sexta-feira, 30 de abril de 2010

Reflexão do dia – Hannah Arendt


Só existe uma diferença essencial entre Hegel e Marx, embora, verdade seja dita, de importância catastrófica: Hegel projetou a sua visão histórico-mundial exclusivamente para o passado e deixou a consumação esbater-se no presente, ao passo que Marx,”profeticamente”, projetou-a, ao contrário, para o futuro e compreendeu o presente como um simples trampolim.


(Hannah Arendt, no livro A promessa da Política, pag. 118 Editora DIFEL - Rio de Janeiro, 2008)

A busca do diálogo:: Merval Pereira

DEU EM O GLOBO

A conferência da Academia da Latinidade em Córdoba foi preparatória da reunião da Aliança das Civilizações que se realizará em maio no Rio de Janeiro. Há três princípios fundamentais, segundo o secretário-geral Candido Mendes, que é também o representante brasileiro no organismo da ONU: é preciso desconstruir a ideia do diálogo, para que ele não seja apenas o resultado de um voluntarismo ingênuo; entender a necessidade de coexistência com a irracionalidade de um mundo que vai continuar dominado pela guerra das religiões a partir dos atentados de 11 de setembro nos Estados Unidos; e, por último, evitar os fundamentalismos dos dois lados, que o governo Bush encarnou.

Houve um consenso entre os palestrantes: é preciso compreender que estamos num momento em que a estrita razão ocidental não representa mais o império da civilização.

O trabalho de Lucien Sfez, professor emérito da Universidade Paris I Pantheon Sorbonne, mostra a necessidade de se chegar à multirracionalidade, de maneira a compreender que muitas vezes a razão como nós a entendemos é uma razão ocidental.

Esse mundo novo do diálogo das culturas vai enfrentar uma discussão muito grave, que é a de que nós não estamos lidando apenas com o diferente, mas com "o outro".

Foi o que procurou demonstrar o sinólogo François Julien, para quem a China não é apenas diferente, mas tem uma outra visão do mundo que repercute até mesmo na questão dos direitos humanos, que não é vigente lá.

Outro ponto importante debatido durante o seminário foi a questão do colonialismo, que, apesar de estar sendo vencido em todo o mundo, manteve sobrevivências de determinadas atitudes e posições, como defendeu o professor Walter Mignolo, diretor do Centro de Literatura para os estudos globais e de Humanidades da Duke University nos Estados Unidos.

A visão predominante de progresso ainda seria neocolonial desse ponto de vista, e é preciso chegar à noção de que não existem progressos simultâneos e que, sim, eles podem ser paralelos.

Não é possível que uma cultura enfrente o padrão de progresso da outra como num confronto. Uma questão ficou no ar: estamos realmente aceitando a premissa da alteridade em vez da premissa da diferença?

A Aliança das Civilizações, cujo alto representante é o ex-presidente de Portugal Jorge Sampaio, é um projeto das Nações Unidas que tem três países como líderes: Turquia, Espanha e Brasil, e o objetivo de encontrar saídas para que esse encontro internacional se dê.

Há problemas a serem enfrentados, como o fato de que a Turquia ainda não entrou realmente na Comunidade Europeia. E a necessidade de que exista um protagonismo que não esteja ainda com essa ideia fechada de hegemonia ocidental, para aceitar que, em casos como o do Irã, se permita que ele se explique à comunidade internacional, como estão negociando Brasil e Turquia.

Ao mesmo tempo, será preciso que o governo do Irã assuma compromissos com a comunidade internacional, tanto em relação ao seu programa nuclear, submetendo-o à inspeção dos organismos da ONU, quanto ao respeito aos direitos humanos.

O sociólogo francês Alain Touraine acha que a integração da Turquia à comunidade europeia servirá de reforço ao papel daquele país na negociação com o Irã como ponte entre o Ocidente e o Oriente.

O mundo atual, sem centros e periferias, tem novos protagonistas como os membros dos BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China).

François Julien destacou a chamada "cultura da paz" cultivada historicamente pela China, que seria um obstáculo à tese das "guerras preventivas" que foi assumida pelos Estados Unidos durante o governo Bush.

Essa tradição da China, que não tem história de expansão colonialista, hoje impede que se tenha um maior consenso sobre as sanções ao Irã por seu programa nuclear fora de controle das agências internacionais.

O governo Obama está começando a sair desse clima de "guerras preventiva" e se aproximando de um acordo sobre as sanções com a China, que sempre foi um país centrado sobre si mesmo em sua imensidão.

Como desdobramentos possíveis, é preciso saber como é que, de fato, os direitos humanos podem ainda ser universalizados.

A tentativa da Aliança das Civilizações é chegar-se a uma plataforma básica de direitos humanos, e a ideia central seria definir o que são os crimes contra a humanidade para depois expandir esses conceitos.

Outra questão fundamental é a necessidade de preservar a democracia diante da identidade nacional, que, em muitos países, especialmente a China, tem prevalência.

Há também a necessidade de estabelecer mecanismos de auxílio internacional, sobretudo para a África e outras regiões mais pobres do planeta.

A China, muito por interesse próprio nas matérias-primas de que necessita, está atuando firmemente no auxílio aos países africanos.

O Brasil pode ter papel relevante nesse contexto de ajuda humanitária, com a ampliação de seu papel no mundo, seja tanto com os financiamentos do BNDES na América Latina quanto com as ações das forças de paz a serviço da ONU.

Em nome da História:: Dora Kramer

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

No debate dos ministros do Supremo Tribunal Federal que manteve a Lei de Anistia destacou-se um aspecto para o qual não se costuma conferir relevância: as dificuldades do exercício da democracia.

Cheio de nuances, o sistema de liberdade não se presta facilmente a maniqueísmos. Nem sempre a tese de aparência mais justa é a mais correta com a História.

O ministro relator Eros Grau foi ao ponto essencial no primeiro voto do julgamento: os termos da lei foram intensa e detalhadamente negociados para dar início ao processo de transição democrática e por isso não podem ser julgados por parâmetros atuais e sim examinados com a lógica da época.

A vontade - e mesmo a necessidade - de punir torturadores, argumento central dos adeptos da revisão, é legítima, defensável e compreensível.

Mas não pode sobrepor-se ao amplo acordo negociado por lideranças políticas, sociais, religiosas, aprovado pelo Congresso que permitiu a volta ao Brasil dos exilados e deu início à redemocratização do País que agora em 2010 completa 25 anos.

E não foi um acordo de cúpulas. O movimento pró-anistia começou nas ruas, com gente correndo risco para atender à convocação para lutar por "anistia ampla, geral e irrestrita".

Pedia-se o mais para se conseguir o possível. Assim foi feito, negociado, acertado, aprovado.

Não se trata, como a confusão de argumentos em alguns momentos dá a entender, de esconder a História do Brasil, de negar alento a famílias de mortos ou aos torturados nas mãos dos bárbaros a serviço do arbítrio.

A abertura dos arquivos da ditadura é outra questão diferente da proposta ao exame do STF.

Mudar uma lei elaborada de acordo com os parâmetros e as razões de uma determinada época face uma circunstância específica, como argumentou o ministro Eros Grau, não se justifica 31 anos depois quando a ótica e a lógica são outras.

A menos que se reabrisse a discussão não da interpretação da lei existente, mas talvez da elaboração de uma nova Lei de Anistia caso os representantes políticos, sociais, religiosos assim entendessem necessário.

Do contrário, a releitura unilateral considerando excluídos na anistia os crimes cometidos apenas por agentes do Estado, recende a vingança e foge à ideia do desarmamento de espíritos da época só porque a correlação de forças agora favorece a parte que na ocasião precisou ceder para sobreviver.

É o caminho mais curto, na democracia o mais fácil. Mas não é o mais correto do ponto de vista da regra estabelecida e pelos signatários, bem entendida.

Duas frentes. Vestido no figurino de estadista, o pré-candidato do PSDB, José Serra, correu para o Twitter para parabenizar o presidente Luiz Inácio da Silva pelo prêmio da revista Time, como um dos líderes mais influentes do mundo.

Enquanto isso, deputados de oposição saiam de pau e pedras criticando a premiação. Moral da história: Serra procura não dar oportunidade para o contra-ataque deixando a tarefa do combate mais pesado para a soldadesca com quem Lula e Dilma não podem debater.

A estratégia inicial da oposição pegou o PT de surpresa, mas evidentemente que essa moleza uma hora há de acabar.

Fábulas. Tem tucano dizendo que é até melhor que Aécio Neves não seja mesmo o vice de José Serra.

