O Estado de S. Paulo
Em vez de ser um ato isolado de precarização, a pejotização é o sintoma de um sistema que penaliza quem contrata e dificulta a geração de postos formais
O tema da “pejotização” frequenta as
discussões da política e dos tribunais há alguns anos e o dissenso parece
crescente. O futuro dos direitos, das relações de trabalho, da Previdência e
até da eficiência da economia brasileira está em jogo. Os aspectos que mostro
na sequência não têm o objetivo de defender uma posição. Espero jogar mais luz
sobre o problema e mostrar aspectos da articulação com a economia que vão muito
além da relação comercial ou trabalhista em si.
O Brasil construiu, desde os anos 60, sua estrutura previdenciária sobre a folha salarial. Era uma saída correta, o mundo do século passado estava assentado num formato produtivo calcado em relações de trabalho baseadas no assalariamento. No Brasil, essa realidade era ainda mais forte, dada a Consolidação das Leis do Trabalho e a Justiça do Trabalho, elementos constitutivos de uma espécie de pax social.
A parcela mais importante do financiamento da
Previdência Social sempre foi a contribuição do empregador e isso não era um
elemento nocivo quando todas as empresas e setores tinham folhas salariais
expressivas. Mas a tecnologia mudou e as empresas mudaram. Muitos setores, no
mundo e no Brasil, já são muito pouco dependentes de mão de obra na produção.
Assim, restou a alguns poucos setores a tarefa de financiar os gastos
crescentes da Previdência.
Essa situação fica mais dramática pela
concorrência externa. Seja para exportar, seja para concorrer com bens
importados no mercado interno, as empresas com produção em realização no Brasil
têm de ajustar-se a uma imensa disparidade tributária. Os produtores externos,
nem de longe, têm o peso da Previdência em sua estrutura de custos. A
pejotização é, em parte, uma resposta direta ao peso dos encargos sociais que
incidem sobre a folha das empresas brasileiras.
Embora isso seja verdade, é preciso separar o joio do trigo. A tese que sustenta que os custos derivados da legislação trabalhista são exorbitantes é falaciosa. O empregado formal implica em FGTS, férias, 13.º salário e alguns outros benefícios, mas esses são custos do trabalho, que a empresa pode administrar na relação de contratação.
Vale frisar que temos uma distorção de
caráter macro que impacta decisões microeconômicas: insistir em fazer a folha
salarial ser a base do financiamento do sistema previdenciário é um erro que
custará caro ao País.
É necessário, no entanto, olhar as mudanças
no mundo real da produção e nas relações de trabalho. O avanço da tecnologia
produziu um quadro empresarial que nada tem a ver com o vivido 50 anos atrás.
Bens e serviços têm ciclos de vida muito mais curtos e demandam organização da
produção flexível, seja nos negócios entre empresas, seja nas relações de
trabalho. Acabou o tempo de produzir a mesma coisa por vários anos com os
mesmos trabalhadores. Essa é uma forma de ganhar eficiência que se espraiou
pelo mundo. Impedir que seja usada no Brasil será um caminho para a estagnação.
Se o mundo do capital mudou, o mundo do
trabalho sofreu uma revolução muito mais forte. O assalariamento não tem o
mesmo valor que tinha antes. Relações de trabalho mais flexíveis, com menos
poder da chefia, são desejadas pelas novas gerações. Em todas as áreas
relativas à informática e às comunicações, por exemplo, o trabalho é muito mais
calcado em projetos de prazo definido e envolve qualificações profissionais
específicas que envolvem uma dinâmica bem distinta da que é possível gerir
pelos marcos da CLT.
Não há dúvida que, em muitas situações, por
exigência do contratante, um posto de trabalho formalmente assalariado pode se
transformar num contrato da empresa com uma pessoa jurídica em que o
ex-assalariado é o único trabalhador. Mas temos que notar que muitas vezes a
decisão é do próprio trabalhador que não deseja mais a forma de trabalho sob
hierarquia e intenciona ter a liberdade de vender seus conhecimentos a outro.
Para complicar ainda mais a questão, temos o
início da transição no campo tributário. Os novos IBS/CBS serão calculados pelo
diferencial entre todas as vendas e todos os gastos para produzir bens e
serviços. Apenas lucros e salários não serão contabilizados para gerar o
crédito que será abatido dos débitos na apuração do tributo a pagar. É evidente
que as empresas estenderão o limite do risco jurídico ao extremo para
transformar atuais assalariados (que não geram crédito tributário) em pessoas
jurídicas que geram créditos.
Em última análise, de um lado, o fenômeno
revela uma distorção estrutural: o Estado cria incentivos para que o próprio
mercado fuja do emprego formal. Em vez de ser um ato isolado de precarização, a
pejotização é o sintoma de um sistema que penaliza quem contrata e dificulta a
geração de postos formais. De outro, o mundo da produção e do trabalho mudou e
isso tem de ser enfrentado pelas instituições. A rearticulação das políticas de
proteção ao trabalho e à Previdência é urgente. E não devemos deixar o encargo
disso apenas ao Judiciário.
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