DEU EM O GLOBO
O governo conseguiu fazer da licitação da usina de Belo Monte uma lambança de grandes proporções. O festival de equívocos deixa a nu a precariedade do novo modelo do setor elétrico e compõe farto catálogo de erros graves a evitar no futuro.
O equívoco fundamental, já analisado aqui, neste mesmo espaço, há duas semanas, foi a decisão demagógica de fixar a tarifa máxima que poderia ser exigida na licitação em nível inferior à tarifa requerida para cobrir os custos do empreendimento. Para poder pavonear tarifa tão baixa, o governo se dispôs a bancar a diferença entre custos e receitas, despejando uma cornucópia de recursos do Tesouro no projeto, via BNDES, Eletrobras e renúncias fiscais. Esse abandono escancarado e populista da ideia de realismo tarifário configura retrocesso de quase 50 anos na história do setor elétrico brasileiro.
O espantoso é que o governo continua fingindo que o problema não existe. Embora especialistas independentes venham advertindo que o custo efetivo do megawatt-hora em Belo Monte será de pelo menos R$100, figurões do setor elétrico e o próprio presidente Lula têm-se permitido comemorar publicamente a "tarifa módica" de R$77,97 o megawatt-hora que prevaleceu na licitação. É difícil imaginar, a essa altura dos acontecimentos, que argumento defensável poderia justificar subsídio de tal ordem à energia elétrica, quando sobram usos mais nobres para o dinheiro público.
O segundo equívoco foi a própria licitação. Em condições tão adversas e incertas sobre a rentabilidade do empreendimento, não foi surpreendente que escasseassem os interessados. Pouco antes da licitação, temendo ter de lidar com apenas um licitante, o governo mobilizou a Eletrobras para montar às pressas um segundo consórcio para atuar como coadjuvante.
O que se viu, afinal, foi uma licitação que configurava um triângulo em que o governo exercia papel dominante nos três vértices: como leiloeiro, como investidor responsável por pelo menos 49% de cada um dos dois consórcios e, ainda, como financiador, pelo BNDES, de 80% do investimento total do empreendimento. Não foi surpreendente que, afinal, a licitação tenha sido vencida pelo consórcio coadjuvante, liderado pela Chesf e mais maleável às pressões do governo em favor de uma tarifa especialmente baixa.
Diante do constrangimento gerado por licitação tão peculiar, o governo tentou dar uma cambalhota matreira para aparecer bem na foto, como paladino da "quebra do monopólio das empreiteiras". Nada mais distante da realidade. De uma forma ou de outra, as grandes empreiteiras conseguiram se desvencilhar do papel de investidor em Belo Monte. Continuam atraídas pelo projeto, que se vai tornando a cada dia mais estatal. Mas o que lhes interessa é o que sempre souberam fazer: vender serviços de engenharia. De preferência, ao próprio governo, como esperam poder fazer agora em Belo Monte.
A cadeia de equívocos continua. Horas depois da licitação, a principal empresa construtora que integra o consórcio vencedor, insatisfeita com as condições que lhe foram impostas, externou a intenção de abandoná-lo. O que deflagrou pronta reação do governo, preocupado em minimizar a importância do fato. "Entrou quem quis, sai quem quer. Não tem nenhum cadeado fechando a porta", esclareceu o próprio presidente Lula.
De fato. O consórcio vencedor passou a ser percebido com uma casca quase oca a ser agora recheada pelo governo, da forma que bem entender. Disposto a pagar todas as contas, o governo está como o diabo gosta. Quer organizar a festa, decidir quem entra e quem não entra, negociando na porta com empreiteiras, autogeradores, grandes consumidores de energia e fundos de pensão docemente coagidos.
A ideia de que tal lambança possa vir a ser replicada em outros grandes projetos de aproveitamento hidrelétrico parece um pesadelo. É hora de conceber formas mais transparentes, menos voluntaristas e não populistas de licitar as novas usinas que terão de ser construídas para assegurar a expansão da oferta de energia elétrica no país.
