O Globo
Assim como todo muçulmano deve ir a Meca pelo
menos uma vez na vida, todo brasileiro deveria peregrinar a Brasília
Assim como todo muçulmano deve ir a Meca pelo menos uma vez na vida, todo brasileiro deveria peregrinar a Brasília. Talvez na adolescência, quando há picos de estrogênio, testosterona e idealismo. Jamais na primeira infância (não vai se lembrar), na senectude (vai esquecer) ou na época da seca (vai voltar com as narinas áridas, feridas, como as minhas).
As caravanas partiriam de preferência depois
de uns dias de chuva. Sim, chove em Brasília. É um fenômeno um pouco menos raro
que a neve em Curitiba e ainda não virou lenda urbana, como a garoa em São
Paulo.
Nem precisa chover a ponto de a umidade
relativa do ar atingir níveis compatíveis com a vida humana — e aquele imenso
terreno baldio no meio da Esplanada dos Ministérios vira um gramado. Jardins
redescobrem sua vocação, o sépia some das árvores e dos edifícios, a cidade
floresce. Brasília emerge do pó e reassume o seu posto de utopia.
Ao contrário da antiga capital, com o
Redentor de braços abertos sobre a Guanabara — e de costas para o resto —,
Brasília é um pássaro de asas distendidas tocando o chão do Cerrado. (É um
pássaro? É um avião? Como num teste de Rorschach, cada um veja o que quiser:
libélula, sinal da cruz, arco e flecha. Brasília é uma metáfora de concreto
armado. É o Brasil que podia ter sido — e não foi).
Nossa Caaba não seria a Catedral (só mesmo um
arquiteto ateu para traduzir tão bem o mito da ressurreição), mas o Itamaraty.
Se Pompeia permite saber como viviam os romanos no início da era cristã, o
Itamaraty preserva uma civilização que existiu brevemente, no começo dos anos
1960, até ser soterrada por uma erupção de autoritarismo, corrupção,
incompetência, fisiologismo, estupidez, ganância, mediocridade.
O edifício flutua no espelho d’água (era um
tempo de delicadezas) e se mantém suspenso no deslimite de um vão-livre que só
um poeta saberia calcular. O paisagismo abole a noção do que seja dentro e
fora, natureza e cultura.
Os peregrinos que forem ao palácio dirão um
dia a seus netos, incrédulos:
– Meninos, eu vi. Vi um Brasil que tinha
Niemeyer, Joaquim Cardozo, Lúcio Costa, Burle Marx, Athos Bulcão, Portinari. E
Volpi, Valentim, Weissmann, Krajcberg, Brecheret, Ohtake, Giorgi, Ceschiatti. E
havia um palácio que mostrava ao mundo do que este povo era capaz. Para isso,
juntou Sérgio Rodrigues e mobiliário colonial, Mary Vieira e Debret — o passado
ainda não havia se tornado inimigo do futuro.
Depois vieram tempos em que essa Brasília
seria impossível. Não se convidaria certo arquiteto (“comunista!”), certo
paisagista (“judeu!”), certos artistas (“já tem muito homem branco!”). Em que a
diplomacia esteve nas mãos de negacionistas, antissemitas, apoiadores de
terroristas, e viramos um anão (perdão, portadores de nanismo) diplomático.
Mas o Itamaraty está lá, com a escada que se
ergue numa espiral de fumaça, os salões em cujo teto dança o reflexo da água, o
abraço de tradição e vanguarda.
A romaria precisa incluir também Sol
Nascente, 30 quilômetros adiante. No dicionário, sol nascente e alvorada são
sinônimos; em Brasília, viraram antípodas. Nas colunas do Alvorada e do
Itamaraty o romeiro verá o Brasil que poderia ter sido. Na aridez da Sol
Nascente, uma das maiores favelas do país, verá o Brasil que acabamos por ser.
O Brasil sobre o qual a ave pousada no Cerrado não faz sombra, e onde chuva não
traz verde — mas lama.
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