Donde ficam muitas dúvidas. Primeiro: se isso agora é soberba, despeito ou despiste.

Segundo: se aquela sangria desatada em prenúncio de fim do mundo caso a chapa presidencial não reunisse os presumidos "donos" dos dois maiores colégios eleitorais do País era cena, insegurança ou precipitação.

Amigo urso. Dilma Rousseff não perde nem ganha votos com a manifestação de apoio de Hugo Chávez. Mas na atual fase o afago de ditadores não favorece o conjunto da obra.

De tropeço em tropeço:: Eliane Cantanhêde

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

BRASÍLIA - A campanha de Dilma Rousseff tem tudo demais, e a de José Serra parece ter tudo de menos, quando se trata de alianças, palanques, tempo de propaganda na TV e equipes de jornalismo, de agenda, de internet. Mas o resultado é que a campanha de Dilma também tem errado muito mais. Digamos que proporcionalmente mais: quanto mais gente e parafernália, maior a chance de erros.

Afora o ataque ao Mercosul, equivocado sob vários ângulos, Serra tem errado pouco. Já Dilma já tem uma bojuda coleção de "tropeços verbais, agenda errática, coordenação inchada e mau uso da estrutura de internet", como disse o jornalista Ricardo Kotscho, ex-assessor de Lula em campanhas e no governo. Logo, insuspeito.

Do "Dilmasia" na cara de Hélio Costa em Minas à fraude da foto de Norma Bengell, passando pelas agendas canceladas de última hora, o que se imagina é que estão batendo cabeça.

Como se um dissesse para Dilma usar rosa, o outro exigisse azul; um a empurrasse para o Ceará, o outro puxasse para Santa Catarina; um quisesse um site programático, o outro estimulasse a troca de figurinhas da militância.

Por enquanto, até pode. As candidaturas ainda não foram oficializadas e, afinal, a Copa do Mundo vem aí. A fase da campanha, portanto, é de aprendizagem e aquecimento. Mas não vai ser sempre assim.

Em campanhas muito polarizadas, em que se fala até em definição no primeiro turno, os candidatos e candidatas têm não apenas de acertar, firmar diferenças a seu favor e conquistar confiança mas principalmente não errar.

Dilma tem Lula e o vento a favor, mas a campanha tem de ajudar, não atrapalhar, e cabe a ela fazer o resto, ou o principal. Campanhas são cada vez mais sofisticadas e científicas, mas também cometem erros (como se vê) e não fazem milagre. Não tem santo nem pesquisa que substitua ou reinvente Sua Excelência, o(a) candidato(a).

Zélia Duncan - Disfarça e Chora/Cartola

O Brasil pode mais? :: Lourdes Sola

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

O mote da campanha de José Serra - "O Brasil pode mais" – tem suscitado reações intensas. Contrastam com a carência de análises coerentes de seu discurso, feito na mesma ocasião, quando do lançamento de sua candidatura à Presidência pelo PSDB. O contraste é compreensível. É mais fácil se posicionar ante um mote de apelo eleitoral, necessariamente abstrato, contra ou a favor do qual cada um mobiliza as suas próprias razões, valores e emoções. Mas há algo mais.

Começo por uma constatação. Os comentários sobre o discurso de Serra se agrupam em duas vertentes. Por um lado, a crítica, explícita ou velada, da posta ausência de propostas substantivas, que alguns estendem também ao discurso de lançamento da ministra Dilma Rousseff. Por outro, a ênfase nos pontos de convergência entre ambos, com destaque para a “política industrial", para uma suposta "inspiração cepalina", para o "desenvolvimentismo". Comum a ambas as vertentes é uma atitude até há pouco frequente entre os analistas de mercado, financeiro ou eleitoral. Tem que ver com as incertezas de um quadro sem precedentes, não só pela ausência de Lula como candidato, mas também porque o risco eleitoral é comparativamente baixo, e com a relativa continuidade da política econômica. Nesse quadro, é racional assinalar as convergências, mesmo ao preço de diluir as diferenças.

Além disso, há a força do hábito. O foco no ativismo de Estado como inseparável do bom desempenho da economia e da justiça distributiva sempre frequentou nossas disputas. políticas. O que intriga é que essa equação seja retirada do fundo do baú e exposta tal qual alheia às mudanças na geografia política e econômica internacional e às novas formas de inserção do País nesse novo cenário - que inclui também novas responsabilidades políticas.

O discurso de Serra rompeu com essa e outras formas de habitualidade e desarranjou o cenário intelectual esperado, lá, cá e acolá. Obriga a uns e outros a fazer vários ajustamentos. Uma razão é que não se presta a carimbos, ao contrário, obriga à reflexão e convida ao debate. Por isso desconcerta as mentes e os corações habituados aos rótulos, como substitutos da análise. Embora indispensáveis em todo tipo de marketing, não há como negar o peso da habitualidade: os carimbos foram erigidos no recurso retórico mais elevado da disputa política, com funções de poderoso anestésico intelectual.

Outra razão, substantiva, é que o discurso do pré-candidato representa um ponto de inflexão pertinente. É acessível, despojado da retórica técnico-econômica a que fomos habituados quando se trata de legitimar uma filosofia de governo. Ao mesmo tempo, tem apelo programático, porque ancorado num sistema de valores que serve de eixo a uma visão abrangente e de longo prazo de nossa democracia: como um processo de construção social - sem dono, portanto, mas sob a batuta dos líderes citados desde Tancredo Neves, com destaque para FHC. Discorde-se ou não dessa narrativa, ela aponta para uma dupla mudança histórica: no estilo de fazer política de oposição e como correção de rumos nos padrões de concorrência eleitoral.

Mas em que sentidos o Brasil pode mais? Há vários, e aqui apenas um deles será abordado. Antes, porém, é bom reconhecer que a resposta não se esgota na cobrança de um programa aos pré-candidatos e aos partidos. Faz- se necessário um mapeamento dos avanços e desafios, concebido como atividade cívica, ou seja, como construção de uma agenda pública, envolvendo analistas, consultores, acadêmicos e lideranças do terceiro setor, com capacidade propositiva em suas respectivas áreas.

Nessa linha, vale a pena retomar a noção de Estado em outro registro, para além de seu papel como agente de transformação econômica e como protagonista-mor de justiça distributiva. É o registro do Estado como poder público, cuja forma mais alta é o Estado como Lei, portanto inseparável do constitucionalismo liberal. É aquele que melhor evidencia a vocação democrática de um país. É nessa dimensão que se situam as conquistas que nos distinguem de uma parte da América Latina e para as quais o presidente Lula deu sua contribuição, mas entre outros. É dessa perspectiva, também, que melhor se observam os focos da tentação autoritária, típicos da cultura política da região.

Três tendências características nos assombram, em contraste com os regimes democráticos plenamente institucionalizados. Nestes, os conflitos se encerram com as decisões das cortes mais altas, aceitas como finais pelos interesses contrariados, porque introjetaram os procedimentos preestabelecidos como um valor, ou seja, como um princípio, e se ajustam a essa lei, internalizada. Na trajetória dos países onde prevalece a tentação autoritária, ao contrário, os perdedores se empenham em rediscutir, a cada vez, os fundamentos da Lei, e a redefini-la. Por outro lado, em sua forma mais extrema, os vencedores se empenham em reconstitucionalizar o país, da perspectiva dos seus interesses. Daí a instabilidade intrínseca desses regimes e também o segundo movimento. A possibilidade de exercer influência efetiva fora dos canais processuais estabelecidos permite que o espaço e as arenas decisórias em que se dá a formação das políticas públicas sejam recria dos a cada oportunidade, a cada decisão. A eficácia do processo decisório e a continuidade das políticas públicas ficam comprometidas e afetam a “capacidade de gestão". A terceira característica é a resistência dos próprios governantes em fazer valer a Lei, quando contraria seus objetivos políticos. Se isso ocorre, veem-se obrigados a justificar suas ações em termos de suas conseqüências políticas (supostamente benignas) e abdicam da condição de autoridade constituída. O que abre espaço para um novo ciclo do "Estado politizado" típico da América Latina.

* Professora da USP, diretora do Global Development Network, do International Institute For Democracy e do Conselho Internacional de Ciências Sociais. Foi presidente da Associação Internacional de Ciência Política

Horizonte banda larga:: Wilson Figueiredo

DEU EM O&N

Os petistas não perdem oportunidade de realçar suas posições de princípio, que Lula ignora solenemente, pois para ele só resultados importam.

