sábado, 11 de outubro de 2025

Loucura? Não, método. Por Celso Pinto de Melo

CartaCapital

Uma engrenagem planetária disciplinada movimenta a extrema-direita

E nos tensos interregnos das transições entre o velho que se recusa a desaparecer e o nascer de novos tempos que fenômenos mórbidos proliferam. A política da extrema-direita, nos Estados Unidos ou no Brasil, é muitas vezes tratada como incoerente e irracional. É fácil zombar de seus rituais: pedidos de auxílio a extraterrestres, invocações ao AI-5 em meio a bandeiras verde-amarelas, a invasão do Capitólio com fantasias de viking. Tudo parece improviso de lunáticos. Por trás da aparência de caos, há, no entanto, uma engrenagem internacional disciplinada, operando com objetivos claros e articulada por think tanks ultraconservadores, como a Heritage Foundation.

Documentos como o Project 2025 e o Project Esther são faces complementares dessa estratégia. O primeiro organiza um manual para a captura do aparelho de Estado, o segundo mobiliza pânicos morais enraizados em interpretações religiosas. Ambos se apoiam em redes transnacionais que conectam igrejas, partidos, agências de desinformação e até editoras evangélicas brasileiras, como a Casa Publicadora das Assembleias de Deus. O objetivo é reconfigurar as democracias liberais, submetendo o Estado a uma moral religiosa conservadora, restringindo direitos civis e reinstalando uma ordem social hierarquizada sob o pretexto da defesa da liberdade.

Nos EUA, o Project 2025 propõe demissões em massa no serviço público, substituindo técnicos por militantes ideológicos, a fusão ou extinção de agências ambientais e educacionais, a imposição do nacionalismo cristão como doutrina oficial, o uso do Insurrection Act de 1807 para reprimir protestos e o desmonte de políticas de diversidade e inclusão. Algumas medidas foram testadas no governo Trump, como a saída do Acordo de Paris e os cortes em agências reguladoras. No Brasil de Bolsonaro, práticas semelhantes se expressaram no aparelhamento de órgãos públicos, no ataque a instâncias de controle e na disseminação sistemática do ódio e da desinformação.

A engrenagem não se restringe ao eixo EUA–Brasil. Ela conecta-se em eventos como as Conferências de Ação Política Conservadora, que reúnem líderes como Viktor Orbán, Giorgia Meloni, ­Santiago Abascal e Javier Milei em torno de uma pauta comum. Trata-se de uma internacional autoritária que compartilha métodos, recursos e legitimidade simbólica. Um alvo central é a produção de conhecimento crítico. A ofensiva anticiência desqualifica universidades, cientistas e educadores, promovendo teorias conspiratórias sobre gênero, globalismo, vacinas e clima. Pretende não apenas privatizar a educação, mas colonizar os currículos com dogmas, esvaziando as humanidades e enfraquecendo a capacidade de questionar o estabelecido.

O Project Esther, por sua vez, articula a dimensão religiosa. Enraizado na doutrina escatológica do dispensacionalismo, vê o Estado de Israel como cumprimento de profecias e transforma a política externa em ato de fé. Nos EUA, organizações como a Christians United for Israel dão corpo a essa visão. No Brasil, ela se difunde por meio de igrejas como a Assembleia de Deus, o Ministério Internacional da Restauração e a Sara Nossa Terra, impulsionada por lideranças como Silas Malafaia, Marco Feliciano, René Terra Nova, Robson Rodovalho e Damares Alves. Esse discurso confere uma pretensa superioridade moral às alianças entre fé e mercado político, criando justificativas religiosas para agendas autoritárias. No Brasil, esse roteiro ganhou expressão simbólica. O patrimônio cívico foi sequestrado e convertido em estandartes de guerra cultural. A bandeira verde e amarela passou a ser usada ao lado daquelas de Israel e dos EUA, compondo uma iconografia que associa nacionalismo a religiosidade e subordinação geopolítica.

Uma internacional autoritária compartilha táticas, recursos e legitimidade simbólica

Eduardo Bolsonaro desempenha papel ativo como elo entre a CPAC brasileira e a Heritage Foundation, além de participar de eventos ligados ao sionismo cristão, projetando o Brasil como parte da mesma rede internacional. A Frente Parlamentar Evangélica reforça a lógica no Legislativo, enquanto o discurso fundamentalista serve como instrumento para minar a laicidade e os direitos civis. Nada disso é improviso: o ruído é tático. Escândalos performáticos funcionam para confundir, atrair atenção e deslegitimar o debate racional, enquanto o aparelho de Estado é manipulado nos bastidores.

Um aspecto adicional precisa ser destacado: o “método” não reside apenas nas instituições formais, mas também no ecossistema digital. Plataformas como Facebook, Twitter/X, YouTube e ­TikTok se consolidaram como canais de difusão de pânico moral e mobilização militante. Controlados por poucas big ­techs, seus algoritmos amplificam conteúdos polarizadores e premiam a desinformação e o discurso de ódio. A disputa não ocorre apenas no Congresso ou nas ruas, mas no espaço digital. Campanhas como o ­Brexit, a eleição norte-americana de 2016 e os disparos em massa no ­WhatsApp em 2018 no Brasil inauguraram uma era em que a manipulação das redes digitais é parte central do roteiro global. Nesse contexto, a aliança recente entre CEOs das big techs e a extrema-direita não é contingente, mas estratégica: redefine a esfera pública ao flexibilizar a moderação, amplificar o extremismo e contornar regulações. O resultado é um espaço assimétrico, onde algoritmos e infraestrutura privada se transformam em armas políticas, fragilizando a democracia, a ciência e as soberanias nacionais.

Não podemos nos deixar petrificar pelos olhares dessa Medusa. Assim como Perseu, para derrotá-la é preciso identificar suas limitações e tensionar suas vulnerabilidades. O que está em jogo vai além de eleições. É a própria estrutura democrática e laica da vida pública que se encontra sob ataque. Universidades, imprensa, agências reguladoras, direitos de minorias e o princípio da igualdade perante a lei são alvos preferenciais. A soberania nacional também é corroída, seja pelo alinhamento automático a interesses externos, pelo negacionismo climático ou pelo armamentismo travestido de nacionalismo. O resultado é um projeto de submissão sob a aparência de independência. Resistir a essa ofensiva não significa imitá-la em intolerância ou autoritarismo, mas fortalecer as vias democráticas. Isso implica defender a ciência, a educação pública e o pensamento livre, revitalizar órgãos de controle e agências reguladoras, reconquistar símbolos nacionais como patrimônio plural, denunciar o uso político da fé e reafirmar a laicidade do Estado como pilar de uma democracia inclusiva. 

Publicado na edição n° 1383 de CartaCapital, em 15 de outubro de 2025.

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