Caio Prado Jr. nasceu em 11 de fevereiro de 1907. Reverenciado como historiador e marxista, é desconhecido como militante do PCB. São pouco divulgadas as análises políticas que escreveu em diferentes conjunturas, como logo após o fechamento da Associação Nacional de Libertação (ANL) entre julho e agosto de 1935; no ocaso do Estado Novo em 1945 e nos anos dos governos JK e de João Goulart. Reproduzimos a seguir um tópico do livro Caio Prado Junior na cultura política brasileira, de Raimundo Santos, que traz uma recensão de vários artigos publicados pelo pecebista na Revista Brasiliense entre 1956 e 1964.
Na primeira de suas análises políticas, do começo de 1956, “O sentido da anistia ampla”, Caio Prado Jr., de modo parecido ao do seu PCB, valorizava a eleição de Juscelino Kubistchek por ela ter tido origem em um forte movimento de opinião pública (“sem dúvida uma das mais vigorosas afirmações da vontade popular registradas em nossa história”), opinião pública que, assim dizia ele na Revista Brasiliense, primeiro pesara na aceitação do resultado da eleição e, depois, impulsionara o movimento pela posse do Presidente vitorioso nas urnas. Abria-se um quadro com “perspectivas promissoras” para o processo político, havendo um “sopro de renovação” no governo, dado pelo fato de JK o ter constituído em um novo tempo em que “as grandes transformações ocorridas desde a última guerra começa(va)m a amadurecer e se fazerem nitidamente sentir”.
Em sua circunstância econômica, a nova administração teria de escolher entre a finança internacional e a industrialização (“em termos propriamente nacionais”). Segundo Caio Prado, mesmo sendo um governo formado em meio a acordos partidários (“sem conteúdo ideológico e cimentados quase unicamente por interesses pessoais”), o seu desafio consistia em dar passagem às forças renovadoras, antes dispersas, que se haviam reunido na eleição sob a forma “de amplos setores da opinião pública” mobilizados pela ideia de reforma; aberto o caminho para que aquele despertar político se desenvolvesse em profundidade. Fora aquele movimento de opinião pública que, apesar das “vacilações” e “ambiguidades” do candidato e do seu alinhamento ao capital estrangeiro, que teria colocado Juscelino no rumo do novo tempo promissor (Revista Brasiliense n. 4, mar./abr. 1956).
No seu segundo artigo “A política brasileira”, publicado no final de 1956, comparando as “poucas” medidas “positivas” com as muitas “negativas” adotadas por Juscelino no transcurso do ano, Caio Prado Jr. centrava sua análise no plano propriamente da política, perscrutando as possibilidades reais das mudanças, realçando o papel dos partidos. Para ele, o desempenho do governo e da oposição (“O que se pode observar é unicamente uma oposição que ataca, e um governo atacado que se defende”) mostrava-se ser um terreno pantanoso por onde o grande programa de “industrialização e desenvolvimento econômico” (sic) que emergira na eleição ia se esvaindo em razão da “improvisação, superficialidade e inconsequência da atual administração”, ajustando¬-se ao novo padrão de crescimento capitalista mediante “medíocres dependências” aos trustes internacionais, dizia ele, em detrimento da mobilização da massa da população para o trabalho produtivo e eficiente.
O historiador via na agenda “falsa” da Oposição – a ética udenista, a defesa da liberdade de imprensa (para desestabilizar o governo constitucional) etc. – ainda o reverso da própria campanha presidencial que havia sido de “caráter puramente pessoal e de agitação estéril” e que exibira “pobreza de ideias e de pensamento construtivo”.
Caio Prado fazia este diagnóstico daqueles anos 1950: “O certo é que as instituições políticas brasileiras se acham desconjuntadas”. E explicava: “A sua base essencial, que são ou deveriam ser os partidos políticos, não tem consistência alguma”. Os partidos precisavam, antes de tudo, começar a existir, afirmar, dizia ele, “a personalidade independente dos indivíduos que os compõem e eventualmente os representam. O que dá existência efetiva aos partidos políticos são os princípios e a orientação que os inspiram, e de que os membros do partido, sobretudo aqueles que exercem cargos públicos, ou que os pretendem, não são senão os portadores e instrumentos de expressão” (Revista Brasiliense n. 8, nov /dez. 1956).
