A amadora tentativa de golpe militar na Turquia, estranha em país com história marcada por bem-sucedidas e brutais intervenções das forças armadas, empurrou o presidente Recep Erdogan para a rota do autoritarismo aberto e para uma desestabilizadora crise política. O ensaio de volta dos militares ao poder reflete uma cisão política que se aprofunda, onde o AKP (Partido da Justiça e Desenvolvimento), de Erdogan, carrega consigo metade do eleitorado, enquanto a outra metade se alinha cada vez mais com a oposição civil. A rejeição aos militares uniu todos os partidos em repúdio ao golpe, fortalecendo o poder que Erdogan usará para abater a oposição.
Erdogan está no poder desde 2003 e agora como presidente ampliou os poderes de um cargo então decorativo. Considerado no início como exemplo da possibilidade de convivência de um partido islâmico com a democracia, o AKP sob Erdogan quer perpetuar-se no poder, derrubando obstáculos com atentados à democracia. A ânsia continuísta do presidente teve como consequência a perseguição política e judicial à imprensa, às redes sociais e à oposição, em especial aliados de outrora do campo islâmico, os gulenistas, seguidores do clérigo moderado secularista Fethullah Gulen.
Em 2007, com a ajuda dos partidários de Gulen, o governo já havia realizado expurgos em massa nas forças armadas. O golpe da semana passada foi uma "oportunidade divina", segundo Erdogan, para realizar nova "limpeza" não apenas entre os militares, mas no campo político em geral. Entre as prisões em massa, destacam-se não só militares, pelo menos 2.740 juízes e procuradores, indicando a clara intenção de colocar o Judiciário sob mãos confiáveis. Além de prefeitos e governadores, 1.577 reitores e 21 mil professores foram demitidos (Financial Times, ontem), além de 1.500 funcionários do Ministério das Finanças. Há perseguição política clara, para além dos quartéis, o que torna previsível um acirramento da disputa política que pode desbordar o campo institucional.
Com os militares batidos, Erdogan voltou suas baterias contra os ex-aliados, acusando Gulen de ser o patrocinador do golpe e solicitando formalmente sua extradição aos EUA, onde reside desde 1999. Ainda que a autoria do golpe seja nebulosa, a ação de Erdogan faz sentido. Desde 2013, procuradores e juízes tidos como gulenistas investigam pistas de corrupção que levam ao círculo íntimo do presidente, constituindo-se em uma ameaça imediata e politicamente letal.
As consequências da crise política turca vão bem além de suas fronteiras. A Turquia cobiça há tempos ingressar na União Europeia e um acordo com a UE a coloca como principal barreira à leva de imigrantes que tentam entrar no continente fugindo de guerras no Oriente Médio e África. É ao mesmo tempo uma aliada da UE e EUA, que permite o uso de bases aéreas para incursões no território sírio, palco de uma guerra civil sem fim.
Erdogan, porém, quer o fim de Bashar Assad, o ditador sírio, arrumou encrenca com a Rússia, que defende Assad, ao derrubar um avião russo e permitiu que armas cruzassem seu território para o Estado Islâmico, que combate o governo sírio. Além disso, sob pretexto de intervir no conflito sírio, a Turquia abriu fogo contra os rivais curdos do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão), aliados dos EUA contra o EI. No final, o EI realizou atentados na Turquia e os curdos foram acusados de estar por trás de outros atos terroristas recentes. A Turquia aprofundou seu envolvimento no inferno político do Oriente Médio e o preço que pagará por isso não deverá ser pequeno.
EUA e UE recomendaram a Erdogan o respeito à democracia, mas não querem perder um aliado militar importante. Erdogan sabe usar essa carta e aproxima-se agora de Putin, com quem vai se encontrar em agosto.
Os efeitos da instabilidade podem atingir a economia, que já esteve em pior fase e agora não anda mal. A Turquia deve crescer 3,8% este ano, com uma inflação de 7,6% (superior à banda de 3 a 7% buscada pelo BC) e US$ 100 bilhões de reservas. Mas o turismo (10% do PIB) caiu 40% nos doze meses encerrados em maio e o déficit em conta corrente está no limiar de risco de 4% do PIB. Duas empresas de avaliação de risco indicaram que cogitam retirar o grau de investimento dos títulos turcos e a crise política, agora aguçada, poderá afastar os investidores, retirando fôlego da economia. A saída para os impasses seria a busca por Erdogan da conciliação política, da qual ele se afasta cada vez mais.
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