Iniciou-se no dia 2 de setembro aquele que,
por certo, é o mais importante julgamento da República, eis que pode significar
o rompimento da inércia em face da tragédia da conciliação, responsável pelo
nosso atraso político, e de tudo que dele deriva: uma história feita aos
trancos e barrancos, plena de tristeza e avara nas conquistas sociais. Uma
democracia continuadamente apunhalada pelos donos do poder, do latifúndio
herdado do Império ao conluio Faria Lima-PCC. Uma democracia cerzida pela
caserna com os fios da miséria política.
É o Brasil que temos, empurrando para fora da estrada o Brasil que poderia ter
sido.
Neste sentido, o julgamento em curso no STF pode ser uma réstia de luz
nutrindo-nos de esperança, porque a história até aqui escrita não nos enseja
porto seguro, muito menos a sonhada revolução social. O rompimento do ciclo da
impunidade fortalecerá a democracia, esta que temos, a qual, ainda não sendo
aquela com que sonhamos, é o ponto de partida para qualquer utopia – e sem
utopia nem tem sentido a vida inteligente.
Como sabemos, a República que herdamos sem por ela havemos lutado, nasceu sob a
égide de um golpe de Estado, servidor da conciliação e da impunidade, males que
nos perseguem desde sempre. Nasce com o golpe de Estado liderado pelo marechal
Deodoro da Fonseca, em 1889, e se consolida com o golpe de Floriano Peixoto,
que tomou para si a presidência, dois anos depois, rasgando a recém-promulgada
Constituição de 1891, fundadora da República sereníssima, que logo se concilia
com o atrasado regime da lavoura e da pecuária. Velha nos seus primeiros
tempos, não poderia ter olhos para ver os infames crimes dos oficiais contra as
praças nos quarteis e nos navios da Marinha, mas seria vigilante e rigorosa na
punição dos heróis da Revolta da Chibata.
O movimento de 1930, que encerra a República, a partir daí identificada como
Velha, logo esquece a promessa de renovação e concilia com as oligarquias
estaduais. Insatisfeitos seus líderes com a constitucionalização liberal de
1934, implanta o “Estado Novo”. À frente de todos, serviçais do poder e do
caudilho, os generais Góes Monteiro e Eurico Gaspar Dutra – que armaram o golpe
de 1937 e sustentaram a ditadura, até seu último vagido, para, na sequência,
usufruírem o poder no Brasil redemocratizado. Dutra, germanófilo como Góes, foi
premiado, após a derrota do Eixo e a redemocratização de 1945, com a eleição
para a Presidência da República. Impune como seus chefes, o capitão Olímpio
Mourão, redator do falso Plano Cohen (engendrado, por ordem de Góes Monteiro,
então chefe do Estado Maior do Exército, para servir, como jpretexto do golpe
de 1937, de há muito articulado), chegou a general, para, em 1964, comandar as
tropas de Juiz de Fora que traria até a Guanabara na rota do novo golpe.
O general Filinto Strubing Müller, expulso da Coluna Prestes sob acusação de
covardia, se notabilizaria como responsável pela estruturação do aparelho
repressivo do Estado Novo, e morreria como senador da República. Em vida, foi o
personagem-chave do livro Falta alguém em Nuremberg (Edições do Povo,
1947) de David Nasser.
Permaneceriam impunes e promovidos os insubordinados da “República do Galeão” e
os golpistas graduados de agosto de 1954; os coronéis foram feitos generais e
os generais, como Eduardo Gomes e Juarez Távora, morreram como marechais, então
o posto mais alto na hierarquia da FAB e do Exército. Impunes e poderosos
permaneceram os generais que intentaram o golpe de 11 de novembro de 1955
(contra a posse de Juscelino Kubitscheck), e anistiados seriam os capitães e
coronéis da Aeronáutica, responsáveis pelos levantes de Jacareacanga (1956)
contra a posse de JK, e Aragarças (1959), frustrada tentativa de depor seu
governo.
