sábado, 6 de setembro de 2025

Privatiza tudo. Por Eduardo Affonso

O Globo

Privatizemos o Legislativo, e adeus mensalão, orçamento secreto, associação com o crime organizado, ‘desautonomia’ do Banco Central

O título acima foi emprestado da economista Elena Landau, também conhecida (dependendo do viés do observador) como “musa das privatizações” ou “carrasca das estatais” — o que dá um pouco a ideia das paixões que o assunto provoca. No governo Fernando Henrique, Elena participou de uma lipoaspiração no Estado, deixando-o mais esbelto nas áreas de energia, telecomunicações e mineração.

Elena é, como nosso Botafogo, uma estrela solitária nessa peleja. Não importa que a Constituição Federal diga, no artigo 173, que “a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo”. Haverá quem ache que furar poço de petróleo, fabricar semicondutores, gerar eletricidade, transportar passageiros ou fornecer soluções de TI se encaixe no conceito.

FH privatizou foi pouco. Tivesse incluído os Correios no pacote, nos pouparia de ouvir um ministro dizer que a empresa tem prejuízo (de novo!) porque precisa entregar cartas. Imagine o tamanho do rombo se também tivesse de lamber selo e fechar envelope.

Que empresa privada faria cara de paisagem para uma fraude de R$ 42,8 bilhões (uns R$ 78 bi, se atualizados pelo IPCA)? A Petrobras (“O petróleo é nosso; o propinoduto, também”) fez — e com impunidade garantida.

Quem é contra a privatização deve ter saudade dos bons tempos em que se ficava anos na fila para conseguir uma linha telefônica — depois orgulhosamente declarada no Imposto de Renda e deixada como herança, com as joias e o videocassete de quatro cabeças.

Elena não chega a tanto quando repete o mantra “Privatiza tudo”, mas eu proponho privatizar o Judiciário. Ele devora 1,4% do nosso PIB (nos países de primeiro mundo, a mordida é de 0,3%). Com sócios de olho nos resultados, dificilmente os processos mofariam à espera de decisões e, na hora de dividir a conta, alguém perguntaria quem foi que pediu lagosta, lenço de seda, carro de R$ 346 mil, sala VIP em aeroporto, perdão de multas, penduricalhos e honorários de três dígitos para ministro da AGU.

Privatizemos o Legislativo — e adeus mensalão, orçamento secreto, associação com o crime organizado, desautonomia do Banco Central, alteração da Lei da Ficha Limpa, golpe de anistia aos golpistas. Os acionistas vão querer saber que projetos foram votados e para onde vão as emendas, as verbas de gabinete. Capaz até de haver uma Comissão de Ética e a ressurreição do decoro parlamentar.

Nada de deixar de fora o Executivo. Dará gosto ver presidente, governadores, prefeitos, ministros e secretários na sala do Departamento de Compliance, justificando apadrinhamentos, sigilo de cem anos, gastos com cartão corporativo, comitivas épicas, jatinho para ir ao estádio ou ao ginecologista.

Privatiza tudo — e quem sabe o Brasil vira uma empresa com 213 milhões de acionistas, zelosos do seu patrimônio e ansiosos pelos dividendos do que investiram em impostos. Algo como a divisão de lucros em forma de educação, saúde, cultura, segurança, habitação, saneamento, infraestrutura, proteção ao meio ambiente, estabilidade econômica, assistência social, Estado de Direito etc. Do jeito que está, a falência é questão de tempo.

Se não der para privatizar tudo (mas tudo mesmo!), começando pelas estatais, já é possível sonhar com apenas uma concordata, mais adiante.

 

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