terça-feira, 28 de outubro de 2025

O projeto de biografia do octogenário no poder, por Maria Cristina Fernandes

Valor Econômico

Na propaganda oficial das redes sociais, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva aparece apenas no último segundo de um vídeo de 1’27’’. Antes do aniversariante entram lavradores, estivadores, pescadores, cientistas, médicos, enfermeiros, operários, estudantes, idosos, negros, catadores, gays e uma cadeirante. Em falas curtas, resgatam virtudes a serem repisadas no ano eleitoral que já começou: teimosia, obstinação, orgulho, contra a maré, calo na mão, luta silenciosa e voz da maioria.

Na imagem do dia em Kuala Lumpur, Lula tampouco aparece. A bordo do avião presidencial, Donald Trump manda os parabéns e tasca outra virtude: “Ele é muito vigoroso, fiquei muito impressionado”. O “happy birthday” aparece no coro de jornalistas estrangeiros e no telão do jantar oferecido a chefes de Estado pelo primeiro-ministro da Malásia, Anwar Ibrahim, que puxou a homenagem com Lula e a primeira-dama, Janja da Silva, no palco.

As duas imagens são torpedos de Lula contra a rejeição que estreitou a margem de sua eleição em 2022. O presidente que chegou aos 80 anos nesta segunda ainda tem metade do Brasil contra si, mas vai se valer da aproximação com o maior bastião da extrema-direita no mundo para tentar conquistá-la. O simbolismo é evidente. Ao saudar a força de um presidente que passou 580 dias preso, Trump joga água no moinho lulista da resistência à Lava-Jato, operação que destampou a rejeição a seu nome e vitaminou a extrema-direita no Brasil.

Lula diz viver o melhor momento de sua vida. Por isso, é nas reações instintivas que mora o perigo. Se agir estritamente de acordo com suas convicções, corre o risco de perder o espaço conquistado junto a Trump. Tome-se, por exemplo, a Venezuela. Está claro que Trump pretende neutralizar a resistência, não a armada, porque inexistente, mas da liderança do Brasil no continente, contra sua investida militar para derrubar o regime de Nicolás Maduro.

Seria o primeiro país sul-americano atacado pelos EUA na história. A gravidade do precedente explica a ênfase de Lula em manter a região como uma zona de paz. Nesta condição de mediador para a qual se ofereceu, teria que lidar não apenas com este precedente, mas também com a centralidade que o binômio imigração-drogas tem para Trump e com a vocação deste para “autocrata das Américas”, além da pressão sobre as três fronteiras da Venezuela (Brasil, Colômbia e Guiana).

Ao longo de sua entrevista em Kuala Lumpur, Lula sugeriu que o entorno de Trump é mais envenenado contra o Brasil do que o próprio presidente americano (“se ele quiser negociar, terá que colocar à frente gente que também queira”, “ele era, de longe, o mais entusiasmado na sala”). No avião para Tóquio, Trump já parecia o empresário do mercado imobiliário que disfarçava sua avidez convencendo seus clientes de que o interesse de fechar negócio era deles — “Eles [Brasil] querem um acordo, vamos ver”.

Por mais que o acordo custe a sair, o fato é que a oposição bolsonarista causou um dano ao Brasil, Lula assumiu a iniciativa de revertê-lo e conseguiu o que precisava para traduzir tudo isso para o eleitor. A situação que encontrará na política doméstica ao voltar é que está mais turva. Não fosse Niemeyer, daria para dizer que há um Trump em cada esquina de Brasília.

Lula é favorito e enfrenta uma oposição em pé de guerra interna, mas os maiores problemas estão em seu próprio campo, vide o Congresso. Lula já está perto de prescindir da chancela parlamentar neste mandato, mas ainda precisa aprovar um pacote fiscal e o Orçamento de 2026, além de indicações que passam pelo Senado, como a da vaga no STF. Como os congressistas veem seu poder de barganha se extinguir, resolveram elevar o preço.

A seu favor, ainda têm as máquinas eleitorais. Lula, se reeleito, gostaria de ter uma situação parlamentar mais folgada do que a pinguela que o tem sustentado. Graças a Paula Lavigne, o governo viu que pode arregimentar a rua a seu favor e ameaçou fazê-lo quando o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), ameaçou colocar o licenciamento ambiental em votação, a semanas da COP30.

Nem toda pauta, porém, leva gente pra rua. Vide, por exemplo, o cabo de guerra com o devedor contumaz. O mais célebre deles, a Refit, teve sua operação interditada depois que a Receita, no curso da operação Carbono Oculto, apreendeu quatro navios com combustível importado. Neste fim de semana, a refinaria conseguiu que a ANP revisse parte dessa interdição.

Com o poder de aprovar diretores das agências, o Senado tornou-se avalista de sua atuação. Nenhuma decisão sua passa ao largo dos senadores. Por isso, a blindagem da Refit é vista como parte da remarcação de preços em curso em Brasília. Como o Centrão já dobrou — e se aliou — a governos petistas em muitas empreitadas do gênero, muitas de suas lideranças acreditam que podem reeditar a parceria.

O que talvez não entre nesta conta é que o Lula que ambiciona o quarto mandato parece ter, pelo menos, uma diferença. No início do século, tinha um projeto de poder. A Lava-Jato, na sombra e na luz, é seu subproduto. Octogenário, o presidente tem um projeto de biografia. Graças à oposição, os planos de se transformar em paladino da democracia mundial contra o trumpismo se transformaram na defesa do Brasil. Cá dentro, graças aos “aliados”, os planos, além da conquista do quarto mandato, passam por viabilizá-lo.

 

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