(Rouquié)
A recente visita de Mahmoud Ahmadinejad ao Brasil suscita questões que vão além dos objetivos e das declarações oficiais. Ela trouxe para o centro do debate público os cálculos geopolíticos e as ambições do atual governo. Parte dos quais permanecia mais obscura do que está hoje. O fato de ser Ahmadinejad quem é deu novos contornos e novo impulso à discussão sobre questões de política externa pertinentes para a formação de uma nova agenda pública.
Um ponto de partida conveniente é superar o que chamo de desinformação útil, porque abre espaço para um alinhamento automático com o Terceiro Mundo. Cumpre eliminar a desinformação que impede o bom debate com os estrategistas do governo e também entre seus críticos. O que já sabíamos, graças à mídia independente? Recebemos um radical extremista que nega o Holocausto, demoniza o Ocidente, financia movimentos terroristas, cujo governo quadruplicou as execuções em massa este ano (359) de opositores e criminosos comuns.
Mas há um day after da visita. No plano simbólico e político, o currículo de Ahmadinejad tornou bem mais ingrata a tarefa de projetar o Brasil e a liderança internacional do presidente Lula nos termos simplistas usados até aqui: como porta-voz dos desvalidos, do Terceiro Mundo, solidário a governos legitimados por movimentos populares. Bastou-me uma releitura das análises da crise de junho no Irã, de colegas credenciados por suas raízes na cultura e na sociedade do país, para desconstruir a imagem de Ahmadinejad que atrai as esquerdas, aqui e alhures: a de herói nacionalista dos islâmicos destituídos. As dissonâncias são gritantes. Uma delas é que a fraude eleitoral legitimou a ala teocrática, que perigava perder (de novo) sua hegemonia para a tendência reformista - alas em tensão permanente desde a fundação da República Islâmica, por Khomeini, em 1979. O impulso reformista vem de dentro do Estado teocrático, não do Ocidente liberal, e carrega um apelo popular forte.
A eleição de Ahmadinejad em 2002 significou a restauração teocrática, tutelada pelo Guia Supremo (é assim que se diz por lá) e pela hierarquia superior das Forças Armadas, da qual nosso visitante faz parte. Ela liquidou com os experimentos reformistas de seu antecessor (Khatami), que deram visibilidade às demandas e à composição social dos movimentos pró-abertura: estudantes, mulheres, intelectuais, artistas, homossexuais e minorias étnicas. O que as esquerdas globalizadas, incautas, compraram são construções ideológicas que lhes permitem "enxergar" o Irã de Ahmadinejad com suas próprias lentes. Quer dizer, como herói dos oprimidos, porque distribui as migalhas da riqueza do petróleo entre eles, por seu programa nuclear e sua obstrução às inspeções internacionais como exercício de um direito à soberania. Como toda idealização, esta facilita uma negação conveniente das características perturbadoras para nossa sensibilidade democrática. A pior delas é a substituição do regime oligárquico de Khatami por um regime autocrático que submete o corpo social a uma versão fechada e excludente do Islã.
Por trás de Ahmadinejad há um aparelho de repressão sofisticado, um sistema de comunicação ocidentalizado moderno e uma nova burguesia, cevada pela corrupção do regime. Suas milícias não são populares, mas estão ancoradas nos centros de riqueza mais poderosos do país. Por isso soa tão absurda a facilidade com que as esquerdas compraram a pecha que o presidente do Irã carimbou nos movimentos de protesto e seus líderes, parte deles de classes médias: elites! Outra dissonância é relacionada à forma de recrutamento das elites governamentais. O Guia Supremo tem a última palavra sobre a política e a lei, enquanto o presidente e o Parlamento são eleitos por sufrágio universal. Mas só depois de submeter os candidatos a duras provas, que testam sua "islamidade", pelo Conselho Guardião, tutelado pelo Guia Supremo. Logo, não há como descredenciar os concorrentes de Ahmadinejad e os movimentos que os apoiam por aderência a forças "anti-Islã". É outra manobra populista.
Está visto que o Irã de Ahmadinejad está nos antípodas de nossa sensibilidade e experiência democrática. Então, por que a pompa e o pragmatismo desmesurados com que nosso governo, com sua vocação midiática, promoveu uma visita que reverberou por toda a mídia internacional? Por que o endosso a um programa nuclear condicionado a fins pacíficos, apesar das evidências em contrário, quando bastava condicioná-lo às inspeções internacionais a que nos submetemos? Por que equacioná-lo em termos de direito ao exercício da soberania, quando o mundo globalizado exige instituições de governança e regulação globais? Senão, o que é que vamos fazer em Copenhague?
Parte da resposta é a desinformação conveniente que facilita a sonegação das evidências perturbadoras. Ideologia. Mas o fator principal e mais problemático é o pragmatismo extremado, que visa, bem mais que nossos interesses comerciais, o Conselho de Segurança da ONU, etc. Prevalece a estratégia de projetar Lula como promotor e árbitro da paz no Oriente Próximo e Médio: agora e na era pós-Lula. A qualquer custo. Uma estratégia arriscada, por duas razões. Ante a escalada exponencial da repressão no Irã, o desconforto que a retórica farsesca de Ahmadinejad causa entre os próprios aiatolás sugere uma abertura política. Como ficamos nós aos olhos dos democratas de lá e de cá? Segunda, um hiperpragmatismo desavisado, em política externa, implica condicionar a interesses personalistas uma tarefa histórica sem precedentes: a responsabilidade do Brasil - um dos dois países democráticos entre os Brics - na construção de uma ordem internacional menos hierárquica.
Lourdes Sola, professora da USP, ex-presidente da Associação Internacional de Ciência Política, é diretora do Global Development Network, do International Institute for Democracy e do Conselho Internacional de Ciências Sociais .
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