Valor Econômico
Escolha de Luiz Fux, contraditoriamente,
confirmou a independência democrática dos ministros
Muitas análises já surgiram desde o final da
noite de 11 de setembro de 2025, quando o STF anunciou a condenação dos réus da
tentativa de golpe de Estado liderada por Jair Messias Bolsonaro, ex-presidente
da República, e as respectivas penas. Dos quatro votos majoritários divergiu o
ministro Luiz Fux.
Analiso a divergência porque ela é
sociologicamente explicativa e reveladora dos múltiplos e conexos significados
do julgamento. Faço-o na perspectiva da sociologia do conhecimento.
Cada época e cada circunstância do crime julgado tem seus valores e suas determinações de referência no balizamento da teoria que dá sentido a decisões que o tribunal toma. Cujos valores são os da Constituição Cidadã de 1988.
A divergência revela mais as ciladas de
percepção do que a concordância e é material de compreensão das contradições
interpretativas relativas ao crime julgado e de suas consequências sociais.
O ministro, aparentemente, entendeu que
deveria trabalhar com o fenomênico na premissa de um esquema teórico que, antes
de tudo, contrariasse, sem desautorizar, as ideias toscas e tendenciosas da
grande massa mobilizada por Bolsonaro e os bolsonaristas, por militares e
evangélicos, expressões de um senso comum fora da lei e da razão, o dos
testemunhos e documentos.
Ele foi radical na limitação da referência de
elaboração de sua sentença aos aspectos abstratos da teoria. Desse modo,
destituiu o crime da temporalidade que o explica, o que contrariou a
pluralidade das ações e ocorrências conexas ao longo de um tempo maior do que o
dos atos individuais. E, portanto, próprias daquilo que o protagonismo, na
sucessão dos episódios, definem sociologicamente como sujeito pluralista e
objetivo da ação.
Seu voto divergente, porém,
contraditoriamente, confirmou a independência democrática dos ministros. A seu
modo, e sem necessariamente levar em conta o sentido possível de sua sentença,
não o fez à luz dos desdobramentos interpretativos de suas implicações.
Objetivamente negou os conteúdos da campanha
político-ideológica da direita, na qual se inclui a quinta-coluna de
brasileiros nos EUA. Validou, indireta e subjetivamente, o que talvez não
quisesse, o contraditório do processo e, sem subscrevê-la, legitimou a sentença
condenatória dos conspiradores e golpistas.
Não se pode, porém, ignorar a técnica de
conhecimento por ele adotada e, em decorrência dela, julgar e decidir. Em seu
esquema teórico, ele fatiou e examinou as provas e documentos relativos a cada
crime imputado a cada réu. Quando a definição de cada crime pela acusação não
se encaixasse no definido na teoria, o crime não teria existido. Assim, porque
dissimulados nas ocorrências, os responsáveis foram inocentados.
Sociologicamente, estamos em face de crime de
multidão, em que, desde os estudos de Gustave Le Bon, no século XIX, vê seus
participantes como personificadores de dupla personalidade. Que, em minha
pesquisa sobre linchamentos no Brasil, é ela desdobramento cúmplice de uma
identidade individual e cotidiana.
Em mais de 2 mil casos de linchamentos e
tentativas, num período de mais de 20 anos, observei que o linchamento começa
lentamente e desenrola-se num curto período até o extremo da mutilação da
vítima, como a extirpação de órgãos, o furar dos olhos e sua queima ainda viva.
Desenvolvi uma fórmula para cálculo da
durabilidade do ódio. Um linchamento pode durar 20 minutos, mas o ódio que o
motiva pode durar até mais de 20 anos. Durante os quais, outros linchamentos
conexos podem ocorrer.
Durante anos, em bibliotecas e instituições
nos EUA e na Europa, examinei a ampla literatura científica relativa a
linchamentos nos EUA, na França, na Espanha, na Itália e em países da África e
da Ásia. Como aqui, ao longo do ato violento, há uma espontânea divisão do
trabalho de espancar e matar a vítima.
Além do elenco de ardis de extrema covardia
como o de linchar de preferência à noite e não de dia para que os linchadores
não sejam identificados. Os próprios participantes criam álibis que os protejam
dos indícios de cumplicidade. As técnicas de auto-ocultamento dos atores estão
presentes neste caso de tentativa de golpe de Estado.
O fatiamento das provas, no voto divergente,
apagou o elo principal do crime, o do comando invisível e difuso. Embora a PGR
tenha demonstrado, e o relator acolhido, a indicação precisa dos nexos que unem
os atos distribuídos no tempo de uma conspiração longa e calculada. Nela vejo
raízes na persistência disfarçada da ditadura militar.
Na questão dos nexos, é estranho que o
capelão evangélico da conspiração e seus acólitos não tenham sido incluídos no
processo, embora continuem a conspirar.
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