Ao fim do segundo mandato presidencial aos seus cuidados, o PT não se apresenta diferente no modo de pensar segundo a cabeça de Luiz Inácio Lula da Silva, ressalvado entre parênteses o direito de divergir nos exercícios de raciocínio radical. Os petistas não perdem oportunidade de realçar suas posições de princípio, que Lula ignora solenemente, pois para ele só resultados importam. Teorias podem esperar. Ficou mais difícil ao petismo avaliar, sem se valer de razões que movem o mercado propriamente dito, o indigesto sintoma que alvoroçou a República com o inesperado reforço da classe média, menosprezada pela teoria marxista como fabricante de história.

Com a redução gradativa do proletariado (que, no sentido original, sobrevive mais na teoria do que na realidade) e, de baixo para cima, a expansão da classe média, serenou a crise que falava grosso e assustava os que têm a perder. Ninguém podia imaginar que, deslocando-se por fora, iria entrar em cena, em termos de consumo, uma nova fatia da classe média surgida do nada (pelo menos para os teóricos que fazem plantão à espera de uma crise promissora). Desde que o consumo voltou a crescer, graças à redução de impostos e antes que aparecesse a explicação mais conveniente, a classe média passou a ser politicamente mais valiosa do que a mão-de-obra demitida para reduzir custos numa conjuntura de sombras que logo se dissiparam.

O desemprego não floresceu e, em pouco tempo, todos os demitidos foram reconvocados como se nada tivesse acontecido. Só o presidente Lula não teve medo porque, da grande crise de 1929, só sabia por ouvir falar. Mais uma vez, o Brasil que se desloca à margem da História se apresentou como campo de experiência sem teorias. Lula, por falta de convicção, apostou no que viu e acertou no que, por falta de tempo, nem precisou entender, nem ninguém explicou. Era inútil.

Que o eleitorado engrossou, não há dúvida. Nos dois sentidos. Em número e até em disposições (vá lá, pequeno-burguesas). A classe média se reforçou pela via do consumo, graças a estímulos para se endividar, eletro-domesticamente falando, com ímpeto voraz. As urnas apontarão — é o que se saberá oportunamente — melhor do que palpiteiros de ocasião, a preferência dos que entram na democracia pelos portões do consumo, já suficiente para confirmar que sempre há alguma surpresa. Não apenas por ser da natureza das urnas não corresponderem à ilusão segundo a qual uma eleição trás implícita a anterior. A experiência atesta que nenhuma eleição tem a ver com a anterior e com a que vier depois. Pode é ocorrer aqui e ali a mera coincidência em que muitas carreiras naufragam. É o caso também de alguém se eleger por intermédio de outro. Essa gente que está chegando e subindo socialmente para ficar, também não volta atrás. É classe média com sentido pragmático. Voto ensina a votar.

Sem segundas intenções, a classe média veio para ficar e só falta oficializar o novo Dia do Fico na coletânea de surpresas que a História do Brasil registra. Posto de lado o terceiro mandato, não se trata de algo parecido que se descarta por inoportuno, mas é prudente lembrar que não se brinca com ascensão social. Pela cabeça desse eleitor que descobriu o voto como produto social de consumo conspícuo já passam tentações sofisticadas, mesmo para os que vão chegando à classe média como for possível, aos trancos e barrancos. É o que permite desde já considerar à vista a social democracia como solução natural que a ortodoxia teórica abominou desde o Século 19, e o Século 20 não lhe concedeu oportunidade. O 21 está apenas começando.

A eleição geral (presidente, governadores, senadores, deputados) vai dizer alguma coisa a respeito do que se chama de futuro, mas já é, nos sinais exteriores, o presente se impondo. O futuro está retoricamente esgotado. Desde que não se conta mais com revoluções, é por aí mesmo, e pelo que a democracia pode dar conta. Pelo voto.

Não faltará quem veja esse pessoal que se apresenta ao consumo e às urnas como eleitor, com o cartão de crédito e com um pé atrás, ainda à esquerda para não se constranger e parecer liberal, enquanto o alfabeto garantir letras de classificação social aos carentes de saúde, educação e segurança que chegam para se acomodarem, em levas inevitáveis.

A oposição já devia ter percebido que a história não joga amarelinha, antes tem ao seu dispor estoque de surpresas. Por surpresa, deve-se entender também a ocorrência de algo que não é previsível, senão pela estreita margem por onde as pesquisas se expressam com mais cuidado do que ciência. Depois de consumado o episódio eleitoral, o vencedor se contentará com a vitória, mas não sairá atrás das causas que o favorecerem (mais adiante os analistas as recolherão junto ao meio-fio e com elas farão vistosos buquês de explicações exóticas). Derrotas só ensinam a derrotados que não se refugiam em teorias.

Revisão da Lei de Anistia é rejeitada pelo Supremo

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Por 7 a 2, STF mantém legislação que impede julgar agentes do Estado que cometeram crimes na ditadura

O Supremo Tribunal Federal concluiu que a Lei de Anistia é válida e, portanto, não se pode processar e punir os agentes de Estado que atuaram na ditadura e praticaram crimes contra os opositores, como tortura, assassinatos e desaparecimentos forçados. Depois de dois dias de julgamento, a maioria dos ministros do STF rejeitou ação proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) nacional que questionava a concessão de anistia a agentes da ditadura e propunha uma revisão. No debate, venceu, por 7 votos a 2, a tese defendida na quarta-feira, primeiro dia de julgamento, pelo relator da ação no STF, Eros Grau, ele próprio vítima do regime militar. O ministro disse não caber no STF alterar textos normativos que concedem anistias e observou que a lei resultou de amplo debate que envolveu políticos, intelectuais e entidades de classe, dentre as quais a própria OAB.

STF rejeita revisão da Lei da Anistia

Mariângela Gallucci de Brasília

A anistia é ampla, geral e irrestrita. O Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu ontem que a Lei de Anistia é válida e, portanto, é impossível processar penalmente e punir os agentes de Estado que atuaram na ditadura e praticaram crimes contra os opositores do governo como tortura, assassinatos e desaparecimentos forçados.

Depois de dois dias de julgamento, a maioria dos ministros do STF rejeitou ação proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) que questionava a concessão de anistia a agentes da ditadura e propunha uma revisão. No debate, venceu, por 7 votos a 2, a tese defendida pelo relator da ação, Eros Grau, ele próprio uma vítima da ditadura.

Grau disse não caber ao STF alterar textos normativos que concedem anistias. O ministro observou que a Lei de Anistia resultou de amplo debate, que envolveu políticos, intelectuais e entidades de classe, dentre as quais, a própria OAB.

Na sessão de ontem, os ministros Cármen Lúcia, Gilmar Mendes, Ellen Gracie, Marco Aurélio, Celso de Mello e Cezar Peluso seguiram o voto de Grau. Ayres Britto e Ricardo Lewandowski concluíram que a Lei de Anistia não poderia perdoar crimes hediondos e equiparados.

"O torturador experimenta o mais intenso dos prazeres diante do mais intenso dos sofrimentos alheios", argumentou Ayres Britto. "O torturador é uma cascavel que morde o som dos próprios chocalhos." Para ele, os torturadores são "tarados", "monstros" e "desnaturados".

Transição. Os ministros que votaram pela validade da Lei de Anistia fizeram questão de reprovar os atos de tortura e ressaltar que a sociedade tem o direito de saber o que aconteceu. Mas afirmaram que a anistia garantiu uma transição mais rápida e pacífica para o regime democrático.

"O Brasil é devedor desses companheiros, não de armas, mas da política. Aqueles que realmente acreditaram na via do diálogo e na política como forma de construir soluções", afirmou o ministro Gilmar Mendes.

Cármen Lúcia disse que era necessário levar em conta o contexto do período em que foi negociada a anistia. "Não vejo como julgar o passado com os olhos apenas de hoje", afirmou. O decano do STF, Celso de Mello, observou que a anistia brasileira foi bilateral. "A improcedência da ação não impõe qualquer óbice à busca da memória."

Ellen Gracie afirmou que a anistia, inclusive dos que praticaram crimes "nos porões da ditadura", foi o preço pago para acelerar a democratização. "Não se faz transição pacífica entre um regime autoritário e a democracia sem concessões recíprocas", disse. "Não é possível viver retroativamente a História."

Marco Aurélio Mello era contra o STF julgar a ação da OAB. Para ele, independentemente do resultado, o julgamento não traria efeitos práticos. "Nossa discussão é estritamente acadêmica, para ficar nos anais da corte", argumentou.

