quarta-feira, 20 de julho de 2016

La Cobijada - Monica De Bolle*

- O Estado de S. Paulo

La cobijada era a mulher que, em alguns povoados da província de Cádiz, na Andaluzia, vestia-se de trajes negros, deixando apenas um dos olhos descobertos – o direito. Na pequena cidade de Vejer de La Frontera há uma estátua em homenagem a essa antiga tradição de origem árabe, estátua negra voltada para o horizonte, misteriosa, angustiante, amedrontadora. Como o mundo.

Cobiçada é a recuperação da economia brasileira. Tão cobiçada é a retomada do Brasil que muitos se apressam em esboçar cenários para o ano que vem, alguns deles bastante otimistas. Há quem acredite que, depois de viver a pior recessão já registrada, o País seja capaz não apenas de retomar o crescimento em 2017, mas de fazê-lo com algum vigor. Previsões de expansão econômica que superam a marca de 1% começam a proliferar em meio à euforia dos mercados, sobretudo dos investidores estrangeiros, com a equipe escolhida por Michel Temer. Tenho demonstrado nesse espaço meu ceticismo em relação a tais profecias diante das dificuldades políticas que continuam a atormentar o País. Nesse artigo, abordarei outra fonte de ceticismo: o mundo.


O mundo foi sacudido nas últimas semanas pela decisão dos britânicos de deixar a União Europeia, pela carnificina terrorista em Nice no dia da Bastilha, pelo golpe frustrado e mal explicado da Turquia. Não bastassem os dois primeiros acontecimentos, o golpe turco – fracassado? – expôs a fragilidade geopolítica em sua plenitude. Autoridades americanas e europeias não sabem como reagir ao ocorrido na Turquia – principal aliado do Ocidente contra o fanatismo do Estado Islâmico –, país, até recentemente, considerado mais parte da Europa do que parte do Oriente Médio.

Sejam quais forem os desdobramentos da Turquia nos próximos meses, sejam quais tenham sido as razões para o golpe – de uma tentativa concreta de remover Erdogan, ou algo mais sinistro orquestrado pelo próprio presidente turco –, o fato é que a Turquia acaba de tornar-se foco de turbulência internacional das mais perigosas.

Em meio a essas constatações, penso na cobiçada. Como haverá de se dar a recuperação da economia brasileira? O consumo permanece ameaçado pela alta renitente do desemprego, alta que haverá de persistir ante as conhecidas reações defasadas do mercado de trabalho ao restante da economia. Dito de outro modo, ainda que a recuperação começasse amanhã, o desemprego haveria de subir por mais um tempo, já que contratações apenas se dão quando empresas estão seguras do destino que lhes espera.

Hoje, não há segurança na economia brasileira, por mais que se goste da equipe econômica, o que me leva à segunda vulnerabilidade dos cenários de retomada. Todos pressupõem que empresas voltarão a investir, já que há melhora dos indicadores de confiança, percepção de que o governo fará os ajustes e reformas necessários, e que prevalecerá ambiente condizente com a tomada de risco.

Muitas empresas, no entanto, estão excessivamente endividadas, e terão de se preocupar em manter suas obrigações em dia antes de tomar qualquer atitude mais audaciosa. Os bancos, preocupados com a situação financeira de muitas dessas empresas, não terão muita disposição de conceder novos empréstimos. Sem crédito, sem novos empréstimos, não há financiamento para o investimento. O governo, que por tanto tempo preencheu essa lacuna por intermédio do BNDES, já não pode mais fazê-lo. Sobretudo se pretende de fato levar a cabo algumas das reformas propostas, inclusive do próprio banco de fomento.

Sobra o quê para impulsionar a recuperação brasileira? Sobra o cenário externo, um cobiçado cenário externo positivo para as nossas exportações, investidores estrangeiros com vontade de financiar operações no País, não apenas de arrebanhar lucro fácil com o diferencial existente entre as taxas de juros domésticas e as que prevalecem no resto do mundo.

Diante disso, vejo apenas La Cobijada, o olho direito fixo no horizonte. Vejo La Cobijada e penso no provérbio andaluz:Escrito está en la palma lo que tiene que pasar el alma.
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*Economista, pesquisadora do Peterson Institute For Internacional Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University

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