CartaCapital
A presença de empresários no gabinete de
Trump mimetiza o poder da Siemens e da Krupp na economia do III Reich
No famoso editorial da revista The Economist,
que sugere lições a serem aprendidas pela democracia norte-americana a partir
da demonstração de força da democracia brasileira na punição aos golpistas e
seu líder Jair Bolsonaro, há uma evidência substancial do entorpecimento da
liberal-democracia ocidental.
Segundo os editorialistas, no Sul, a tradição
autoritária acena para a resistência democrática e, no Norte, os guardiões da
democracia e da liberdade estariam se entregando aos impulsos autoritários que
sempre se ocuparam de repelir, dentro e fora de seus espaços nacionais.
Os desavisados imprimem a ideia de que a democracia ocidental é produto da mistura entre instituições políticas livres para abrigar a expressão das maiorias e da atuação da economia de mercado desancorada do estatismo e da regulação excessiva.
As promessas e ameaças de Donald Trump, na
verdade, reproduzem episódios já vividos nos labirintos da economia global.
Dizemos “reproduzem” para exprimir a incompatibilidade do factual imediato com a
concepção que advoga a dinâmica das estruturas nas trajetórias das economias de
mercado monetário-financeiras capitalistas.
Neste cenário, é oportuno o retorno às lições
de Karl Polanyi, que, em 1944, ofereceu ao mundo sua interpretação sobre A
Grande Transformação. Abrimos aspas para o filósofo húngaro:
“A civilização do século XIX não foi
destruída por ataques de bárbaros externos ou internos; sua vitalidade não foi
solapada pelas devastações da Primeira Guerra Mundial nem pela revolta de um
proletariado socialista ou de uma classe média baixa fascista… Ela se
desintegrou como resultado de um conjunto de causas inteiramente diferentes: as
medidas que a sociedade adotou para não ser aniquilada, por sua vez, pela ação
do mercado autorregulável”.
A reestruturação da Ordem Capitalista começou
a se desenvolver a partir dos anos 30 e encontrou seu apogeu no pós-Guerra.
Essa reordenação foi uma resposta aos desastres provocados pelas “falhas” do
mercado autorregulado, agravadas pelo apego dos governos a políticas fiscais e
monetárias conservadoras. Essa miopia liberal-conservadora suscitou violentas
reações de autoproteção das sociedades assoladas por desgraças como o
desemprego em massa, o desamparo, a falência etc.
Nesse período, a economia mundial foi palco
de rivalidades nacionais irredutíveis e as ações particularistas, tomadas em
defesa das economias nacionais ou de grupos sociais, revelaram-se danosas para
o conjunto.
Esse foi o caso das desvalorizações
competitivas que acabaram provocando contração espetacular dos fluxos de
comércio e suscitando tensões nos mercados financeiros. Tais eventos
propagaram-se livremente, sem qualquer providência dos governos, imobilizados
pelos fetiches do padrão-ouro e do equilíbrio orçamentário. Assim, a economia
global mergulhou numa espiral deflacionária que atingiu indistintamente os
preços dos bens e dos ativos.
Frações importantes das burguesias europeia e
norte-americana tiveram de rever seu patrocínio incondicional ao ideário do
livre-mercado e às políticas desastrosas de austeridade na gestão do orçamento
e da moeda, diante da progressão da crise social e do desemprego.
Com a descoordenação dos mercados, setores
importantes das hostes conservadoras aderiram aos movimentos fascistas e à,
assim chamada, “estatização” impiedosa das relações econômicas, como último
recurso para escapar à devastação de sua riqueza.
O fascismo, ensinou Polanyi, não foi o motor
da degradação da ordem capitalista, mas foi a manifestação mais proeminente da
degradação dessa mesma ordem que adentrou o século XX como símbolo maior da
liberdade dos povos, impondo um modelo de liberdade tão ou mais autoritário: o
mercado autorregulado como promotor espontâneo da união entre democracia e
capitalismo.
Malgrado as diferenças históricas, são
inequívocas as semelhanças de inspiração entre o programa de Trump e as
políticas econômicas dos regimes nazifascistas nos anos 1930. As semelhanças
abrangem a proclamação da primazia do interesse nacional; a privatização do
Estado, ocupado diretamente por um comitê de grupos empresariais do Vale do
Silício; e a politização da economia, administrada despoticamente pelo
estatal-privatismo, na contramão da “liberdade de mercado”. A onipresença dos
poderosos das plataformas e das finanças no gabinete de Trump mimetiza o poder
da Siemens e da Krupp na política econômica do III Reich.
O fascismo não foi o motor da degradação da
ordem capitalista, mas a sua manifestação mais proeminente
Com o colapso dos mecanismos econômicos, a
superpolitização das relações sociais tornou-se inevitável. O despotismo da mão
invisível teria de ser substituído pela tirania visível do chefe. O político e
a polícia começaram a invadir todas as esferas da vida social, como se fossem
suspeitas de quaisquer formas de espontaneidade.
As “políticas neoliberais”, na altura dos
anos 1980 e 1990, foram vendidas ao mundo como suportes invencíveis da
democracia. O cenário era tentador: por um lado, entre 1950 e 1980, o mundo
capitalista realizou a façanha de aliar crescimento econômico e justiça social,
amparando-os na regulação dos mercados e na condução das economias pelo Estado;
por outro, assistia-se ao espólio do último grande monumento erguido no período
de degradação anterior à Segunda Guerra Mundial, o império soviético.
As “forças da liberdade” e da burocracia
neoliberal puderam, finalmente, ancorar-se nos pesos e contrapesos da economia
de mercado, aprisionando o Estado à função de instância promotora da
concorrência capitalista.
Acreditava-se que o fim da história dos
autoritarismos e das tiranias estava próximo e que a democracia poderia ser,
finalmente, transportada dos países ricos do Norte para os países pobres e
subdesenvolvidos do Sul cujos sistemas econômicos ainda se viam dominados pelas
pragas do estatismo e da corrupção.
O livre-mercado, responsável por salvaguardar
as instituições democráticas, retornaria empunhando em sua mão invisível o
cetro da justiça e exibindo em sua coroa as leis econômicas que prometiam
corrigir as falhas de mercado pela supressão dos excessos do Estado.
A insurgência do novo fascismo dos Trumps,
Milleis, Bolsonaros e Netanyahus revela, uma vez mais, a inutilidade de
trasladarmos o binarismo Estado vs. Mercado para a igualmente binária
rivalidade entre o novo fascismo, carregado nos braços pelas políticas
neoliberais, e a democracia liberal, que admite como seu mecanismo protetor o
livre-mercado.
Insurge, como necessidade, a radicalização
dos esforços democráticos contra a desigualdade de renda e riqueza, contra os
desfavores da plutocracia, que contamina a dinâmica democrática e elege o
fascismo como seu protetor de última instância. •
Publicado na edição n° 1383 de CartaCapital,
em 15 de outubro de 2025.
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