Tive a oportunidade, na semana que passou, de participar no Cairo de um seminário sobre a nova Constituição egípcia, promovido pelo Arab Forum for Alternatives e pela Arab Reform Initiative. Foram discutidos desafios e experiências constitucionais locais e de outros países (inclusive do Brasil). Especial atenção tiveram temas como a constitucionalização de direitos socioeconômicos, a convivência com a diversidade e o combate à discriminação, a questão da transparência e do direito à informação (com problemas similares aos da nossa recente discussão sobre a lei de acesso à informação), os direitos das mulheres, as relações civil-militares, a questão da descentralização e das formas participativas de democracia, assim como questões gerais de organização do sistema de governo.
Se, por um lado, a diversidade dos participantes e o arrojo de certas propostas indicam haver no Egito atual um debate plural e franco sobre os rumos a serem seguidos pelo país, por outro nota-se claramente que algumas questões correm o risco de conduzir a um diálogo de surdos. Exemplo disto foi a discussão travada em torno da condição feminina. Enquanto duas expositoras feministas (nenhuma das quais usando o véu islâmico) defendiam a necessidade de normas igualitárias para as relações de gênero e quotas para mulheres em diversos âmbitos, duas reações vindas de homens da audiência foram bastante eloquentes. Um deles, que também manifestaria posições de defesa do status quo em outros assuntos delicados (como as relações civil-militares), questionou virulentamente a pertinência das queixas das feministas, já que, segundo seu entendimento, tudo o que era reclamado por elas já se encontrava na legislação vigente.
O outro contendor, evidentemente um religioso ortodoxo (em vestes tradicionais, longas barbas e a testa marcada por uma cicatriz causada pelas repetidas preces junto ao chão), replicou-lhes calmamente com um típico e pragmático contra-argumento conservador: de que maneira convencer populações tradicionais, como os beduínos, a acatarem normas tão arrojadas para as relações de gênero? Afinal, segundo sua mansa ponderação, querer impor-lhes coercitivamente tal violação de seus costumes acabaria por gerar uma reação armada. As expositoras não tinham uma boa resposta para isto.
Embora tenha particularidades, a questão feminina e inseparável do problema religioso, outro que foi alvo dos debates. Questionou-se até que ponto deverá a Constituição refletir o caráter predominantemente islâmico da sociedade egípcia. A Constituição atual, a ser substituída, já indica que a sharia, a lei islâmica, é a principal fonte da legislação. É praticamente certo que isto não será revisto (pode até mesmo ser aprofundado), mas cabe então discutir como lidar com a liberdade religiosa. No Egito atual, embora haja liberdade religiosa individual, existem muitas restrições à construção de igrejas cristãs (uma condição indispensável à prática coletiva da fé) e não há indicações de que isto possa mudar facilmente.
Debates deste tipo irão continuar, não só em eventos acadêmicos e por meio da imprensa, mas - de forma decisiva - numa assembleia constituinte formada a partir da Assembleia do Povo e da Shura (correspondente ao Senado). Na primeira casa do parlamento, em eleições recentes, os partidos islâmicos obtiveram uma grande maioria de 70% das cadeiras, sendo 47% controladas pela Fraternidade Islâmica (mediante seu Partido da Liberdade e Justiça) e outros 23% pelo bem mais conservador Partido Salafita Al-Nour. Nas bem menos animadas eleições para a Shura, ocorridas na semana que passou, é bem provável que os resultados sejam parecidos - mas, um terço dos seus membros serão "biônicos", indicados pelo presidente.
O Egito se prepara para este processo (tão importante para a continuação da transição democrática iniciada com a Revolução de 25 de Janeiro) imerso num cenário de considerável instabilidade. Depois da queda do regime de Hosni Mubarak a desorganização da vida pública egípcia aumentou sensivelmente, reduzindo-se a efetividade da lei e decaindo o funcionamento da polícia. No cotidiano isto se evidencia em fatos como o aumento da violência urbana e a piora do caótico trânsito do Cairo - diante do que se experimenta em suas ruas, o tráfego de cidades como São Paulo, Rio ou Recife pode ser considerado um espetáculo de urbanidade.
Contudo, a situação é ainda mais complicada na esfera da competição política. Embora a data de 10 de março tenha sido definida para a apresentação das candidaturas presidenciais, não se sabe ainda quando as eleições propriamente ditas ocorrerão. Há também um imbróglio jurídico em torno das regras para as eleições parlamentares, pois a Suprema Corte considerou inconstitucionais as normas sob as quais foram escolhidos os membros das duas casas do legislativo. Como não se sabe se tal posicionamento da corte pode levar à invalidação judicial das eleições, cria-se um cenário de grande incerteza.
E há, ainda, o risco de uma deterioração do clima político, algo evidenciado por dois atos de violência cometidos na semana passada contra lideranças políticas proeminentes. Num deles, o pré-candidato presidencial Abdul Monein Abul Futuh (dissidente da Irmandade Islâmica) foi espancado junto com seu motorista por homens armados com rifles, num ataque preliminarmente apontado pela polícia como tentativa de roubo de carro - algo rechaçado por seus partidários. No outro episódio, um deputado da irmandade islâmica, Hassan el-Brins, teve o carro atingido numa rodovia por outro veículo, que o jogou contra um caminhão. El-Brins integra uma comissão do parlamento que recomendaria a transferência de Hosni Mubarak para um hospital penitenciário (hoje ele está num sofisticado centro médico do exército).
Só pelos controversos temas em disputa, o processo de reconstrução democrática do Egito já não seria nada simples. Considerando-se também a grande instabilidade política, será como construir um avião em pleno voo.
Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP
FONTE: VALOR ECONÔMICO
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