias do PSDB para presidente da República, disputando com
expressivos candidatos do partido. Embora tenha sido vitorioso, o PSDB não
honrou o resultado das prévias nem a vontade dos seus filiados. Tomei,
então, a decisão de desligar-me do partido. Não tenho mágoas nem
ressentimentos de ninguém. E desejo boa sorte ao PSDB."
2017: A fuga pela garagem
Quando viram que havia
imprensa do lado de fora, as pessoas fugiram pela garagem. Era maio de 2017, e
a cena, na residência de Aécio Neves em Brasília, tinha todos os elementos de
uma tragédia política.
Dias antes, gravações da JBS
encaminhadas à Procuradoria-Geral da República, como tentativa de um acordo de
delação premiada, mostravam
Aécio pedindo R$ 2 milhões ao empresário Joesley Batista. O diálogo
rapidamente se tornou símbolo da degradação política nacional.
Aécio convocou uma reunião
de emergência com a cúpula partidária para explicar-se e pedir respaldo. A cena
beirava o surreal. Ele disse que pediu o dinheiro como um empréstimo pessoal, e
não em um ato de corrupção, para pagar honorários advocatícios decorrentes da
eleição de 2014.
Contou que tentou vender seu
apartamento no Rio, mas ninguém quis. Estava desesperado. Teria acertado com
Joesley Batista a entrega do imóvel como forma de pagamento.
Aécio convocou a imprensa
acreditando que, ao fim da reunião, os colegas sairiam em sua defesa. Não
saíram. Ou melhor, saíram pela garagem, uma fuga em massa, ao verem jornalistas
na porta. Nenhuma palavra foi dada em favor do companheiro em apuros.
"A solidariedade nunca
foi mesmo matéria-prima do PSDB", reconhece Aécio em tom amargo. Acusado
de corrupção passiva, ele
foi depois absolvido pela Justiça.
2018: o partido nu
O PSDB chegou a 2018
fragilizado, sem o voto antipetista que antes o cobria e com a imagem de lisura
arranhada pela Lava Jato. Em acordos de delação premiada firmados com a
Procuradoria-Geral da República, executivos da Odebrecht disseram ter repassado
milhões de reais em caixa dois para as campanhas
eleitorais de Serra, Alckmin e Aécio,
entre outros figurões do partido.
Ao longo dos anos também
acumularam-se denúncias sobre
supostos pagamentos de propina e formação de conluios para a elaboração de
projetos e construção das linhas do Metrô e da CPTM (Companhia Paulista de
Trens Metropolitanos) nas gestões tucanas em São Paulo.
Em 2018 Alckmin partiu para
sua segunda candidatura presidencial. A despeito de tudo, havia algum motivo
para confiança, pois sua gestão como governador seguia bem avaliada.
A realidade, contudo, impôs
outro roteiro. Em São Paulo, reduto histórico do tucanato, estado no qual foi o
político que por mais tempo ocupou o cargo de governador após a ditadura,
Alckmin ficou em quarto lugar, atrás de Bolsonaro, Haddad e Ciro Gomes.
Mais que um tropeço, foi uma
humilhação histórica. Alckmin, apoiado por oito partidos e dono de 44% do tempo
total de TV, terminou o primeiro turno também em quarto lugar no país. Obteve
apenas 4,76% dos votos válidos, o pior desempenho presidencial do PSDB desde
sua fundação.
A tragédia tucana foi
intensificada pelo abandono. Ao perceber o fracasso iminente, João
Doria incentivou nos bastidores o voto BolsoDoria, aprofundando a cisão
interna.
Naquela eleição as pessoas
viraram as costas para a televisão e passaram a ser bombardeadas por WhatsApp e
redes sociais. Bolsonaro, com apenas 8 segundos de tempo de TV, soube explorar
esse novo ambiente. O PSDB não percebeu que o jogo havia mudado.
Pela primeira vez em quase
três décadas, disputou sem contar com o voto antipetista de direita, que passou
a ter dono. Ao contrário, fez uma campanha de centro-esquerda, poupando o PT e
criticando duramente Bolsonaro. Revelou-se o que era: um partido dúbio,
esvaziado, órfão de base social, de narrativa e ambição.