Na mesma linha, Peluso ressaltou que mesmo que o STF julgasse procedente a ação da OAB não haveria efeito porque os crimes já estariam prescritos. Disse também que só uma sociedade com elevados sentimentos de solidariedade é capaz de perdoar. "Se é verdade que cada povo resolve seus problemas históricos de acordo com sua cultura, sua índole, sua história, o Brasil fez a opção pelo caminho da concórdia."

Bonde. A OAB reagiu à decisão do Supremo. Para o presidente da Ordem, Ophir Cavalcante, a corte "perdeu o bonde da história". "Lamentavelmente, o STF entendeu que a Lei de Anistia anistiou os torturadores, o que, ao nosso ver, é um retrocesso em relação aos preceitos fundamentais da Constituição e às Convenções Internacionais."

Para entender

1. O que é a Lei de Anistia?

Promulgada em 1979, a lei anistiou os cidadãos punidos por ações contra a ditadura - como funcionários públicos afastados de seus cargos, pessoas com direitos políticos cassados, ativistas presos ou no exílio. De acordo com a interpretação firmada na época, a lei também beneficiou os agentes de Estado acusados de violarem direitos humanos.

2. O que o STF julgou?

O STF julgou uma ação na qual a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) questionou essa interpretação da lei.

3. O que pediu a OAB?

Na ação, a OAB pediu que o STF definisse que a anistia só atingiu perseguidos políticos. Não se estendeu aos policiais e militares que, a serviço do Estado, cometeram crimes comuns como homicídio e tortura.

4. O que acontece agora?

Continua vigorando a interpretação definida em 1979.

Serra dá parabéns a Lula e elogia conquista

DEU EM O GLOBO

Dilma diz se sentir orgulhosa

RIBEIRÃO PRETO (SP). O ex-governador paulista José Serra (PSDB), que felicitou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ontem no Twitter, antes mesmo da ex-ministra Dilma Roussef, repetiu a afirmação de que a escolha do presidente como uma das 25 pessoas mais influentes do mundo "é uma conquista para o Brasil", durante entrevista na Agrishow, feira de máquinas e equipamentos de agronegócio de Ribeirão Preto. Ele havia feito o elogio no Twitter quando soube que o presidente estava listado como o primeiro da lista, o que foi corrigido pela revista "Time" algumas horas depois.

- O mundo tem o quê, uns 200 países? E o Lula estar entre os principais personagens do mundo já é uma conquista para o Brasil. Portanto, eu renovo os meus parabéns - disse Serra , na visita à Agrishow.

Também na feira, Dilma, pré-candidata do PT à Presidência, disse estar orgulhosa de o presidente Lula ter sido incluído entre as 25 pessoas mais influentes do mundo. Dilma parafraseou o presidente, lembrando sua declaração a trabalhadores de que o país tinha 190 milhões de "caras" numa alusão a Obama ter dito que Lula "é o cara".

- O Brasil tem 190 milhões dos caras e das caras.

Lula, the Guy:: Fernando de Barros e Silva

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

SÃO PAULO - Lula, escolhido o líder mais influente do planeta pela "Time"? Havia ontem uma intensa discussão a respeito do lugar que foi destinado ao presidente brasileiro. Seria mesmo "o primeirão"? Ou era apenas um dos "25 eleitos" pela publicação americana na categoria "líderes"? Conforme a própria revista depois esclareceu, essa última interpretação é a mais correta.

Mas, afinal, que diferença faz? A discussão serviu apenas para pôr em relevo o aspecto frívolo e bizantino da própria lista. Ela diz menos sobre as personalidades que supostamente ilumina do que sobre as taras e misérias de um mundo que precisa a todo instante se reconhecer no espelho das celebridades que fabrica. Todo ranking, no fundo, é só uma forma de alimentar o bovarismo da sociedade do espetáculo.

A lista é tola, mas não significa que seja "arbitrária". Já houve coisas muito piores. Na década de 70, a própria "Time" fez uma relação de quem seriam os 150 líderes mundiais no fim do milênio. Brasileiros? Havia dois. Um era o então deputado Célio Borja. O outro, o ministro da Agricultura de Ernesto Geisel, Alysson Paulinelli. Sim, acredite.

O caso de Lula é evidentemente distinto. Um líder operário que chega à Presidência de um país como o Brasil e no final do mandato reúne mais de 70% de aprovação popular.

No perfil que escreveu do petista, o documentarista Michael Moore diz platitudes, mas é certeiro ao afirmar: "O que Lula quer para o Brasil é o que nós costumávamos chamar de sonho americano".

Um mundo de consumidores banais e felizes. Uma sociedade remediada na sua selvageria pela força integradora do dinheiro. Do socialismo, nem o cadáver. Esse é o horizonte em que se movem Lula e sua utopia mundana. Moore viu o que muito petista ainda não entendeu.

Pelos prêmios já acumulados e pelo conjunto da obra, a "Time" deveria ter incluído Lula na lista dos "artistas". E Dunga talvez esteja pensando se não há um lugarzinho para "o cara" na sua seleção.

Dia de campanha explícita

DEU NO ESTADO DE MINAS

Candidatos Dilma Rousseff e José Serra buscam votos e fazem promessas a agricultores em visita à maior feira de agronegócios do país, em Ribeirão Preto, no interior paulista

Alana Rizzo
Enviada especial

Ribeirão Preto (SP) — Eles estavam na mesma cidade, no mesmo evento, mas não se encontraram. Os pré-candidatos ao Palácio do Planalto Dilma Rousseff, (PT) e José Serra (PSDB) adotaram ontem o mesmo roteiro no interior paulista. E seguiram na maior feira do agronegócio do país, a Agrishow, a tradicional cartilha da campanha eleitoral: distribuíram beijos, abraços, tiraram fotos, subiram em tratores expostos, conversaram com lideranças da região. Despejaram também palavras de apoio ao setor e fizeram promessas.

Dilma e Serra enfrentaram também uma prova de fogo no setor. A decisão do governo de aumentar a taxa de juros repercutiu negativamente entre os produtores, que apresentaram uma pauta de reivindicações aos dois. Dilma saiu em defesa do governo e atacou o anterior. “Ninguém vai fazer malabarismo para ganhar, como já foi feito”, disse, numa referência indireta a 1998, quando o governo Fernando Henrique segurou o câmbio perto das eleições. Serra disse que quer entender porque “entra governo, sai governo, e o Brasil continua com a maior taxa de juros do mundo”.

Os dois aproveitaram para marcar posição sobre o tema que é uma “pedra no sapato” dos grandes agricultores: o Movimento dos Sem Terra. Relatório da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), comandado pela senadora Kátia Abreu (DEM), aponta prejuízo de R$ 9 bilhões com as invasões do Abril Vermelho. “Não vamos compactuar com qualquer atividade ilegal”, disse Dilma. Serra definiu o MST como um movimento político: “Não se pode alimentar essa máquina política com dinheiro público”.

A ex-ministra chegou por volta das 10h em Ribeirão Preto. Deu entrevista para uma rede local de televisão e seguiu para a feira de 360 mil metros quadrados e 730 expositores. Num sol de 31 graus, a pré-candidata, que vestia um terninho bege, chegou bastante animada. Ao ver um trator, Dilma logo correu para tirar foto. Ao tentar entender o funcionamento de uma máquina agrícola para moer mandioca, o senador Mercadante (PT-SP), pré-candidato ao governo do estado, gritou: “é uma mulher do campo”. O tempo todo Dilma fez propaganda do programa Mais Alimentos, que libera crédito para a agricultura familiar. A ex-ministra também estava acompanhada de Marta Suplicy, pré-candidata ao Senado, e Antônio Palocci.

Ao lado do pré-candidato ao governo paulista, Geraldo Alckmin, Serra chegou com uma hora de atraso, às 16h. Caminhou pela feira, mexeu com palmeirenses, cantou Sereia de Copacabana, de Jorge Goulart, conversou com prefeitos e participantes da feira. Logo que chegou ao local, o representante comercial Leão, que trabalhou como cabo eleitoral na campanha de Gilberto Kassab à prefeitura de São Paulo, começou a puxar um coro "Serra presidente" e não parou. Durante mais de uma hora, ele acompanhou a comitiva de Serra e ia narrando passo a passo.
"Pode chegar mulherada. Serra também dá beijo", brincou. A voz de Leão chamou a atenção do tucano que perguntou de onde ele tirava tanta energia. No fim do dia, Serra também deu entrevista para a mesma rede de televisão. Hoje, ele passa o dia em São Paulo.

