sexta-feira, 19 de setembro de 2025

O voto divergente. Por José de Souza Martins

Valor Econômico

Escolha de Luiz Fux, contraditoriamente, confirmou a independência democrática dos ministros

Muitas análises já surgiram desde o final da noite de 11 de setembro de 2025, quando o STF anunciou a condenação dos réus da tentativa de golpe de Estado liderada por Jair Messias Bolsonaro, ex-presidente da República, e as respectivas penas. Dos quatro votos majoritários divergiu o ministro Luiz Fux.

Analiso a divergência porque ela é sociologicamente explicativa e reveladora dos múltiplos e conexos significados do julgamento. Faço-o na perspectiva da sociologia do conhecimento.

Cada época e cada circunstância do crime julgado tem seus valores e suas determinações de referência no balizamento da teoria que dá sentido a decisões que o tribunal toma. Cujos valores são os da Constituição Cidadã de 1988.

A divergência revela mais as ciladas de percepção do que a concordância e é material de compreensão das contradições interpretativas relativas ao crime julgado e de suas consequências sociais.

O ministro, aparentemente, entendeu que deveria trabalhar com o fenomênico na premissa de um esquema teórico que, antes de tudo, contrariasse, sem desautorizar, as ideias toscas e tendenciosas da grande massa mobilizada por Bolsonaro e os bolsonaristas, por militares e evangélicos, expressões de um senso comum fora da lei e da razão, o dos testemunhos e documentos.

Ele foi radical na limitação da referência de elaboração de sua sentença aos aspectos abstratos da teoria. Desse modo, destituiu o crime da temporalidade que o explica, o que contrariou a pluralidade das ações e ocorrências conexas ao longo de um tempo maior do que o dos atos individuais. E, portanto, próprias daquilo que o protagonismo, na sucessão dos episódios, definem sociologicamente como sujeito pluralista e objetivo da ação.

Seu voto divergente, porém, contraditoriamente, confirmou a independência democrática dos ministros. A seu modo, e sem necessariamente levar em conta o sentido possível de sua sentença, não o fez à luz dos desdobramentos interpretativos de suas implicações.

Objetivamente negou os conteúdos da campanha político-ideológica da direita, na qual se inclui a quinta-coluna de brasileiros nos EUA. Validou, indireta e subjetivamente, o que talvez não quisesse, o contraditório do processo e, sem subscrevê-la, legitimou a sentença condenatória dos conspiradores e golpistas.

Não se pode, porém, ignorar a técnica de conhecimento por ele adotada e, em decorrência dela, julgar e decidir. Em seu esquema teórico, ele fatiou e examinou as provas e documentos relativos a cada crime imputado a cada réu. Quando a definição de cada crime pela acusação não se encaixasse no definido na teoria, o crime não teria existido. Assim, porque dissimulados nas ocorrências, os responsáveis foram inocentados.

Sociologicamente, estamos em face de crime de multidão, em que, desde os estudos de Gustave Le Bon, no século XIX, vê seus participantes como personificadores de dupla personalidade. Que, em minha pesquisa sobre linchamentos no Brasil, é ela desdobramento cúmplice de uma identidade individual e cotidiana.

Em mais de 2 mil casos de linchamentos e tentativas, num período de mais de 20 anos, observei que o linchamento começa lentamente e desenrola-se num curto período até o extremo da mutilação da vítima, como a extirpação de órgãos, o furar dos olhos e sua queima ainda viva.

Desenvolvi uma fórmula para cálculo da durabilidade do ódio. Um linchamento pode durar 20 minutos, mas o ódio que o motiva pode durar até mais de 20 anos. Durante os quais, outros linchamentos conexos podem ocorrer.

Durante anos, em bibliotecas e instituições nos EUA e na Europa, examinei a ampla literatura científica relativa a linchamentos nos EUA, na França, na Espanha, na Itália e em países da África e da Ásia. Como aqui, ao longo do ato violento, há uma espontânea divisão do trabalho de espancar e matar a vítima.

Além do elenco de ardis de extrema covardia como o de linchar de preferência à noite e não de dia para que os linchadores não sejam identificados. Os próprios participantes criam álibis que os protejam dos indícios de cumplicidade. As técnicas de auto-ocultamento dos atores estão presentes neste caso de tentativa de golpe de Estado.

O fatiamento das provas, no voto divergente, apagou o elo principal do crime, o do comando invisível e difuso. Embora a PGR tenha demonstrado, e o relator acolhido, a indicação precisa dos nexos que unem os atos distribuídos no tempo de uma conspiração longa e calculada. Nela vejo raízes na persistência disfarçada da ditadura militar.

Na questão dos nexos, é estranho que o capelão evangélico da conspiração e seus acólitos não tenham sido incluídos no processo, embora continuem a conspirar.

 

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