Entre os anistiados estava o brigadeiro João Paulo Burnier. Atuante no golpe de
1964, se destacaria na tortura dos opositores do regime caídos em sua malha. No
final da década seria autor do ‘Plano Jericó’, que previa inumeráveis atos
terroristas que, consumados, seriam atribuídos à esquerda. Entre eles a
explosão do gasômetro do Rio de Janeiro, no bairro do Caju. A tragédia de
proporções inimagináveis foi frustrada graças à denúncia do seu comandado
capitão Sérgio Ribeiro, o célebre Sérgio Macaco, do Parasar. O brigadeiro
facínora continuou em sua carreira de crimes, e o capitão foi punido com a
reforma compulsória.
Assim seguiu a história, de mãos dadas com a impunidade. Os generais do golpe
de 1961 (contra a posse de João Goulart), estariam entre os principais
articuladores do golpe de 1º de abril 1964, berço de uma ditadura luciferina de
21 anos, a mais longeva que conhecemos.
A história informa: a impunidade não faz bem à democracia.
Nenhum golpista de 1964 foi punido, e impunes permanecem os torturadores e
assassinos da repressão, beneficiados por uma anistia torpe, redigida pelos
juristas da ditadura, e até hoje sustentada pelo Poder Judiciário – que,
lembremos, pela mão do presidente do STF, se apressou em acolher como legítimo
o golpe de 1º de abril. Esse enredamento da conciliação com a impunidade é o
traço do pano de fundo da ascensão do bolsonarismo e sua choldra, da intentona
de 2022, e das apreensões que hoje nos atormentam.
Trata-se, portanto, de fato inédito, e alvissareiro, nessa história, comandada
e escrita pela classe dominante – seus agentes e intérpretes, os juristas que
temos, os políticos e os militares que elegemos e formamos, a imprensa que aí
está,– fazer sentar na cadeira dos réus criminosos de alto coturno como o
capitão Bolsonaro e os generais que, após a safra dos quatro anos de seu
colega-chefe, se associaram, sob seu comando, na tentativa de impor ao país
mais um golpe de Estado, tramado na domesticidade do governo e do poder, às
expensas do erário, golpe finalmente esboroado na malsucedida intentona de
janeiro de 2023.
Este é o ineditismo que dá ao julgamento em trânsito no STF o seu caráter de
fato histórico, histórico em si mesmo, e pelo seu significado primordial:
anuncia, o possível fim da conciliação por cima, e o enterro da impunidade, seu
pior produto.
Lamentavelmente, esta ainda não é a história toda. Pois o julgamento dos
golpistas e sua esperada condenação não chegam à luz do dia como fruto do
clamor nacional, e assim, correm o risco de reduzir-se a mero evento
jurídico, despido de seu caráter político, aquele que lhe abre espaço na
história, depois de ensejar alterações substanciais na correlação de forças,
nesses tempos em construção. Embora espelhem o sentimento majoritário da nação,
o julgamento e as esperáveis condenações podem esvaziar-se, se não contarem,
atrás de si, visível e falando alto, com aquele respaldo que só se vê e só se
ouve nas ruas e nas praças plenas de povo.
Para ditar as lições necessárias, este julgamento, nada obstante sua importância
intrínseca, não se esgota em si, pois, para cumprir com seu papel, haverá de
ser, repito, o vestibular das condenações que a honra do país reclama, mas
condenações que precisam ir além da leitura pura e simples do Acórdão esperado,
pois só terão vida e produzirão efeitos com a prisão dos delinquentes. Não há
alternativa, porque o outro lado será o fastio do sistema democrático que, com
as dificuldades sabidas, e as concessões exigidas, vimos sustentando desde o
fim da ditadura. O que se apresenta como segunda ou última fase do processo
adquire seu sentido nodal.