Serra intensifica agenda de viagens e foca o Nordeste

DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)

Tucano reserva segunda semana de maio para a região onde tem desempenho eleitoral mais fraco. Minas Gerais continua como prioridade

BRASÍLIA – O presidenciável do PSDB, José Serra, vai intensificar as viagens pelo País, dedicando a segunda semana de maio a visitas a Estados do Nordeste, região onde tem desempenho eleitoral mais fraco frente à grande popularidade do presidente Lula. Ainda assim está clara a prioridade dada pelo comando da campanha tucana a Minas Gerais, segundo maior colégio eleitoral do Brasil, onde Serra já esteve duas vezes e irá mais duas na próxima semana.

Na segunda, ele participará da abertura de uma exposição em Uberaba, desta vez sem a companhia do ex-governador Aécio Neves. Também já confirmou presença na quinta-feira no Congresso de Municípios em Belo Horizonte. Nesses dois eventos, porém, o tucano deverá dividir as atenções com Dilma. “Não vamos deixar de ir a nenhum lugar por causa de Dilma. Nem vamos a qualquer lugar porque ela vai. Nossa agenda é independente e, melhor, está sendo leve”, comemorou o presidente nacional do PSDB, senador Sérgio Guerra (PE).

Entre as idas e vindas a Minas, Serra deverá visitar o Rio Grande do Sul, entre os dias 4 e 5 de maio. Não está descartada também a possibilidade de prestigiar o senador Jarbas Vasconcelos (PMDB-PE), se este for anunciar no próximo dia 7 sua candidatura ao governo de Pernambuco. Serra visitará, ainda, o Pauí, Ceará e Paraíba. “Nossos eventos não exigem grande preparação. Isso porque as visitas de Serra aos Estados estão sendo as mais informais possíveis. A prioridade é colocar nosso candidato em contato direto com a população”, alfinetou Guerra.

Os tucanos não escondem, no entanto, a preocupação com a estratégia do PT de voltar a colar a imagem do presidente Lula em sua candidata. Amanhã, Dia do Trabalhador, Lula voltará a aparecer ao lado de Dilma em dois eventos sindicais no ABC paulista. Além disso, os petistas pretendem transformar a presidenciável na grande estrela do programa de TV do partido que irá ao ar no próximo dia 13, reforçando que a escolha de seu nome foi feita pessoalmente por Lula. “As duas rodinhas da bicicleta ajudam muito. Em relação a isso não há o que fazer”, ironizou, mais uma vez, Sérgio Guerra.

Ontem, pouco mais de duas horas após a passagem de Dilma, Serra chegou à feira agrícola Agrishow, em Ribeirão Preto, com o pré-candidato do PSDB ao governo paulista, Geraldo Alckmin, a tiracolo. Sua comitiva era menor que a de Dilma, até porque o PSDB ainda não definiu o nome do candidato ao Senado. Mas o número de seguranças era maior.

A visita dos dois presidenciáveis no mesmo dia não estava prevista, mas ocorreu. A recepção ao ex-governador foi mais calorosa: militantes da juventude tucana e simpatizantes gritavam “Serra presidente”, sem cerimônias.

O passeio de Serra pelos estandes teve um ar de reencontro com velhos amigos. O interior do Estado é uma região de forte apoio aos tucanos e os efusivos abraços dos empresários do setor provaram isso.

Uma revolução urbana:: Roberto Freire

DEU NO BRASIL ECONÔMICO

Uma das características mais notáveis dos últimos 50 anos, comum a todas as sociedades humanas é o processo de urbanização, acompanhado e incrementado pela globalização, com grandes impactos na vida dos cidadãos e nas demandas sociais.

No Brasil, esse fenômeno tem evidenciado nossas inúmeras mazelas, com o crescimento exponencial das favelas e o gradativo colapso de nossas grandes metrópoles, principalmente no que diz respeito à mobilidade (transporte urbano), inclusão dos portadores de necessidades especiais - atualmente já são mais de 20% da população brasileira - e acesso aos serviços de responsabilidade do Estado, como educação, saúde e segurança.

Desde os anos 60, se fala em uma reforma urbana que estruture de forma racional o uso do solo e dos recursos naturais, objetivando garantir o desenvolvimento urbano de modo razoavelmente organizado.

Sobretudo agora, com as novas demandas de uma economia com baixa utilização de carbono, com a necessidade da racionalização do uso da água e dos recursos hídricos e o necessário planejamento urbano, voltado para essas questões e também para o processo de urbanização das favelas, além da luta contínua pela melhoria da qualidade de vida de todos os citadinos.

Nesse sentido, acredito no poder local e na radicalidade democrática como o locus e o instrumento fundamental de participação da cidadania no processo político. Creio que essa é a maneira de tornar as questões atinentes à prestação de serviços e o planejamento das ações do poder público em assunto de discussão coletiva.

Em conferência realizada em São Paulo para discutir a temática "Cidade e Igualdade", assistimos à intervenção de um grande urbanista, Cândido Malta, e sua proposta de planejamento do espaço urbano, a partir do bairro.

O evento foi organizado por Sônia Francine, dentro do processo de discussão que estamos realizando para formatação de nossa agenda de propostas consubstanciando a contribuição da esquerda democrática (PPS) para o programada candidatura presidencial de Serra.

A proposta de fazer do bairro elemento decisivo na reorganização urbana, ao estabelecer, pormeio da chancela dos moradores quais são os equipamentos necessários para a melhoria das condições de vida é importantíssima.

Cândido Malta defende que o planejamento com base na realidade de regiões menores, como um bairro, é mais eficaz do que o balizado em grandes projetos porque está mais próximo das pessoas que vivenciam os problemas.

A novidade de tal proposição é que ela atualiza o debate urbano. Extrapola a dimensão domovimento social, ao priorizar a medida política do uso do solo como questão modal do desenvolvimento equitativo das cidades.

A proposta de organizar as cidades a partir das decisões dos bairros implica na materialização dos elementos decisivos da noção de cidadania no país.

Um avanço a ser festejado no longo tempo de grandes desafios que vêm sendo enfrentados não só por nossas metrópolis, mas também pelas médias aglomerações urbanas e, muitas vezes, até por pequenos municípios espalhados pelo Brasil.


Roberto Freire é presidente do PPS

As tragédias anunciadas :: Carlos Lessa

DEU NO VALOR ECONÔMICO

O terremoto de janeiro em Porto Príncipe, no Haiti, produziu mais de 200 mil mortes, devastou de alicerces às habitações feitas com folhas de lata e às débeis instituições do mais pobre e infeliz país latino-americano. Sob a luz intensa da mídia internacional, houve um primeiro lugar indesejado pelo Haiti, promovido pela tragédia sísmica a centro de um espetáculo de dor que mobilizou milhares de manifestações de solidariedade. Sucedido pelo terremoto chileno, o Haiti perdeu a centralidade da mídia e das manifestações de solidariedade. Há poucas semanas, aconteceu um terremoto em Qinghai, na China. A sucessão midiática naturaliza a tragédia, e cada uma vai perdendo o sabor de novidade.

Em Santa Catarina, as chuvas de novembro de 2008 deixaram 135 mortes e muita destruição. Na virada de 2009, em Angra dos Reis, deslizamentos mataram 52 pessoas. Os 288 mm de precipitação pluviométrica nas 24 horas do dia 5 para 6 deste mês de abril na Região Metropolitana do Rio de Janeiro mataram mais de 250 pessoas. Todas essas tragédias tiveram seu momento de destaque na mídia nacional. Inspiraram horror, manifestações de solidariedade, mas tendem a ser apagadas da grande memória social. A naturalização impregna Ana Júlia de Souza, moradora do Morro do Fubá, que declarou à Folha de São Paulo: "o que tiver que acontecer, vai acontecer, seja com o rico ou com o pobre, porque casas de ricos estão desmoronando também". No Morro do Fubá houve mortes na mesma ocasião da tragédia de Angra dos Reis, porém o drama do Fubá não foi para a ribalta. Ana Júlia foi removida da área de risco do Fubá, porém retornou e apela para a providência divina: "tenho fé de que Deus vai nos proteger".

Cada tragédia suscita uma sequência de ações emergenciais e uma rica retórica de projetos de médio e longo prazos a serem implantados. Contudo, ao ceder posição no podium das tragédias, rebaixada pela tragédia subsequente, mergulha progressivamente no anonimato. Isso dá origem à naturalização do trinômio máxima energia, retórica evanescente e diferimento dos projetos.

