- O Estado de S. Paulo
• Resistem no Projeto de Lei 4850/16 traços sombrios da vida nacional
Em anos de vida acadêmica ou embates públicos, apoio a busca de atenuar a corrupção brasileira. Digo atenuar porque nenhuma sociedade pode reduzir a zero tal fenômeno. Sempre estive ao lado do Ministério Público, sem, no entanto, esquecer os que exercem a defesa. Neste mesmo espaço, o leitor encontra textos meus em favor dos polos antagônicos nos processos judiciais. Na PEC 37, com a qual muitos políticos tentaram impedir o mister dos promotores, foi inequívoca a minha posição. Mas lavrei meu protesto quando atos ilegítimos intimidaram advogados (sobre a defesa, ver O Estado de S. Paulo, 1/9/2012).
Lema importante, para quem deseja lutar pelos direitos humanos, temos em Aristóteles: “Amicus Plato, sed magis amica veritas”. Bajular é coisa que impede a amizade verdadeira, tal ensino ético reside em toda filosofia digna do nome.
Na Comissão Especial da Câmara dos Deputados para análise do Projeto de Lei 4.850/16, que reúne o labor de alguns integrantes do Ministério Público, falei a convite de parlamentares de partidos diversos como Rubens Bueno, Antonio Carlos M. Thame, Carlos Marun, Paulo Teixeira, Onyx Lorenzoni e Joaquim Passarinho – os dois últimos relator e presidente da comissão. O tempo de fala foi dividido com Augusto Botelho, criminalista.
O PL 4.850/16 busca atenuar a corrupção. Mas nele resistem traços sombrios da vida nacional. Apresentei objeções éticas a três de seus elementos. O primeiro destina a delatores 5% do produto “arrecadado” nos processos. Não é preciso ser I. Kant ou J-J. Rousseau para perceber que o prêmio à delação acentua o número dos injustamente perseguidos. Na Grécia antiga temos algo evidenciado em textos processuais salvos pela pesquisa histórica. Eles mostram a catástrofe trazida pelos sicofantas, delatores pagos para vigiar supostos ou efetivos corruptos. Em As Vespas, Aristófanes mostra o quanto é deletério o indivíduo armar processos para enriquecer seu bolso. Numa sociedade violenta como a nossa, se o ato de acusar é recompensado financeiramente, a epidemia da corrupção se desdobra na pandemia dos sicofantas.
Na Grécia democrática o recurso aos delatores se dá sobretudo nos séculos 4.º e 5. º aC. Suas técnicas mostram similaridade com o sistema da chantagem (black mail) nos sistemas políticos modernos. “Sicofanta era o homem que fazia processos sem justificação, seja porque tinha esperança de pegar um réu inocente e dele obter a paga devida a um promotor bem-sucedido, ou porque ele tinha a esperança de chantagear o réu ao induzi-lo a pagar propina para pôr fim ao processo” (MacDowell, Douglas M. em The Law in Classical Athens). Como vencer a corrupção? Receita simplória: caçar corruptos e aliciadores de benesses e, se necessário, inventar culpados. O instrumento para tal fim era o sicofanta.
Essa palavra, desde tempos remotos, designa quem acusa falsamente (Matthew R. Christ, The Litigious Athenian). Lísias, político da época, explica: a tarefa do sicofanta “é acusar, mesmo os que nada fizeram de errado, porque destes últimos eles arrancam mais lucro”. Sicofantas ajudam a combater a corrupção, mas eles próprios são corruptos, entre outras coisas, pelo uso da chantagem.
O segundo ponto do projeto é o “teste de idoneidade”, amplamente discutido na literatura especializada. Ali o indivíduo fica solitário diante de inquisidores secretos, é tentado de mil modos sem defesa. Imaginemos um pouco mais de autoritarismo no Estado brasileiro. A hipótese não é absurda, após as ditaduras do século 20. Se os governantes brasileiros não respondem por seus atos (quase inexiste accountability no Brasil), com tal instrumento será mais fácil perseguir adversários. O poder político, por sua dinâmica, cai de mão em mão por ordem da Fortuna. Pôr ao dispor de autoritários uma técnica como o “teste de idoneidade” é, no mínimo, imprudência.
Com o macarthismo surgem nos EUA os “testes de lealdade” e seus graves prejuízos éticos. Felizmente, os referidos testes foram atenuados. Uma técnica ética e moral, estabelecida por Kant para testar a validez de certa máxima, é perguntar se ela pode ser universalizada, omnia et singula. Caso contrário, não é moral. O teste de integridade pode ser universalizado para a cidadania e todos os Poderes? Por exemplo, na Justiça? A resposta é negativa. Nele o indivíduo estará solitário diante de um poder invisível que só respondea posteriori, mas silencia o nome e as condições do investigado. Estaríamos no domínio de O Processo, escrito por um autor que denunciou o abuso do segredo.
O terceiro ponto defende a boa-fé dos policiais ou promotores. Mostrei na comissão quanto é frágil tamanha licença. Não sou voz solitária na crítica. Outros formadores de opinião têm dúvidas sobre o quesito (Estado, Quando só a boa-fé não basta, 19/8). O termo “boa-fé” não é unívoco, mas noção vaga. Não há consenso “sobre a exata natureza legal da boa-fé. Esta imprecisão terminológica afeta inevitavelmente a função preenchida pela boa-fé no direito contemporâneo”. E, no entanto, “parece que um bom número de sistemas considera que a boa-fé se aplica às leis que tratam das obrigações em geral, e não apenas às leis do contrato”. (‘Bonne Foi’ en Principes Contractuels Communs, projet de Cadre Commun de Référence, v. 7, cap. 5. Association Henri Capitant des Amis de la Culture Juridique Française, Société de Législation Comparée, v. 7).
“O poder corrompe. O absoluto corrompe absolutamente”. O enunciado de lorde Acton serve como clichê. Se o contextualizamos, ele ajuda a refletir sobre a crise atual de Estados e nações. Em carta ao bispo Creighton, Acton discute a responsabilidade de todos os poderes, do religioso ao político. Creighton queria evitar a corrupção, atitude comum em coletivos prejudicados por malfeitores públicos. Leis seriam ideadas para prevenir costumes imorais. “Eu não me preocupo”, replica Acton, “em evitar a corrupção, mas em saber como ela surge”. É o que falta no PL 4.850/16.
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*Autor de ‘Razão de Estado e Outros Estados da Razão’, editora perspectiva
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