quarta-feira, 12 de novembro de 2025

O que o Brasil tem para ensinar ao mundo? Por Fernando Mello Barreto

O Estado de S. Paulo

A lição dada pelo Brasil não é a da erradicação de ameaças à democracia, mas sim a da capacidade de repeli-las por meio dos meios institucionais

Em Ottawa, no início dos anos 90, pouco antes de iniciarmos uma série de palestras organizadas pela Câmara de Comércio bilateral, o então embaixador do Canadá no Brasil me fez uma pergunta: “O que o Brasil tem para ensinar ao mundo?” À época, pareceu-me ser uma indagação típica de país desenvolvido ansioso para ensinar os outros. Minha resposta inicial foi a de que nós, os brasileiros, tínhamos, naquele momento, mais a aprender do que a ensinar. Embora o Brasil vivesse tempos de efervescência democrática, ainda carregava o peso de décadas de instabilidades e crises (elevada dívida externa, inflação desenfreada, desigualdades sociais, entre muitas outras mazelas). O diplomata canadense, porém, insistiu que buscava uma lição global não baseada nos desafios conhecidos, mas nas características que, mesmo submersas, tornavam, a seu ver, o Brasil um país positivamente singular.

Cedi ao apelo de reflexão apresentado pelo afável colega. Comecei por descartar velhas ideias que o tempo havia provado serem equivocadas ou exageradas, tais como o mito da democracia racial, propagado por Gilberto Freyre, a cordialidade do brasileiro, cunhada por Sérgio Buarque de Holanda, e até a propalada ideia do jeitinho brasileiro.

Restou, porém, uma característica objetiva: o Brasil não participara de nenhuma guerra própria desde 1870. Com exceção do envio de tropas à Itália na Segunda Guerra Mundial para combater o nazismo, o País consistentemente optara pela diplomacia, e não pelas armas para a solução de controvérsias internacionais.

Essa pacificidade afigurouse ativo relevante ainda que pouco ressaltado. Resultara não de mera coincidência, mas de uma tradição de Estado desenvolvida sobretudo a partir do início da República. Não teria ligações com o pacifismo ético ou filosófico de pensadores como Tolstoi, Gandhi ou Bertrand Russell, uma vez que jamais ocorrera ao Brasil, por exemplo, uma opção como a da Costa Rica, de abolir suas Forças Armadas.

Tampouco constituía uma virtude moral superior que se estendesse ao nosso cotidiano ou à nossa política interna, marcada por golpes de Estado, com participação de militares, em 1889, 1930, 1937 e decididamente em 1964. A estabilidade externa, forjada na prática diplomática baseada em atuação pacífica, se veria ainda mais reforçada, em 1988, pela renúncia constitucional a armas nucleares e pelos esforços para mediações (como a havida entre o Peru e o Equador) e a frequente participação em forças de paz da ONU.

A que atribuir essa pacificidade? Uma primeira raiz poderia estar, em parte, na herança da eficaz diplomacia de Portugal, uma pequena nação europeia, que conseguira garantir para si direitos sobre vastas terras (pasmem!) ainda a serem descobertas (Tratado de Tordesilhas) e ampliá-las, mais tarde, com base no conceito de uti possidetis (Tratado de Madri). A consolidação dessa tradição diplomática se dera com o prodigioso trabalho do Barão do Rio Branco, que negociou e solucionou praticamente todas as controvérsias de fronteiras com nossos numerosos vizinhos.

Desde então tenho pensado que essa pacificidade constitui elemento importante no nosso capital diplomático, um componente relevante do soft power nacional. Ser um ator internacional confiável e desinteressado em aventuras militares, acreditava eu, deveria facilitar sua atuação como mediador. Desapontei-me, no entanto, não ter essa característica nacional pesado suficientemente durante as diversas investidas brasileiras para uma reforma no Conselho de Segurança da ONU, em que a pacificidade não parece ser uma característica dos membros permanentes daquele órgão, uma vez que todos possuem armas nucleares, como se esse fosse um requisito de facto para ser aceito naquele “clube” restrito.

O que eu jamais imaginaria, três décadas atrás, é que o Brasil daria agora outra lição externa ao processar e condenar ameaças golpistas e a invasão de seus órgãos públicos, numa demonstração de que as crises políticas podem ser superadas pela força da lei e das instituições. De fato, nas últimas semanas, matérias na imprensa internacional (artigo de Steven Levitsky no jornal The New York Times, em 15/9, e nas revistas The Economist, em 25/8, e Foreign Affairs, em 25/9) apontaram o Brasil como um exemplo de resiliência institucional. Para essas prestigiosas publicações, a forte resposta do Judiciário brasileiro demonstrou uma maturidade institucional inédita, uma vez que conseguira fazer prevalecer o Estado de Direito em momento de enorme fragilidade.

A lição dada pelo Brasil não é a da erradicação de ameaças à democracia, pois essas podem sempre ocorrer a todo momento e em toda parte, mas sim a da capacidade de repeli-las por meio dos meios institucionais, como, aliás, os ganhadores do Prêmio Nobel Daron Acemoglu e James A. Robinson preconizam no seu livro O Corredor Estreito, em que descrevem o caminho apertado que as democracias devem atravessar para não caírem em formas diversas de tirania. 

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