As favelas do município do Rio de Janeiro, na grande Região Metropolitana do Estado do Rio de Janeiro, foram reestruturadas pelo Programa Favela Bairro. Na Nova República, fui diretor da área social do BNDES. Apoiamos, com recursos do Finsocial, a reestruturação integral de uma favela de Olinda denominada Ilha dos Ratos. Apoiamos a prefeitura de Curitiba na consolidação e urbanização de duas favelas. Estivemos em Joinvile, Natal, Belo Horizonte e Rio de Janeiro. Foi possível, a partir dessas experiências, fazer um ensaio tipológico de favelas, avaliar algumas tecnologias especiais de estruturação e estimar (a partir dos trabalhos de Ricardo Bielschowsky) os custos unitários para equacionar o suprimento de água e coleta de esgoto e lixo, levantar a "malha viária" da comunidade para aperfeiçoar a circulação interna e externa dos moradores e instalar alguns equipamentos públicos básicos.

Ulysses Guimarães entendia ser um compromisso básico da Constituição de 1988 integrar todas as famílias no corpo social. Sabia ser a residência o perímetro-chave dessa plena integração. A qualidade de vida digna para todos os brasileiros foi meta de seu programa como candidato à Presidência da República. Se propôs, como candidato, a converter todas as favelas em bairros populares. A proposta desse programa nacional de Ulysses se converteu no programa municipal iniciado em 1993 com o nome de Favela-Bairro. O Rio teve o apoio do Banco Mundial e foi premiado como o melhor programa de integração das comunidades faveladas. O Programa foi executado em sua totalidade, porém não inspirou os demais municípios da região metropolitana, nem tampouco nas zonas clássicas de migração para a metrópole carioca. O Favela-Bairro não foi sequenciado com a indispensável remoção das residências em áreas de risco ou de hiper dispendiosa urbanização.

Desde então, dois novos fenômenos urbanísticos ameaçaram as favelas do Rio. A melhor qualidade das comunidades do Rio acentuou a migração intra-metropolitana. Houve a valorização das áreas trabalhadas pelo Favela-Bairro. Deu origem a uma verticalização, pelo comércio do "direito de laje", pelo qual parcelas unifamiliares se convertem em mini prédios com três, quatro ou mais famílias. Essa verticalização instala um novo problema sanitário, pois a calha estreita das vielas e escadarias deixam de receber adequadamente luz solar.

Nas zonas de risco, aumenta a densidade da ocupação e, se houver mata ou alagadiço a ser ocupado, o perímetro da comunidade é ampliado. À época, estimou-se que 20% das residências estavam em zonas de risco e seria necessária uma grande área bem localizada para a remoção digna dessas famílias. Era óbvia a potencialidade das cercanias do retro velho Porto do Rio de Janeiro. Alguém estimou que lá seria possível situar 200 mil famílias, no centro da metrópole. Alternativamente e\ou simultaneamente, deveria ter prioridade absoluta a melhoria e a extensão do sistema metroviário e ferroviário urbano. Os ramais da antiga Central do Brasil e Leopoldina deveriam ser convertidos em um sistema de metrô de superfície que, ao reduzir o tempo de deslocamento residência-trabalho-residência e ao oferecer a baixo custo um transporte confiável e de qualidade, seria um multiplicador de terrenos para a construção de residências populares dignas. Isso retiraria a pressão sobre as áreas de risco.

Nada disso aconteceu. Houve silêncio quanto a programas de remoção, que costumam gerar fortes resistências e desgastes políticos para seus proponentes e executores. O Governo Federal não cedeu nem destinou o gigantesco latifúndio urbano que possui nos fundos do Porto do Rio para habitação popular. Persistem, com baixa prioridade, em um PAC insuficiente e pouco pensado, as metrópoles e seus sistemas de transporte coletivo.

Os juros de Meirelles têm total prioridade. Parece que os executivos de um banco de investimentos norte-americano deverão receber US$ 5 bilhões pela "recuperação" do banco. O Haiti, em marcha acelerada para um anonimato, não recebeu sequer US$ 1 bilhão em promessas. Parece que o presidente Obama está escandalizado. No Brasil, a realização de um favela-bairro nacional, como pretendia Ulysses, teria um custo de uns US$ 10 bilhões, uma fração dos juros que o Banco Central paga a partir da política monetário-financeira do presidente Meirelles. Esperemos que a mídia faça a conexão entre a crise permanente das metrópoles brasileiras, as tragédias visíveis e a política econômica oficial. Esperemos que entidades como FAFERJ, a Pastoral de Favelas e a Fundação Bento Rubião saibam dispor de uma pauta que vá além da queixa e situe a prioridade metropolitana em seu devido lugar.


Carlos Francisco Theodoro M. Ribeiro de Lessa é professor emérito de economia brasileira e ex-reitor da UFRJ. Foi presidente do BNDES.

Um novo ciclo econômico no Brasil:: Luiz Carlos Mendonça de Barros

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Não é possível continuar com essa farra do boi de consumismo que é a marca mais importante dos últimos cinco anos

AMB ASSOCIADOS acaba de publicar um interessante estudo sobre o crescimento brasileiro. A variação do PIB -medida do lado da demanda- nos mostra que o Brasil viveu duas fases distintas nos últimos dez anos: de 2000 a 2005 e de 2006 a 2010. Considerada a década como um todo, o crescimento do PIB pode ser explicado em 70% pelo consumo das famílias, em 20% pelo consumo do governo e em 13% pela formação bruta de capital fixo. Para fechar esse quadro de demanda interna, as importações foram maiores do que as exportações em 3% do PIB.

Mas esse mesmo exercício para o período 2006/2010 mostra um quadro bem diferente. O consumo das famílias passa a explicar 85% do crescimento do PIB, com o consumo do governo caindo para 18% e os investimentos representando 16,4%. Para fechar a conta, as exportações líquidas negativas representaram 19,2% do PIB. Nos últimos cinco anos, o consumo interno total -governo mais famílias- ultrapassou o valor do PIB brasileiro. O pouco investimento realizado nestes cinco anos foi todo ele financiado com poupança externa. Em outras palavras, nos últimos cinco anos os brasileiros viveram o papel de cigarras, e não de formigas.

Mas o economista Sergio Vale, da MB, construiu uma projeção desses componentes de demanda para os primeiros cinco anos da nova década. Como premissa, considerou um crescimento real de 10% ao ano para o volume de investimentos em capital fixo no Brasil.

Além disso, trouxe a participação do consumo das famílias no PIB para o número médio de 70% e reduziu o consumo do governo para 17% do PIB. Nessas hipóteses, o setor externo continuará sendo a variável de ajuste para fazer o consumo caber no PIB.

Os números obtidos por Sergio Vale, da MB, apenas quantificam o que alguns analistas vêm advertindo há algum tempo: não é possível continuar com essa farra do boi de consumismo que é a marca mais importante dos últimos cinco anos. Ter o consumo das famílias brasileiras representando 85% do crescimento PIB é uma irresponsabilidade que vai cobrar um preço elevadíssimo em futuro próximo. Mais ainda, ter a soma do consumo do governo e das famílias maior do que o PIB é uma situação insustentável no médio prazo.

Daí resulta o ponto mais assustador do exercício da MB: mesmo com uma redução do consumo das famílias e do governo e um aumento mínimo no investimento de capital fixo, a deterioração de nossa conta-corrente pode chegar a níveis perigosos. Uma bela sinuca de bico para o próximo presidente da República.

Quero terminar fazendo uma homenagem a meus filhos Marcello e Daniel. Depois de 12 anos no controle acionário da Link Investimentos, período em que ela alcançou a posição de maior corretora de valores independente no Brasil, eles e seus companheiros venderam a empresa para o banco suíço UBS. Acompanhei -como pai e conselheiro- toda a vida da Link, sofrendo juntos quando aloprados do PT resolveram acusá-los de utilização de informações privilegiadas fornecidas por mim -à época eu era ministro do governo FHC-, e agora, nos longos meses em que concretizaram a difícil decisão de vender a empresa.

Neste novo Brasil internacionalizado, é muito difícil um grupo brasileiro de médio porte e líder de mercado ficar independente. Acho que tomaram a decisão correta.


Luiz Carlos Mendonça de Barros, 67, engenheiro e economista, é economista-chefe da Quest Investimentos. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações (governo Fernando Henrique Cardoso).

Empréstimos ficam mais caros no país

DEU EM O GLOBO

Os bancos se anteciparam à alta de juros fixada pelo BC e já estão cobrando taxas mais altas. Na primeira quinzena do mês, os juros para o consumidor subiram 1,2 ponto, para 42,2% ao ano. Ontem o dólar caiu para R$ 1,732, menor nível desde janeiro.

