- O Estado de S. Paulo
Ano novo, desculpa para sonhar. Imagine um entediado hacker russo de férias em Copacabana. Vermelho – pelo sol, não por ideologia –, refugia-se no ar condicionado de sua quitinete alugada pelo Airbnb. Após assistir ao enésimo telejornal, ele, por vingança e diversão, infecta e desabilita de vez todas as câmeras de vídeo e foto apontadas para governantes brasileiros. Ao primeiro sinal de uma autoridade no visor, elas se apagam. Nem os smartphones escapam. Imaginou as consequências?
Para começar, nunca mais um prefeito se fantasiaria de gari. Qual a graça de vestir uniforme e exibir falta de intimidade com a vassoura se ninguém fotografa ou grava? Salvo o prefeito crer que o melhor jeito de exercer seu mandato é fingir que trabalha enquanto anônimos limpam a cidade dignamente, é claro.
Os frequentadores de botecos e padarias não mais teriam sua rotina interrompida pela turba que acompanha governadores, deputados e similares em visitas oportunistas a esse tipo de estabelecimento durante as campanhas eleitorais. Em compensação, os políticos nunca mais seriam flagrados fazendo careta ao tomar o cafezinho saído direto do banho-maria ou comendo aquela coxinha resgatada do esquecimento na vitrine do balcão.
Tremendo pelos efeitos da abstinência midiática, um hierarca perguntaria aos assessores apalermados: “Mas nem uma selfie?”.
A repentina escassez de imagens de dignatários seria devastadora para os canais de TV oficiais e oficiosos. Nada de transmissões ao vivo dos salões do Congresso – muito menos dos plenários dos tribunais superiores. Silenciadas e deprimidas, togas falantes do Supremo cogitariam se aposentar antes da hora. Por outro lado, os julgamentos seriam sumários, e os votos, sintéticos.
Sem poder aparecer no vídeo, procuradores da República recorreriam cada vez mais a PowerPoints para apresentar suas denúncias. Mas sem as imagens dos políticos algemados, os escândalos de corrupção perderiam audiência.
Nem entrevista coletiva de tecnocrata escaparia ao filtro do hacker siberiano. Longe das câmeras, cerimônias de posse e assinaturas simbólicas de atos oficiais cairiam em desuso. Ociosos, burocratas a cargo do cerimonial dos palácios seriam dispensados – mas os governantes nem sequer faturariam com suas demissões: sem refletores não existe ostentação de austeridade.
Em contrapartida, os porta-vozes adquiririam status inédito. Se transformariam na única cara dos governos – até acharem que eram a própria autoridade e serem também censurados pelas câmeras.
Como efeito colateral do vírus russo, os microfones emudeceriam ao detectarem o som da voz do presidente ou de um simples vereador do interior. “Pra que discursar se não vai sair nem na Voz do Brasil?”, se questionariam parlamentares em crise existencial. O pequeno expediente da Câmara se transformaria em um deserto de homens (de ideias já é faz tempo).
Concessões de rádio e TV perderiam seu capital eleitoral. Sem poder aparecer nas próprias emissoras – nem mostrar adversários em situações vexatórias –, políticos mandariam seus laranjas se livrarem dos canais e investirem em mídias sociais, as únicas poupadas do ataque cibernético.
Sem a contraprova das imagens nem dos sons gravados, declarações atribuídas a autoridades se multiplicariam pela internet. Boatos não poderiam ser desmentidos. Da revogação da lei da gravidade às fofocas sobre as libertinagens de ministros, tudo seria crível. A era da pós-verdade chegaria à fase terminal. Até o hacker ser chamado de volta para ajudar o recém-empossado presidente de um país que se tornara o mais novo aliado russo.
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