CartaCapital
Uma engrenagem planetária disciplinada
movimenta a extrema-direita
E nos tensos interregnos das transições entre o velho que se recusa a desaparecer e o nascer de novos tempos que fenômenos mórbidos proliferam. A política da extrema-direita, nos Estados Unidos ou no Brasil, é muitas vezes tratada como incoerente e irracional. É fácil zombar de seus rituais: pedidos de auxílio a extraterrestres, invocações ao AI-5 em meio a bandeiras verde-amarelas, a invasão do Capitólio com fantasias de viking. Tudo parece improviso de lunáticos. Por trás da aparência de caos, há, no entanto, uma engrenagem internacional disciplinada, operando com objetivos claros e articulada por think tanks ultraconservadores, como a Heritage Foundation.
Documentos como o Project 2025 e o Project
Esther são faces complementares dessa estratégia. O primeiro organiza um manual
para a captura do aparelho de Estado, o segundo mobiliza pânicos morais
enraizados em interpretações religiosas. Ambos se apoiam em redes
transnacionais que conectam igrejas, partidos, agências de desinformação e até
editoras evangélicas brasileiras, como a Casa Publicadora das Assembleias de
Deus. O objetivo é reconfigurar as democracias liberais, submetendo o Estado a
uma moral religiosa conservadora, restringindo direitos civis e reinstalando
uma ordem social hierarquizada sob o pretexto da defesa da liberdade.
Nos EUA, o Project 2025 propõe demissões em
massa no serviço público, substituindo técnicos por militantes ideológicos, a
fusão ou extinção de agências ambientais e educacionais, a imposição do
nacionalismo cristão como doutrina oficial, o uso do Insurrection Act de 1807
para reprimir protestos e o desmonte de políticas de diversidade e inclusão.
Algumas medidas foram testadas no governo Trump, como a saída do Acordo de
Paris e os cortes em agências reguladoras. No Brasil de Bolsonaro, práticas
semelhantes se expressaram no aparelhamento de órgãos públicos, no ataque a
instâncias de controle e na disseminação sistemática do ódio e da
desinformação.
A engrenagem não se restringe ao eixo
EUA–Brasil. Ela conecta-se em eventos como as Conferências de Ação Política
Conservadora, que reúnem líderes como Viktor Orbán, Giorgia Meloni, Santiago
Abascal e Javier Milei em torno de uma pauta comum. Trata-se de uma
internacional autoritária que compartilha métodos, recursos e legitimidade
simbólica. Um alvo central é a produção de conhecimento crítico. A
ofensiva anticiência desqualifica universidades, cientistas e educadores,
promovendo teorias conspiratórias sobre gênero, globalismo, vacinas e clima.
Pretende não apenas privatizar a educação, mas colonizar os currículos com
dogmas, esvaziando as humanidades e enfraquecendo a capacidade de questionar o
estabelecido.
O Project Esther, por sua vez, articula a
dimensão religiosa. Enraizado na doutrina escatológica do dispensacionalismo,
vê o Estado de Israel como cumprimento de profecias e transforma a política
externa em ato de fé. Nos EUA, organizações como a Christians United for Israel
dão corpo a essa visão. No Brasil, ela se difunde por meio de igrejas como a
Assembleia de Deus, o Ministério Internacional da Restauração e a Sara Nossa
Terra, impulsionada por lideranças como Silas Malafaia, Marco Feliciano, René
Terra Nova, Robson Rodovalho e Damares Alves. Esse discurso confere uma
pretensa superioridade moral às alianças entre fé e mercado político, criando
justificativas religiosas para agendas autoritárias. No Brasil, esse
roteiro ganhou expressão simbólica. O patrimônio cívico foi sequestrado e
convertido em estandartes de guerra cultural. A bandeira verde e amarela passou
a ser usada ao lado daquelas de Israel e dos EUA, compondo uma iconografia que
associa nacionalismo a religiosidade e subordinação geopolítica.
Uma internacional autoritária compartilha
táticas, recursos e legitimidade simbólica
Eduardo Bolsonaro desempenha papel ativo como
elo entre a CPAC brasileira e a Heritage Foundation, além de participar de
eventos ligados ao sionismo cristão, projetando o Brasil como parte da mesma
rede internacional. A Frente Parlamentar Evangélica reforça a lógica no
Legislativo, enquanto o discurso fundamentalista serve como instrumento para
minar a laicidade e os direitos civis. Nada disso é improviso: o ruído é
tático. Escândalos performáticos funcionam para confundir, atrair atenção e
deslegitimar o debate racional, enquanto o aparelho de Estado é manipulado nos
bastidores.
Um aspecto adicional precisa ser destacado: o
“método” não reside apenas nas instituições formais, mas também no ecossistema
digital. Plataformas como Facebook, Twitter/X, YouTube e TikTok se
consolidaram como canais de difusão de pânico moral e mobilização militante.
Controlados por poucas big techs, seus algoritmos amplificam conteúdos
polarizadores e premiam a desinformação e o discurso de ódio. A disputa não
ocorre apenas no Congresso ou nas ruas, mas no espaço digital. Campanhas como o
Brexit, a eleição norte-americana de 2016 e os disparos em massa no WhatsApp
em 2018 no Brasil inauguraram uma era em que a manipulação das redes digitais é
parte central do roteiro global. Nesse contexto, a aliança recente entre CEOs
das big techs e a extrema-direita não é contingente, mas estratégica: redefine
a esfera pública ao flexibilizar a moderação, amplificar o extremismo e
contornar regulações. O resultado é um espaço assimétrico, onde algoritmos e
infraestrutura privada se transformam em armas políticas, fragilizando a
democracia, a ciência e as soberanias nacionais.
Não podemos nos deixar petrificar pelos
olhares dessa Medusa. Assim como Perseu, para derrotá-la é preciso identificar
suas limitações e tensionar suas vulnerabilidades. O que está em jogo vai além
de eleições. É a própria estrutura democrática e laica da vida pública que se
encontra sob ataque. Universidades, imprensa, agências reguladoras, direitos de
minorias e o princípio da igualdade perante a lei são alvos preferenciais. A
soberania nacional também é corroída, seja pelo alinhamento automático a
interesses externos, pelo negacionismo climático ou pelo armamentismo
travestido de nacionalismo. O resultado é um projeto de submissão sob a
aparência de independência. Resistir a essa ofensiva não significa
imitá-la em intolerância ou autoritarismo, mas fortalecer as vias democráticas.
Isso implica defender a ciência, a educação pública e o pensamento livre,
revitalizar órgãos de controle e agências reguladoras, reconquistar símbolos
nacionais como patrimônio plural, denunciar o uso político da fé e reafirmar a
laicidade do Estado como pilar de uma democracia inclusiva.
Publicado na edição n° 1383 de CartaCapital, em 15 de outubro de 2025.
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