Crédito já está mais caro

Bancos antecipam alta da Selic e elevam juro de empréstimos em 1,2 ponto percentual este mês

Patrícia Duarte e Lino Rodrigues

A certeza de que o Comitê de Política Monetária (Copom) elevaria os juros em abril - o que de fato ocorreu na quarta-feira, com a Selic subindo de 8,75% para 9,50% ao ano - interrompeu este mês o movimento, observado até março, de redução das taxas cobradas dos consumidores pelos bancos na hora de conceder empréstimos. De acordo com os números do Banco Central (BC), divulgados ontem, entre os dias 1º e 15 de abril os juros médios para as famílias aumentaram 1,2 ponto percentual, para 42,2% ao ano.

Até o mês anterior, a taxa média das pessoas físicas recuava significativamente. Em março, a queda foi de 0,9 ponto percentual, chegando a 41% ao ano, o menor patamar histórico. Em janeiro, estava em 43% e, no auge da crise financeira, bateu 55% ao mês, em janeiro de 2009.

As empresas também já estão sofrendo os efeitos do ciclo de aperto monetário. Os juros médios cobrados das pessoas jurídicas subiram 0,4 ponto percentual na primeira quinzena deste mês, para 26,7% ao ano. A taxa média para empréstimo do sistema financeiro ficou em 35% no período, uma alta de 0,8 ponto sobre março.

- Tudo indica que o ciclo de juros em queda acabou. E isso deve ser mais visível daqui em diante naquelas linhas cujas garantias são menores, como cheque especial e cartão de crédito - afirmou o economista da consultoria Tendências Alexandre Andrade.

No mês passado, segundo o BC, a maior queda nos juros cobrados às famílias ficou para o crédito pessoal, que passou de 43,8% para 42,7%. Em abril, no entanto, era a modalidade que mais teve sua taxa elevada, chegando a 45,2% no dia 15.

- Os juros cobrados das famílias pelos bancos cresceram, basicamente, em função do crédito pessoal. Reflete também movimentos na curva de juros futuros. Você tem, de fato, uma elevação da curva de juros que se reflete no custo de captação e isso é repassado ao tomador final - afirmou o chefe do departamento Econômico do BC, Altamir Lopes, para quem o movimento está relacionado à demanda maior que ocorre todo início de ano.

Inadimplência também pode subir

Os juros futuros a que Lopes se refere são contratos negociados na Bolsa de Mercadorias & Futuros em que os investidores projetam a taxa que estará valendo em determinada data, tentando antecipar as decisões do BC. A expectativa do mercado é de que a Selic feche 2010 em 11,75%. O objetivo do BC é segurar a alta da inflação, que vem acelerando com a recuperação econômica do país. A inflação pelo Índice Geral de Preços do Mercado (IGP-M) desacelerou em abril, quando subiu 0,77%, ante 0,94% em março, informou a Fundação Getulio Vargas ontem.

Os chamados spreads bancários - diferença entre o custo de captação e a taxa efetivamente cobrada pelos bancos - também refletem a tendência de alta nas taxas. Para as pessoas físicas, houve um refresco em março, com os spreads recuando 1,1 ponto, para 29,7 pontos percentuais. Mas, em meados desse mês, quase toda esta queda havia sido recomposta, com a taxa voltando a 30,8 pontos percentuais.

Andrade, da Tendências, acredita que, com a alta nos juros, a inadimplência deve seguir o mesmo caminho, uma vez que os consumidores terão de lidar com crédito mais caro. Até março, pelo menos, a inadimplência (atrasos de pagamento acima de 90 dias) ainda recuava. Segundo o BC, para pessoas físicas, ela chegou a 7%, menor patamar desde março de 2008, quando ficou em 6,9%.

Para especialistas, nem a concorrência mais acirrada entre bancos públicos e privados deve impedir o repasse para o consumidor, que deve ser imediato. Para Luiz Rabi, economista-chefe da Serasa Experian, sem isso não há eficácia na política monetária.

- Se eles (os bancos) quisessem baixar juros para competir e ganhar mercado, eles já teriam reduzido seus spreads - disse o economista.

O aumento dos juros, combinado com o fim do desconto do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para produtos da linha branca e automóveis, segundo Guilherme Dietze, economista da Federação do Comércio do Estado de São Paulo (Fecomércio-SP), vai sim funcionar como um desestímulo aos consumidores. A expectativa, diz ele, é de que o repasse da alta da Selic seja feito aos poucos.

Embora reconheça que a alta dos juros represente, na prática, aumento do custo de captação para as instituições financeiras, Rubens Sardemberg, economista-chefe da Febraban (entidade que representa os bancos), diz que é "razoável" esperar que não haja um aumento dos juros bancários na mesma magnitude da alta da Selic. Segundo ele, o bom momento da economia aumentou a disposição dos bancos em expandir a oferta de crédito.

As duas faces:: Miriam Leitão

DEU EM O GLOBO

O Banco Central tem sido autônomo, mas ele trabalha sozinho. Na política econômica, parece haver dois governos: o Ministério da Fazenda aumenta gasto, estimula a economia, incentiva o crescimento do crédito; e o Banco Central tenta compensar. Essa dupla face aparece em outras áreas. O Planalto propôs a revisão da Lei de Anistia. A AGU advogou o oposto no Supremo.

É normal mudar de ideia. O esquisito no governo Lula é que ele tem duas ideias opostas sobre o mesmo assunto, ao mesmo tempo. No caso da Lei da Anistia, o tema estava para ser discutido no Supremo. A dualidade é mais nociva na economia.

Este é um ano complexo. A economia está acelerando, a inflação aumentou, o mundo ainda está vivendo a mesma crise, no seu segundo capítulo. Haverá mais turbulência na Europa nas próximas semanas e a crise fiscal continuará com eles por muito tempo. Isso manterá o mundo mais instável, o crescimento mundial mais incerto. Nosso desafio não é crescer este ano apenas, em que estamos recuperando o ano perdido de 2009. O difícil, há muito tempo, tem sido manter o crescimento por longo período.

Em geral, quando se analisam as razões de o país não conseguir ter um período sustentado de crescimento, há dois diagnósticos. Um, sustenta que faltam as ferramentas básicas. A taxa de poupança é baixa, o investimento é insuficiente, o governo tem aumentado muito seus gastos, a carga tributária é alta. Mas há quem acredite que os juros altos e o câmbio valorizado impedem o crescimento e que ambos são decorrentes da política de metas de inflação. No governo, ninguém dirá isso abertamente porque significaria atacar a base da política anti-inflacionária. Mas se fossem sinceros, muitos diriam, no governo, no Ministério da Fazenda, que o país não cresce porque o BC é conservador e fica elevando os juros por alguma maldade intrínseca, para satisfazer o mercado, ou porque é obrigado pela camisa de força das metas de inflação. Se o debate fosse sincero e aberto seria melhor para combater velhos equívocos da visão brasileira de crescimento que foram fortalecidos na crise.

Os gastos de custeio têm crescido de forma exponencial, sistematicamente acima do PIB (Produto Interno Bruto), numa taxa que fortalece as amarras ao crescimento; o surto de estatismo eleva ainda mais o risco fiscal; os excessos de concessão de crédito através de bancos públicos, que depois exigem capitalizações do Tesouro, são uma bomba de efeito retardado armada hoje no coração da economia, o crédito público subsidiado representa um gasto invisível e crescente. Os estímulos fiscais concedidos a alguns setores do consumo além de serem renúncia fiscal, portanto gasto, não foram integralmente retirados. Tudo isso é inflacionário. O mesmo governo que amplia gasto, estimula a economia com renúncia fiscal e concede crédito subsidiado, eleva a taxa de juros para conter o efeito inflacionário do aquecimento. Assim, como duas pessoas no mesmo barco remando em direção contrária. Os juros têm que ser ainda maior porque a política monetária não tem ajuda das políticas fiscal e creditícia.

Uma parte do mercado de crédito é indiferente às taxas de juros. Os empréstimos concedidos pelo BNDES ao consórcio de Belo Monte serão corrigidos a 4% ao ano, independentemente do fato de que desde ontem o custo da dívida pública subiu de 8,75% para 9,5%. E esse contrato de financiamento, lesivo aos interesses do Tesouro e do contribuinte, se propõe a ser assim até o ano 2040. Ninguém tem este prazo para pagar, ninguém paga só isso. É um acinte e um escândalo, além de ser gasto público. A política monetária brasileira não têm efeito sobre bolsões de crédito que pagam juros beneficiados. Já os juros pagos por pessoas e empresas que contraíram empréstimos no mercado privado são exorbitantes, paralisantes, punitivos. Não são os consumidores que reclamaram da alta dos juros, mas sim os que são beneficiados pelos bolsões de dinheiro barato.

