DEU NO VALOR ECONÔMICO
Falei há pouco, nesta coluna, sobre o caráter problemático das relações entre relevância (social, política) e qualidade analítica no trabalho no campo da ciência política. Em contraste com certa posição corrente entre nós, que vê essas relações em termos de acomodação e barganha e aceita que a exigência de qualidade seja comprometida em nome da relevância dos problemas tratados, defendi a posição de que a qualidade analítica tem total precedência sobre considerações de relevância, sendo mesmo condição para que o próprio trabalho possa pretender reclamar relevância prática no equacionamento dos problemas, em vez de expor-se a simplesmente aumentar a confusão a respeito deles.
Uma complicação da questão geral é trazida pela saliência que os temas e problemas supostamente adquirem aos olhos do público ou, numa democracia, do eleitorado. Presume-se que problemas de importância prática são problemas que despertam o interesse dos cidadãos e vão ser objeto de debate entre eles - e, na perspectiva que defendo, não caberia esperar que os cientistas políticos (ou sociais, em geral) não façam mais que juntar-se como palpiteiros aos palpiteiros leigos (que, como cidadãos, têm todo o direito de palpitar, naturalmente). Mas a confusão aumenta quando ponderamos dois fatos: de um lado, o de que há boas razões para vincular a qualidade do trabalho no estudo da política também à apropriada sensibilidade diante das questões que preocupam aos cidadãos (contra a velha ideia de uma academia transformada em "torre de marfim" sem conexão com o mundo real); de outro lado, o de que os eleitores ou cidadãos, como fartamente evidenciado pela própria sociologia política, mostram graus muito diversos de informação e interesse com respeito aos assuntos políticos e de disposição a envolver-se com eles e participar politicamente, disposição esta que tende a estar fortemente relacionada com a estratificação social, diminuindo à medida que descemos nos níveis socioeconômicos. E este segundo aspecto se desdobra em algo mais grave: a hierarquia social continua a condicionar as chances de que as opiniões dos cidadãos tenham influência nas decisões políticas mesmo quando tais opiniões chegam a existir nos níveis menos favorecidos, ou seja, quando há aí envolvimento e participação - na pobreza, como formulou R. Weissberg (citado em L. M. Bartels, "Voice, and Then What?", 2009), adquirir "voz" ou "gritar mais alto" tende a ser inútil.
Com a súbita elevação do status do Brasil no cenário internacional, a esfera da política externa vem adquirindo inédita "relevância" no país, já tendo mesmo chegado a constituir-se, como registrava Maria Cristina Fernandes em coluna de dias atrás no Valor, em tema da campanha para a eleição presidencial de 2010. Pena que seja esta uma esfera em que as confusões em que se embolam a relevância, a qualidade das análises pertinentes e questões de democracia surgem de modo especial.
Para começar, trata-se de área em que, não obstante a tradição do Itamaraty na diplomacia, não chegamos a desenvolver tradição de pesquisa e reflexão acadêmica mais rigorosa e profícua (talvez mereça menção, a propósito, a frustrante experiência pessoal de participar como convidado há poucos anos, em prestigiado centro que reunia nomes de destaque num grupo de trabalho sobre o assunto, de repetidas reuniões em que não se ia além da leitura inteligente dos jornais). Por outra parte, se estudos feitos nos Estados Unidos mostram a política externa como área em que a visão governamental das questões é particularmente distante das opiniões dos cidadãos comuns, com certeza não há razão para esperar que os cidadãos comuns brasileiros estejam atentos ao que aí se passa e possam trazer real estofo democrático às decisões.
Seria descabido negar que a projeção que experimentamos, cujo fator decisivo se acha na favorável dinâmica econômica e política recente, se articula com políticas bem concebidas e executadas no âmbito do Itamaraty. Mas creio ser evidente que nos encontramos à deriva entre, talvez, um vago orgulho nacionalista de parcelas da opinião popular, certo nacionalismo mais "instrumental" e economicamente orientado que faz (já há algum tempo) do presidente da República um ativo caixeiro viajante e, finalmente, iniciativas de inspiração tecnocrática ligadas à ideia de segurança e afirmação do país como "potência" e de protagonismo nos planos regional e mundial (como a reivindicação do assento no Conselho de Segurança da ONU) cuja tradução em termos de um "interesse nacional" democraticamente definido não tem por que ser vista como pronta ou fácil.
De todo modo, é curioso, a propósito do incidente em que Lula, diante de Angela Merkel e do tema do Irã, reclamava a desnuclearização de potências atômicas como parte do esforço de impedir o risco de proliferação dos armamentos nucleares, ver um Alexandre Garcia a informar-nos, na TV Globo, de que isso não corresponde às "aspirações nacionais". Uma visão do panorama internacional que se desvincule dos supostos em que ele aparece como o mero "terreno baldio" dos egoísmos nacionais mais ou menos poderosos e que encare o desafio de como reunir o realismo das considerações de poder à ideia de efetiva construção institucional e apaziguadora em escala planetária não pode deixar de lidar com questões como a levantada por Lula. E, enquanto não aprendemos a pensar as relações internacionais em termos maiores, poder ter algum impacto com a manifestação presidencial sobre questões como essa, ou com decisões como as relativas à reunião de Copenhague, é um aspecto positivo da nova projeção do país.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
Falei há pouco, nesta coluna, sobre o caráter problemático das relações entre relevância (social, política) e qualidade analítica no trabalho no campo da ciência política. Em contraste com certa posição corrente entre nós, que vê essas relações em termos de acomodação e barganha e aceita que a exigência de qualidade seja comprometida em nome da relevância dos problemas tratados, defendi a posição de que a qualidade analítica tem total precedência sobre considerações de relevância, sendo mesmo condição para que o próprio trabalho possa pretender reclamar relevância prática no equacionamento dos problemas, em vez de expor-se a simplesmente aumentar a confusão a respeito deles.