O governo conseguiu fazer da licitação da usina de Belo Monte uma lambança de grandes proporções. O festival de equívocos deixa a nu a precariedade do novo modelo do setor elétrico e compõe farto catálogo de erros graves a evitar no futuro.
O equívoco fundamental, já analisado aqui, neste mesmo espaço, há duas semanas, foi a decisão demagógica de fixar a tarifa máxima que poderia ser exigida na licitação em nível inferior à tarifa requerida para cobrir os custos do empreendimento. Para poder pavonear tarifa tão baixa, o governo se dispôs a bancar a diferença entre custos e receitas, despejando uma cornucópia de recursos do Tesouro no projeto, via BNDES, Eletrobras e renúncias fiscais. Esse abandono escancarado e populista da ideia de realismo tarifário configura retrocesso de quase 50 anos na história do setor elétrico brasileiro.
O espantoso é que o governo continua fingindo que o problema não existe. Embora especialistas independentes venham advertindo que o custo efetivo do megawatt-hora em Belo Monte será de pelo menos R$100, figurões do setor elétrico e o próprio presidente Lula têm-se permitido comemorar publicamente a "tarifa módica" de R$77,97 o megawatt-hora que prevaleceu na licitação. É difícil imaginar, a essa altura dos acontecimentos, que argumento defensável poderia justificar subsídio de tal ordem à energia elétrica, quando sobram usos mais nobres para o dinheiro público.
O segundo equívoco foi a própria licitação. Em condições tão adversas e incertas sobre a rentabilidade do empreendimento, não foi surpreendente que escasseassem os interessados. Pouco antes da licitação, temendo ter de lidar com apenas um licitante, o governo mobilizou a Eletrobras para montar às pressas um segundo consórcio para atuar como coadjuvante.
O que se viu, afinal, foi uma licitação que configurava um triângulo em que o governo exercia papel dominante nos três vértices: como leiloeiro, como investidor responsável por pelo menos 49% de cada um dos dois consórcios e, ainda, como financiador, pelo BNDES, de 80% do investimento total do empreendimento. Não foi surpreendente que, afinal, a licitação tenha sido vencida pelo consórcio coadjuvante, liderado pela Chesf e mais maleável às pressões do governo em favor de uma tarifa especialmente baixa.
Diante do constrangimento gerado por licitação tão peculiar, o governo tentou dar uma cambalhota matreira para aparecer bem na foto, como paladino da "quebra do monopólio das empreiteiras". Nada mais distante da realidade. De uma forma ou de outra, as grandes empreiteiras conseguiram se desvencilhar do papel de investidor em Belo Monte. Continuam atraídas pelo projeto, que se vai tornando a cada dia mais estatal. Mas o que lhes interessa é o que sempre souberam fazer: vender serviços de engenharia. De preferência, ao próprio governo, como esperam poder fazer agora em Belo Monte.
A cadeia de equívocos continua. Horas depois da licitação, a principal empresa construtora que integra o consórcio vencedor, insatisfeita com as condições que lhe foram impostas, externou a intenção de abandoná-lo. O que deflagrou pronta reação do governo, preocupado em minimizar a importância do fato. "Entrou quem quis, sai quem quer. Não tem nenhum cadeado fechando a porta", esclareceu o próprio presidente Lula.
De fato. O consórcio vencedor passou a ser percebido com uma casca quase oca a ser agora recheada pelo governo, da forma que bem entender. Disposto a pagar todas as contas, o governo está como o diabo gosta. Quer organizar a festa, decidir quem entra e quem não entra, negociando na porta com empreiteiras, autogeradores, grandes consumidores de energia e fundos de pensão docemente coagidos.
A ideia de que tal lambança possa vir a ser replicada em outros grandes projetos de aproveitamento hidrelétrico parece um pesadelo. É hora de conceber formas mais transparentes, menos voluntaristas e não populistas de licitar as novas usinas que terão de ser construídas para assegurar a expansão da oferta de energia elétrica no país.
Rogério Furquim Werneck é economista e professor da PUC-Rio.
Um comentário:
Concordo com o que o autor do artigo diz. Esta licitação é realmente uma vergonha.
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