A Fiesp soltou uma nota toda agressiva minutos depois do fim da reunião do Copom. A federação composta por tantos clientes dos juros subsidiados está atrapalhada nos últimos dias com as explicações para provar que a indústria tem uma alta capacidade ociosa, apesar de a FGV dizer o contrário. A Abdib, que subiu no palanque do PAC-2, fez também sua versão dos ataques ao Banco Central.

Ontem, o BC comemorou o fato de os juros ao consumidor terem chegado numa taxa média de 40% em março. No ano passado, era 55%. Essa é a mais baixa taxa desde 1994. Uma vitória e um aleijão, ao mesmo tempo. Juros de 40% não fazem sentido em país algum do mundo. Experimente contar para um estrangeiro, de qualquer país, o motivo da comemoração.

A crise mundial de 2008/2009 serve como um álibi para a gastança brasileira. Comparam-se os dados, e o Brasil não parece estar sob qualquer risco de crise fiscal. O país tem um risco fiscal latente que não aparece nos números. Por não combatê-lo, acaba tendo uma dívida muito mais cara, o que realimenta o risco fiscal. Esse é o preço de ter uma política econômica com duas faces.

O recuo dos bancos públicos:: Vinicius Torres Freire

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Banca privada mantém passo do final de 2009, mas estatais reduzem para um terço ritmo de aumento do total de crédito

Depois de hibernar durante o auge da crise financeira mundial e da suave recessão brasileira, de setembro de 2008 a setembro de 2009, a banca privada nacional voltou ao mercado.

Entre aqueles dois setembros, os bancos públicos comerciais e o BNDES haviam sido responsáveis por 70% do aumento do estoque de crédito -do total do dinheiro ainda emprestado. No primeiro trimestre deste ano, os bancos privados inverteram o jogo. Do total do aumento do estoque de crédito de janeiro a março, responderam por 59%.

Mas os bancos privados aumentaram o ritmo de seus empréstimos já no terço final do ano passado. Continuam mais ou menos no mesmo passo neste início de 2010. Foram os bancos públicos que deram um tempo na voracidade de 2008-09. A fatia de mercado dos bancos públicos subiu de 34% (setembro de 2008) para 41,5%, agora em março, segundo dados divulgados ontem pelo Banco Central.

Estranha mesmo é a atuação dos bancos privados estrangeiros. Mesmo passada a crise, eles estão mais do que tímidos. Sua fatia na expansão do estoque de crédito no primeiro trimestre deste ano é um quinto do que era no início de 2008.

A redução do ritmo nos bancos públicos e a estabilidade nos bancos privados fazem com que a taxa anual de expansão de crédito venha flutuando em torno de 16% desde setembro de 2009. Bancos privados vinham estimando que o estoque de crédito poderia crescer perto de 20% neste ano. Como a economia tende a desaquecer um tico daqui ao final do ano, dada a alta dos juro básico, parece mais difícil chegar aos 20%. A inadimplência continua a cair.

No caso das pessoas físicas, a taxa de calote não passou de 8,6% de 2009.

No início do ano passado, banqueiros estimavam que a inadimplência chegaria a 10%. Agora está em 7%.

A projeção inicial não foi tão errada quanto parece. Os bancos privados não contavam com a agressividade dos bancos públicos no crédito, o que evitou recessão feia, mais desemprego, falências e, pois, calotes.

Temos um sistema financeiro híbrido, com prós e contras. Por um lado, foi possível evitar recessão maior com o "ativismo estatal" -que não redundou em calotes e rombos na banca pública, como se temia. O outro lado da moeda é que nosso sistema de juros tabelados e subsidiados, gerido pelos bancos públicos, impede que a taxa básica de juros, a Selic, seja menor.

Isto é, a taxa básica, a do BC, tem de ser maior para compensar o estímulo econômico oferecido por taxas menores, subsidiadas, como as do BNDES, que faz o grosso do financiamento bancário do investimento. Sem juros tabelados e subsidiados, quão menor seria a Selic? E quão menor seria o crédito para investimentos? Não se sabe. O problema vai muito além da alternativa crédito público vs. crédito privado.

Belo monte de lambanças :: Rogério Furquim Werneck

DEU EM O GLOBO

O governo conseguiu fazer da licitação da usina de Belo Monte uma lambança de grandes proporções. O festival de equívocos deixa a nu a precariedade do novo modelo do setor elétrico e compõe farto catálogo de erros graves a evitar no futuro.

O equívoco fundamental, já analisado aqui, neste mesmo espaço, há duas semanas, foi a decisão demagógica de fixar a tarifa máxima que poderia ser exigida na licitação em nível inferior à tarifa requerida para cobrir os custos do empreendimento. Para poder pavonear tarifa tão baixa, o governo se dispôs a bancar a diferença entre custos e receitas, despejando uma cornucópia de recursos do Tesouro no projeto, via BNDES, Eletrobras e renúncias fiscais. Esse abandono escancarado e populista da ideia de realismo tarifário configura retrocesso de quase 50 anos na história do setor elétrico brasileiro.

O espantoso é que o governo continua fingindo que o problema não existe. Embora especialistas independentes venham advertindo que o custo efetivo do megawatt-hora em Belo Monte será de pelo menos R$100, figurões do setor elétrico e o próprio presidente Lula têm-se permitido comemorar publicamente a "tarifa módica" de R$77,97 o megawatt-hora que prevaleceu na licitação. É difícil imaginar, a essa altura dos acontecimentos, que argumento defensável poderia justificar subsídio de tal ordem à energia elétrica, quando sobram usos mais nobres para o dinheiro público.

O segundo equívoco foi a própria licitação. Em condições tão adversas e incertas sobre a rentabilidade do empreendimento, não foi surpreendente que escasseassem os interessados. Pouco antes da licitação, temendo ter de lidar com apenas um licitante, o governo mobilizou a Eletrobras para montar às pressas um segundo consórcio para atuar como coadjuvante.

O que se viu, afinal, foi uma licitação que configurava um triângulo em que o governo exercia papel dominante nos três vértices: como leiloeiro, como investidor responsável por pelo menos 49% de cada um dos dois consórcios e, ainda, como financiador, pelo BNDES, de 80% do investimento total do empreendimento. Não foi surpreendente que, afinal, a licitação tenha sido vencida pelo consórcio coadjuvante, liderado pela Chesf e mais maleável às pressões do governo em favor de uma tarifa especialmente baixa.

Diante do constrangimento gerado por licitação tão peculiar, o governo tentou dar uma cambalhota matreira para aparecer bem na foto, como paladino da "quebra do monopólio das empreiteiras". Nada mais distante da realidade. De uma forma ou de outra, as grandes empreiteiras conseguiram se desvencilhar do papel de investidor em Belo Monte. Continuam atraídas pelo projeto, que se vai tornando a cada dia mais estatal. Mas o que lhes interessa é o que sempre souberam fazer: vender serviços de engenharia. De preferência, ao próprio governo, como esperam poder fazer agora em Belo Monte.

A cadeia de equívocos continua. Horas depois da licitação, a principal empresa construtora que integra o consórcio vencedor, insatisfeita com as condições que lhe foram impostas, externou a intenção de abandoná-lo. O que deflagrou pronta reação do governo, preocupado em minimizar a importância do fato. "Entrou quem quis, sai quem quer. Não tem nenhum cadeado fechando a porta", esclareceu o próprio presidente Lula.

De fato. O consórcio vencedor passou a ser percebido com uma casca quase oca a ser agora recheada pelo governo, da forma que bem entender. Disposto a pagar todas as contas, o governo está como o diabo gosta. Quer organizar a festa, decidir quem entra e quem não entra, negociando na porta com empreiteiras, autogeradores, grandes consumidores de energia e fundos de pensão docemente coagidos.

A ideia de que tal lambança possa vir a ser replicada em outros grandes projetos de aproveitamento hidrelétrico parece um pesadelo. É hora de conceber formas mais transparentes, menos voluntaristas e não populistas de licitar as novas usinas que terão de ser construídas para assegurar a expansão da oferta de energia elétrica no país.
Rogério Furquim Werneck é economista e professor da PUC-Rio.

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que não tinha entrado na história.