Uma complicação da questão geral é trazida pela saliência que os temas e problemas supostamente adquirem aos olhos do público ou, numa democracia, do eleitorado. Presume-se que problemas de importância prática são problemas que despertam o interesse dos cidadãos e vão ser objeto de debate entre eles - e, na perspectiva que defendo, não caberia esperar que os cientistas políticos (ou sociais, em geral) não façam mais que juntar-se como palpiteiros aos palpiteiros leigos (que, como cidadãos, têm todo o direito de palpitar, naturalmente). Mas a confusão aumenta quando ponderamos dois fatos: de um lado, o de que há boas razões para vincular a qualidade do trabalho no estudo da política também à apropriada sensibilidade diante das questões que preocupam aos cidadãos (contra a velha ideia de uma academia transformada em "torre de marfim" sem conexão com o mundo real); de outro lado, o de que os eleitores ou cidadãos, como fartamente evidenciado pela própria sociologia política, mostram graus muito diversos de informação e interesse com respeito aos assuntos políticos e de disposição a envolver-se com eles e participar politicamente, disposição esta que tende a estar fortemente relacionada com a estratificação social, diminuindo à medida que descemos nos níveis socioeconômicos. E este segundo aspecto se desdobra em algo mais grave: a hierarquia social continua a condicionar as chances de que as opiniões dos cidadãos tenham influência nas decisões políticas mesmo quando tais opiniões chegam a existir nos níveis menos favorecidos, ou seja, quando há aí envolvimento e participação - na pobreza, como formulou R. Weissberg (citado em L. M. Bartels, "Voice, and Then What?", 2009), adquirir "voz" ou "gritar mais alto" tende a ser inútil.
Com a súbita elevação do status do Brasil no cenário internacional, a esfera da política externa vem adquirindo inédita "relevância" no país, já tendo mesmo chegado a constituir-se, como registrava Maria Cristina Fernandes em coluna de dias atrás no Valor, em tema da campanha para a eleição presidencial de 2010. Pena que seja esta uma esfera em que as confusões em que se embolam a relevância, a qualidade das análises pertinentes e questões de democracia surgem de modo especial.
Para começar, trata-se de área em que, não obstante a tradição do Itamaraty na diplomacia, não chegamos a desenvolver tradição de pesquisa e reflexão acadêmica mais rigorosa e profícua (talvez mereça menção, a propósito, a frustrante experiência pessoal de participar como convidado há poucos anos, em prestigiado centro que reunia nomes de destaque num grupo de trabalho sobre o assunto, de repetidas reuniões em que não se ia além da leitura inteligente dos jornais). Por outra parte, se estudos feitos nos Estados Unidos mostram a política externa como área em que a visão governamental das questões é particularmente distante das opiniões dos cidadãos comuns, com certeza não há razão para esperar que os cidadãos comuns brasileiros estejam atentos ao que aí se passa e possam trazer real estofo democrático às decisões.
Seria descabido negar que a projeção que experimentamos, cujo fator decisivo se acha na favorável dinâmica econômica e política recente, se articula com políticas bem concebidas e executadas no âmbito do Itamaraty. Mas creio ser evidente que nos encontramos à deriva entre, talvez, um vago orgulho nacionalista de parcelas da opinião popular, certo nacionalismo mais "instrumental" e economicamente orientado que faz (já há algum tempo) do presidente da República um ativo caixeiro viajante e, finalmente, iniciativas de inspiração tecnocrática ligadas à ideia de segurança e afirmação do país como "potência" e de protagonismo nos planos regional e mundial (como a reivindicação do assento no Conselho de Segurança da ONU) cuja tradução em termos de um "interesse nacional" democraticamente definido não tem por que ser vista como pronta ou fácil.
De todo modo, é curioso, a propósito do incidente em que Lula, diante de Angela Merkel e do tema do Irã, reclamava a desnuclearização de potências atômicas como parte do esforço de impedir o risco de proliferação dos armamentos nucleares, ver um Alexandre Garcia a informar-nos, na TV Globo, de que isso não corresponde às "aspirações nacionais". Uma visão do panorama internacional que se desvincule dos supostos em que ele aparece como o mero "terreno baldio" dos egoísmos nacionais mais ou menos poderosos e que encare o desafio de como reunir o realismo das considerações de poder à ideia de efetiva construção institucional e apaziguadora em escala planetária não pode deixar de lidar com questões como a levantada por Lula. E, enquanto não aprendemos a pensar as relações internacionais em termos maiores, poder ter algum impacto com a manifestação presidencial sobre questões como essa, ou com decisões como as relativas à reunião de Copenhague, é um aspecto positivo da nova projeção do país.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
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