domingo, 21 de setembro de 2025

Um silêncio nada inocente. Por Muniz Sodré

Folha de S. Paulo

Guerra, essência da cultura militar, é injeção de ódio na veia tanto em tempo de conflito como de paz

Juan Huarte analisava a relação entre disposição de espírito e vocação para uma tarefa específica

"O eterno silêncio desses espaços infinitos me assusta". O enigmático fragmento dos "Pensamentos", de Pascal, é oportuno a quem queira pautar o silêncio público dos militares sobre o julgamento da trama golpista. Ainda é silente o murmúrio de "página virada". E silêncio tem voz interna. Se majoritário, é um susto com dupla face, tanto para a civilidade como para essa mesma maioria, relutante quanto a um golpe sem carimbo clássico, isto é, sem apoio americano e liderado por um clã miliciano. Foi por um triz.

Aceito esse viés atemorizante, seria também oportuno remontar a Juan Huarte de San Juan, médico e filósofo espanhol do século 16, precursor da psicologia bélica. Para ele, "os homens dotados de notáveis capacidades intelectuais não valem nada no campo militar, porque suas virtudes são perigosas na guerra: de fato, a calma, a retidão, o agir de modo claro, a simplicidade e a misericórdia, na guerra, não só não servem para nada como levam à derrota.

Quem combate não deve ter escrúpulos morais, porque o inimigo não os terá: para isso, não lhe basta a coragem, deve estar igualmente disposto à mentira e à traição" (Mário Perniola em "Disgusti").

Não era uma crítica. Juan Huarte analisava a relação entre disposição de espírito e vocação para uma tarefa específica. Aos combatentes cabia só infligir danos aos inimigos. Em tese, o influxo posterior do humanismo doutrinário nas convenções internacionais deveria matizar a crueldade das matanças.

Mas a continuidade do arcaico espírito de corpo gera um pensamento estratégico qualitativamente diferente na instituição armada.

Isso significa a persistência da ideia de guerra como um processo natural de estabilização das relações de poder, portanto, superior à instabilidade da busca sociopolítica por harmonia. Na essência da cultura militar, ela é a constante que marginaliza ou relativiza os valores de civilidade.

Guerra é, assim, injeção de ódio na veia tanto em tempo de conflito como de paz. Nela, o novo é a tecnologia da morte. Sua razão, sempre velha, repete regras e modelos que aparentam reeducar a instituição. Mas sem visar pessoas concretas, as únicas que podem ser realmente educadas.

Paz também é conceito militar. Em quase dois séculos sem guerra, caso do Exército brasileiro, a paz nacional, regida por indevida pretensão tutelar, tem sido manchada por atentados contra a civilidade: quinze em 135 anos de República.

A ideologia da "guerra sem guerra" extravasa do plano externo para o interno, fomentando o desapreço, de que falava Juan Huarte, pelos valores alheios à caserna.

Daí o golpismo, doença senil das armas, polimorfa e endêmica nas Américas, cujas sequelas aparecem na ruína da política, na deseducação democrática, no deprimente barata-voa das vivandeiras de quartel.

O silêncio militar deixa intacto o contagioso vezo incivil. Rompê-lo com uma fala antigolpista, autorreparadora, seria tão histórico quanto o processo judicial. Um "fiat lux". O princípio espiritual chamado Nação é incompatível com "o país dos trogloditas, que devoram serpentes e carecem do comércio da palavra" (Borges, "El Aleph").

 

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