sábado, 11 de outubro de 2025

Saudade do Brasil. Por Eduardo Affonso

O Globo

Assim como todo muçulmano deve ir a Meca pelo menos uma vez na vida, todo brasileiro deveria peregrinar a Brasília

Assim como todo muçulmano deve ir a Meca pelo menos uma vez na vida, todo brasileiro deveria peregrinar a Brasília. Talvez na adolescência, quando há picos de estrogênio, testosterona e idealismo. Jamais na primeira infância (não vai se lembrar), na senectude (vai esquecer) ou na época da seca (vai voltar com as narinas áridas, feridas, como as minhas).

As caravanas partiriam de preferência depois de uns dias de chuva. Sim, chove em Brasília. É um fenômeno um pouco menos raro que a neve em Curitiba e ainda não virou lenda urbana, como a garoa em São Paulo.

Nem precisa chover a ponto de a umidade relativa do ar atingir níveis compatíveis com a vida humana — e aquele imenso terreno baldio no meio da Esplanada dos Ministérios vira um gramado. Jardins redescobrem sua vocação, o sépia some das árvores e dos edifícios, a cidade floresce. Brasília emerge do pó e reassume o seu posto de utopia.

Ao contrário da antiga capital, com o Redentor de braços abertos sobre a Guanabara — e de costas para o resto —, Brasília é um pássaro de asas distendidas tocando o chão do Cerrado. (É um pássaro? É um avião? Como num teste de Rorschach, cada um veja o que quiser: libélula, sinal da cruz, arco e flecha. Brasília é uma metáfora de concreto armado. É o Brasil que podia ter sido — e não foi).

Nossa Caaba não seria a Catedral (só mesmo um arquiteto ateu para traduzir tão bem o mito da ressurreição), mas o Itamaraty. Se Pompeia permite saber como viviam os romanos no início da era cristã, o Itamaraty preserva uma civilização que existiu brevemente, no começo dos anos 1960, até ser soterrada por uma erupção de autoritarismo, corrupção, incompetência, fisiologismo, estupidez, ganância, mediocridade.

O edifício flutua no espelho d’água (era um tempo de delicadezas) e se mantém suspenso no deslimite de um vão-livre que só um poeta saberia calcular. O paisagismo abole a noção do que seja dentro e fora, natureza e cultura.

Os peregrinos que forem ao palácio dirão um dia a seus netos, incrédulos:

– Meninos, eu vi. Vi um Brasil que tinha Niemeyer, Joaquim Cardozo, Lúcio Costa, Burle Marx, Athos Bulcão, Portinari. E Volpi, Valentim, Weissmann, Krajcberg, Brecheret, Ohtake, Giorgi, Ceschiatti. E havia um palácio que mostrava ao mundo do que este povo era capaz. Para isso, juntou Sérgio Rodrigues e mobiliário colonial, Mary Vieira e Debret — o passado ainda não havia se tornado inimigo do futuro.

Depois vieram tempos em que essa Brasília seria impossível. Não se convidaria certo arquiteto (“comunista!”), certo paisagista (“judeu!”), certos artistas (“já tem muito homem branco!”). Em que a diplomacia esteve nas mãos de negacionistas, antissemitas, apoiadores de terroristas, e viramos um anão (perdão, portadores de nanismo) diplomático.

Mas o Itamaraty está lá, com a escada que se ergue numa espiral de fumaça, os salões em cujo teto dança o reflexo da água, o abraço de tradição e vanguarda.

A romaria precisa incluir também Sol Nascente, 30 quilômetros adiante. No dicionário, sol nascente e alvorada são sinônimos; em Brasília, viraram antípodas. Nas colunas do Alvorada e do Itamaraty o romeiro verá o Brasil que poderia ter sido. Na aridez da Sol Nascente, uma das maiores favelas do país, verá o Brasil que acabamos por ser. O Brasil sobre o qual a ave pousada no Cerrado não faz sombra, e onde chuva não traz verde — mas lama.

 

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