quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Hélio Schwartsman - Contra a civilização

- Folha de S. Paulo

Qual a melhor coisa que aconteceu à humanidade? Embora eu padeça de simpatias anarquistas, não hesito em responder que, historicamente, a maior bênção que caiu sobre nós foi o surgimento de Estados fortes, com aparelhos repressivos. Foi isso que fez com que as pessoas contivessem drasticamente o pouco civilizado hábito de matar umas às outras.

Em tempos modernos, um dos primeiros proponentes dessa teoria foi o sociólogo Norbert Elias, em "O Processo Civilizatório" (1939). Para Elias, à medida que o Estado passou a exercer o monopólio da violência, indivíduos foram se autodomesticando. Aos poucos, foi deixando de ser uma reação normal assassinar o rival por causa de um insulto, por exemplo. Esse processo de autocontrole não se limitou à violência, atingindo também outros aspectos da vida, como o comportamento sexual, as funções corporais e até as maneiras à mesa.

Nos últimos anos, o fulcro da tese de Elias, que passara décadas em semiesquecimento, vem ganhando adeptos, com destaque para autores como Steven Pinker, Michael Shermer, Ian Morris, e algum apoio empírico. Evidências arqueológicas apontam que as taxas de homicídio de sociedades pré-Estado tendem a ser bem maiores que as observadas atualmente até nos países mais violentos do planeta. Em alguns sítios pré-históricos, 60% das ossadas pertencem a pessoas que foram assassinadas. Morris estima índices na escala dos 10% a 20% para a Idade da Pedra, 2% a 5% para os grandes impérios da Antiguidade e de 1% a 2% para o século 20, com suas duas guerras mundiais e inúmeros genocídios. Em países ultracivilizados como a Dinamarca, ele está hoje em 0,027%.

Ao tentar decepar o Estatuto do Desarmamento, norma que consubstancia o monopólio estatal da violência, a bancada conservadora esboça um movimento contrário àquele que possibilitou a mais importante conquista da civilização.

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