O diagnóstico e o plot twist
O PSDB contratou
recentemente o instituto Quaest para avaliar a opinião da população sobre o
partido. O diagnóstico foi brutal. O principal problema constatado tem nome e
sobrenome: Aécio Neves. A rejeição do mineiro, segundo a pesquisa, contamina
toda a legenda.
Numa
reviravolta digna da política brasileira, o PSDB negocia hoje a volta de Ciro
Gomes depois de 28 anos. Nesse período, Ciro transformou em esporte
ataques cruéis a FHC. Desde as eleições de 2018, porém, tem caminhado para a
direita, enquanto seu atual partido, o PDT, insiste em participar do governo
Lula. Estariam ambos, Ciro e o PSDB, na centro-direita do espectro político.
Desde que deixou os tucanos,
Ciro peregrinou por vários partidos: PPS (hoje Cidadania), PSB, PROS e, desde
2015, PDT. Hoje vê na legenda tucana o espaço para reafirmar seu projeto de
oposição ao PT.
O movimento ganhou força
após revelações de
fraudes no INSS, descobertas na gestão petista. Apesar de atuar para o
desembarque dos pedetistas da base aliada de Lula, Ciro foi voto vencido, e o
PDT optou por seguir no governo.
Epitáfio de uma era
Na década de 1990, o PSDB
foi o partido da modernização. Nos anos 2000, representou a imagem anti-PT. Em
2010, ainda parecia competitivo. Em 2014, chegou perto com Aécio. Em 2018,
tornou-se irrelevante. Em 2022, saiu de cena. Passou da glória do Plano Real ao
próprio funeral.
Em São Paulo, berço tucano,
está fora do governo estadual, posto que ocupou de 1995 a 2022, e da prefeitura
da capital.
Aécio, que restou como
guardião das ruínas, ainda cultiva ambições mais nobres. "Nosso objetivo
não pode ser só superar a cláusula de desempenho. Queremos dar musculatura a um
projeto de centro, mesmo que não seja para vencer as próximas eleições."
É o que resta: um projeto de
centro. Depois
do fracasso nas negociações com o Podemos, o partido agora aposta numa
federação com MDB e Republicanos. "Há um interesse grande. A questão é que
o MDB está muito no governo", diz Aécio.
Aloysio Nunes observa o
esforço de longe, com a lucidez dos que assistem ao próprio epitáfio ainda
sendo rabiscado. "Acho que o PSDB está fazendo um movimento correto na
luta pela sobrevivência. Só espero que consigam se livrar da hipoteca do bolsonarismo
e caminhem para um centro democrático." E arremata: "Aliás, é onde o
Kassab soube perfeitamente posicionar o PSD".
Com a morte do PSDB, não
morre só um partido —morre uma forma de fazer política. A política da
expertise, do debate racional, da moderação como princípio. A política que
acreditava que bastava estar certo para convencer, ser competente para vencer,
ter boas intenções para ser perdoado.
Morre também uma geração. A
geração que fez a transição democrática, criou o Plano Real, inseriu o Brasil
na modernidade. Homens que, com todos os defeitos, praticavam uma política mais
civilizada, mais institucional, mais respeitosa.
Serra,
afastado da vida pública devido à doença de Parkinson, recebeu a Folha em
sua casa. Disse uma frase que resume mais do que a situação de seu partido.
"Tínhamos os melhores administradores e líderes do país. Obviamente,
cometemos equívocos, mas isso talvez não tenha mais importância. A política
vive hoje tempos de terra arrasada."
A democracia brasileira
ficou mais pobre. Não porque o PSDB seja insubstituível, mas porque a
diversidade partidária é um valor democrático. Um país com dois polos —esquerda
e direita populista— é um país com menos possibilidades, menos nuances, mais
riscos.
*Advogado e jornalista, foi
secretário de comunicação do Supremo Tribunal Federal e do Estado de São Paulo
(governo Alckmin). Foi também correspondente da Folha em Tóquio e Washington
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