O Estado de S. Paulo
Sem mudanças profundas nas instituições, mentalidades e comportamentos, a perspectiva será um crescimento econômico médio anual de 2,5%
De onde menos se espera – assim reza o ditado popular – é que não vem mesmo nada. Essa é uma das conclusões que poderíamos extrair do excelente texto intitulado Sistema disfuncional, publicado neste espaço pelo jurista Miguel Reale Júnior (4/10, A6). Eis como ele sintetiza sua reflexão sobre nossa trajetória política desde o começo da República: “O presidencialismo sem freios e contrapesos redundou num sistema de irresponsabilidade, gerador de conflitos entre (os) Poderes”.
Contrapesos no estrito sentido institucional
nós tivemos, claro, desde o Poder Moderador estatuído pela Constituição de
1824, e nas posteriormente elaboradas em regimes democráticos, que sempre
consagraram o modelo tripartite de Montesquieu. O problema, como bem assinala o
professor Reale Júnior, é que nem o Poder Moderador do período monárquico nem o
Supremo Tribunal Federal (STF), no republicano, atingiram o objetivo de conter
os excessos do Executivo, do Legislativo e até, por vezes, algumas embutidas em
ações isoladas de partidos políticos. Foi Rui Barbosa quem mais afirmativamente
supôs que o STF pudesse cumprir de forma efetiva a função de “moderar” os
conflitos políticos e os sempre presentes apetites de diferentes protagonistas
da vida pública. Infelizmente, os incessantes embates que observamos no passado
recente evidenciam que a aspiração de Rui Barbosa não tinha o lastro por ele
imaginado; teria, talvez, se fosse uma Corte estritamente constitucional, mas
não na amplitude que assumiu, como ápice do sistema Judiciário, em nossa
experiência republicana.
A questão que me permito suscitar, como complemento à reflexão do dr. Reale, é se o problema não estará no próprio regime presidencialista. Cabe lembrar aqui uma avaliação feita em 1970 (no livro L’Échec au Roi) pelo mestre francês Maurice Duverger: “O sistema presidencial de governo – escreveu ele – só funciona nos Estados Unidos. Em outros países ele sempre degenerou em presidencialismo, ou seja, em ditadura”. Ressaltese que tal afirmação foi feita 46 anos antes da chegada de Donald Trump à Casa Branca; jamais saberemos se Duverger a reiteraria precisamente dessa forma nos dias de hoje.
No passado recente, mesmo antes do surgimento
de Donald Trump, muitos autores importantes começaram a explorar os fatores que
sempre dificultaram o funcionamento dos sistemas presidenciais fora dos Estados
Unidos e, notadamente, na América Latina. No Brasil, um fator que salta aos
olhos é a extrema fragilidade e fragmentação de nossas estruturas partidárias.
A verdade é que o Brasil nunca teve, não tem atualmente e não é certo que venha
a ter no futuro partidos políticos consistentes, responsáveis e de fato
representativos perante seus supostos representados. Organizamos, com inegável
êxito, a base sine qua non da democracia na acepção moderna do termo: a
ampliação do sufrágio. Hoje, o eleitorado, tomado como proporção da população
total, equivale a 72%, cifra praticamente idêntica à dos países economicamente
mais avançados.
Tão grave quanto a inconsistência
programática e o caráter oligárquico de sua organização interna é o fato de
que, entre nós, deficientes não têm sido apenas partidos individuais, mas os
próprios sistemas partidários. Essa característica tem a ver com a manifesta
descontinuidade histórica de tais sistemas. A República extinguiu os partidos
do período monárquico; o golpe armado encabeçado por Getúlio Vargas em 1930
extinguiu os partidos ditos “republicanos” da Primeira República, que, na
realidade, não passavam de partidos únicos estaduais, mantidos em rédea curta
pelos governadores, e o regime ditatorial instituído em 1937 impediu pura e
simplesmente a organização da sociedade em partidos. Na mesma linha, o golpe
militar de 1964 extinguiu os partidos que se haviam formado sob a Constituição
de 1946, substituindo-os, nos termos do Ato Institucional número 2, por duas
“organizações provisórias”, que viriam a ser a Aliança Renovadora Nacional
(Arena) e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB). O governador Franco Montoro
pitorescamente se referia ao primeiro como o partido “do sim” e ao segundo como
o partido do “sim, senhor”. Mas o agudo escárnio de Montoro revelou-se
equivocado, em grande parte graças a seus próprios esforços, tornandose de fato
o principal veículo da redemocratização, conquistada no próprio Colégio
Eleitoral que a corporação militar instituiu com o objetivo de impedir a
ascensão de forças oposicionistas à Presidência da República.
O apanhado acima ajuda a compreender por que
o Estado patrimonialista reinou soberano durante quase dois séculos até se
desintegrar, deixando-nos o amargo legado dos “mensalões”, “petrolões” e
“centrões”. Dado esse quadro, existe base para alguma esperança? Sim, existe. É
uma questão de sobrevivência. Sem mudanças profundas nas instituições,
mentalidades e comportamentos, a perspectiva será um crescimento econômico
médio anual de 2,5%, significando nossa virtual inviabilidade como país. É
pegar ou largar. Simples assim.
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