Na terça-feira passada, a ministra Cármen Lúcia, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), decidiu liminarmente suspender o cumprimento de algumas cláusulas de um contrato entre a União e o Estado do Rio de Janeiro. Com isso, o governo federal ficou proibido de bloquear quase R$ 193 milhões de contas do Estado do Rio, como era previsto no caso de descumprimento do acordo.
A decisão da ministra Cármen Lúcia não se baseou numa suposta invalidade dos termos contratuais. Até mesmo o Estado do Rio de Janeiro reconhece que as cláusulas são juridicamente válidas. O motivo alegado para não fazer valer a possibilidade do bloqueio das contas foi a “gravíssima situação financeira” na qual se encontra o Estado fluminense. A liminar tem validade até reapreciação pelo relator da ação, ministro Ricardo Lewandowski, ou a sua submissão ao colegiado.
Trata-se de uma decisão inovadora, sem dúvida. Ela reconhece a validade jurídica de um contrato e, ato contínuo, diz que ele não se aplica. A liminar da ministra Cármen Lúcia não apenas impede o bloqueio das contas, mas suspende todos os efeitos da condição de devedor que poderia ser imputada ao Estado do Rio em razão do descumprimento das cláusulas contratuais. Por exemplo, a decisão proíbe até mesmo que o Estado do Rio seja impedido, como determina a lei, de ter acesso a novos financiamentos em razão de seu inadimplemento. De certa forma, a liminar da ministra Cármen Lúcia não muda a lei – ela muda os fatos, ao determinar que o Estado do Rio de Janeiro, mesmo sem cumprir suas obrigações, seja considerado em dia com suas obrigações. Como já dissemos, a temperança é uma virtude que se esvai.
Não há dúvida de que a decisão da presidente do STF traz algum alívio ao Estado do Rio de Janeiro. Mas esse, infelizmente, não é o único efeito da liminar. Ela valida juridicamente a irresponsabilidade de um Estado que gastou muito mais do que podia, por um longo período. A situação calamitosa do Estado fluminense não decorreu de algum evento inesperado, como maliciosamente alega a Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro, ao dizer que “por circunstâncias alheias à sua vontade e absolutamente imprevisíveis (o Estado) não conseguiu honrar o pagamento de parcelas desses contratos”.
O estado de calamidade financeira é decorrência de uma explícita e reiterada irresponsabilidade na condução das contas públicas. Por isso, é tão grave a decisão da ministra Cármen Lúcia que, ao impedir a contrapartida jurídica a esse tipo de conduta irresponsável – o bloqueio das contas –, sacramenta a irresponsabilidade dos governantes.
Logicamente, a sagração de tal irresponsabilidade não é uma questão apenas moral. Ela tem um preço, que não é pequeno. Ao impedir que a União bloqueie as contas do Estado do Rio, a ministra Cármen Lúcia está determinando que todo o restante do País seja solidariamente responsável pela irresponsabilidade do governo fluminense. Além de ser uma injustiça não pequena – trata-se, afinal, de fazer com que terceiros arquem com as consequências de atos alheios à sua vontade –, a decisão provoca um desajuste do pacto federativo.
Se a União tiver de bancar a irresponsabilidade dos Estados, não tem sentido conceder-lhes autonomia, como faz a Constituição de 1988. Se existe autonomia, deve existir – e ser mantida até as últimas consequências – a correspondente responsabilidade, também financeira. Caso contrário, instala-se o sistema da desordem, no qual a gastança irresponsável é incentivada pelo fato de que um ente dito superior – no caso, a União – pagará depois a conta. A autonomia federativa exige que os Estados sejam tratados de forma madura, sendo responsáveis pelos seus atos.
Não se trata de negar a gravidade da situação social causada pelo descalabro das contas fluminenses. A situação financeira do Estado do Rio é lamentável, com uma enorme quantidade de sintomas a confirmar esse triste diagnóstico. Basta ver os recorrentes atrasos no pagamento dos salários do funcionalismo. O equívoco da decisão liminar da ministra Cármen Lúcia está em aliviar, à custa de outros, os efeitos da irresponsabilidade. E isso não é responsável, nem justo, nem tampouco pedagógico.
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