Aproveitando-se do recesso dos movimentos populares, e o acanhamento das
esquerdas organizadas, donde o silêncio da política, a direita age. Navegando
nas ondas tranquilas, conquanto irresponsáveis, de uma maioria parlamentar
desqualificada, maquina-se no Congresso, no contrapelo da consciência nacional,
já desde o primeiro dia do julgamento pelo STF, uma inaceitável anistia a
criminosos ainda à espera de condenação. Seria caso único de anistia preventiva
– e espúria, abjeta, ainda que se dê após a conclusão do processo. Seria,
evidentemente, a senha para mais um golpe.
A proposta dos golpistas e seus cúmplices não merece, pois, qualquer
consideração, e deve ser rejeitada in limine. Nas ruas, plenas de povo, se
possível.
Adeus a Mino
“Mino foi um dos construtores de um Brasil moderno e democrático”
– Celso Amorim
O fruir da vida, aos borbotões como na mocidade, ou gota a gota na velhice, é
sempre um prazer, até porque, lembrou-nos o sábio Barbosa Lima Sobrinho, a
alternativa é indesejável. Mas há ônus, e não são apenas os achaques da idade.
O que mais me incomoda é a despedida dos amigos que viajam, uns muito de
surpresa, dispensados das despedidas, outros que, cansados, caminham mais lentamente
e assim sofrem mais e nos fazem sofrer mais. E quanto mais envelheço, e quero
envelhecer infinitamente, a mais amigos digo Adeus, quando mais gostaria de
tê-los ao meu lado, egoisticamente aspirando suas lições de vida.
Chega a notícia da morte de Mino Carta. Esperada, aguardada, no entanto fere
como uma punhalada.
De sua vida-batalha, quase tudo foi dito, e muito ainda será escrito. Em sete
dezenas de anos de vida profissional, como jornalista, foi tudo: foca, repórter,
redator, colunista, editor, correspondente internacional, desbravador de
horizontes, criador de jornais e revistas, reformador da imprensa brasileira,
por cuja independência lutou até o fim com determinação, mas, calejado, sem
ilusões. E foi mas: pintor e romancista. Sua última invenção,
desconfio que a mais querida, pois deixou nas mãos da filha, é esta Carta
Capital, que dirigiu e logrou manter de pé por 40 anos – e onde fui
encontrá-lo, para dele tornar-me amigo e seu admirador.
Sem deixar de ser italiano, esse genovês que a guerra nos presenteou é um dos
mais notáveis brasileiros que conheci. E isto me cativou.
Manuela e seus bravos companheiros da Carta Capital manterão de pé
sua obra, sua luta. Porque é preciso.
***
Era de monstros – Inquietam os ventos que chegam do império do Norte: na
Flórida, o governador republicano Ron DeSantis anuncia que adotará medidas para
eliminar no estado, gradualmente, todas as vacinas obrigatórias para crianças–
inclusive aquelas que o mundo reconhece como protetoras contra doenças
potencialmente fatais, como sarampo e poliomielite. Já no Tennessee, outro
estado comandado pelo partido de Trump, crianças, a partir de 5 anos, serão
ensinadas a manipular armas de fogo. E há mais: seguindo ordens do presidente,
militares abateram com um míssil Tomahawk, em águas internacionais no Caribe,
uma pequena embarcação que levava 11 pessoas, sob a alegação, não comprovada,
de tráfico de drogas. Nenhuma interceptação, prisão ou condenação penal: apenas
a execução sumária, numa exibição bruta de poder insano. A esses horrores se
soma o genocídio em curso na Palestina, apoiado pela Casa Branca, a que o mundo
assiste sem reagir. Nesta quadra histórica, o reequilíbrio do poder mundial,
que tanto incomoda Washington e seus serviçais europeus e tropicais, deixa de
ser necessário, para tornar-se imprescindível e ingente.
*Com a colaboração de Pedro Amaral
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