Estas definições compunham a argumentação do autor: “O que essencialmente constitui ou deve constituir um partido político digno desse nome, é uma ideologia que compreenda e contenha sob forma geral e sistematizada, resposta explícita e clara ao conjunto das questões que se propõem no desenvolvimento da vida econômica e social do país, e que de maneira casuística e mais ou menos confusa se apresentam na consciência popular. Cabe aos partidos transpor essas questões para o plano político, dar-lhes uma elaboração teórica adequada e submetê-las assim ao debate público e à opinião do país. É somente assim que se irá formando um pensamento coletivo e uma cultura popular capazes de orientar a vida política do país, colocando-a a salvo de agitações estéreis e do caos que de outro modo estarão sempre iminentes. Não se esqueçam os dirigentes políticos da larga audiência que sobretudo na qualidade de chefes de partido, é posta à sua disposição. É preciso que saibam utilizar essa audiência no sentido da educação popular e da formação de uma consciência coletiva, único esteio seguro das nossas instituições políticas, e capaz de lhes dar um sólido fundamento” (Idem).
Caio Prado Jr. se voltava para a “questão geral” da democratização da vida política nacional, dizendo que a democracia era, “antes e acima de tudo, o conjunto de práticas através das quais se torne(a) possível ao povo em geral adquirir consciência de seus problemas e necessidades, formar opinião sobre a maneira mais conveniente de resolver aqueles problemas e dar satisfação às necessidades; e finalmente fazer com que essa opinião seja levada em conta na administração pública do país. A liberdade e os direitos políticos assegurados na Constituição brasileira e nas leis não têm ou não devem ter outros objetivos que aqueles. E se explicam e justificam na medida exclusiva em que contribuem para isso. De nada servem portanto se deles se excluir o conteúdo concreto que vem a ser o fato de servirem de caminho e instrumento de participação popular na direção e administração do país” (Idem).
O autor falava dessa democracia de partidos e procedimental – “essa verdadeira democracia” – como a mais importante condição para o “funcionamento regular” das instituições políticas e da administração pública: “Não é possível governar e administrar o país, no mundo de hoje e naquele que se projeta para futuro, sem ser na base de fortes correntes de opinião pública nas quais os governos busquem não somente inspiração para seus atos, como agentes políticos e administrativos capazes de realizar de maneira consequente e fecunda as tarefas que incumbem aos órgãos do poder” (Idem). E explicava ainda: “Governos e administrações que não se apoiarem num pensamento coletivo representados por partidos e expressarem ideologias políticas, pouco ou nada podem realizar por lhes faltarem não apenas normas de ação seguras e aplicáveis na prática, mais ainda quadros políticos e administrativos ativos necessários para a aplicação de tais normas” (Idem).
O historiador assim avaliava a mudança de rumo do novo governo: a administração JK, que se havia formado como um governo – sublinhe-se este ponto do autor – “eleito com um vasto programa estratégico de realizações no terreno do desenvolvimento econômico do país” fora perdendo as energias acumuladas no início e logo o programa se revelaria “não ser mais que uma iniciativa pessoal do candidato” tornado Presidente. Segundo a análise que Caio Prado Jr. fazia do seu primeiro ano, o governo passava a ser um governo desprovido dos “elementos ideais e políticos” necessários para a sua concretização como programa. Por sua vez, a oposição pela oposição, registrava o analista, “não é base suficiente para nenhuma ação política, por mais brilhantes e capazes que sejam os indivíduos que compõem aquela oposição” (Idem).
Nesse ponto do texto, Caio Prado Jr. retornava ao antigo tema das suas reflexões sobre a vida nacional – a indiferença política –, aludindo ao ceticismo da “grande maioria da população” ante as respostas que ela esperava da administração pública sem ver sinais de solução satisfatória aos seus problemas: “O povo não está nem mesmo em condições de saber ao certo o que deve ou pode esperar. Falta-lhe para isso suficiente coesão ideológica; e em matéria de pensamento e ação política não vai além do imediato. A direção que têm tomado os sufrágios populares em tantas instâncias mostra isso claramente. Resulta daí que nem o governo e os partidos que o sustentam podem contar com um apoio popular suficiente para levarem a cabo uma tarefa administrativa de largo folego; nem a oposição, por motivos semelhantes, conta com autoridade moral para servir de freio aos erros do governo. E não tem outro recurso, para justificar sua existência, que se agitar freneticamente e sem outra perspectiva que arrastar o país nessa agitação estéril” (Idem).
Dando atenção à persistência das velhas práticas da “política brasileira” – de “hostilidades pessoais ou de grupo”, “de rivalidades de campanário” e dos debates de questões políticas e administrativas “no plano de suas preferências doutrinárias e convicções pessoais” –, Caio Prado divisava os contornos de um quadro político sombrio, de crescente confusão e vazios que haveriam de alimentar os grandes interesses nacionais e internacionais à espera, acrescentava ele, de “dias ainda piores de completa desordem e desorganização da vida administrativa do país” (Idem).
No terceiro artigo dessa série de análises, “Panorama da política brasileira”, publicado no final de 1961, já em andamento o governo Jango, a avaliação caiopradiana do momento era de grande preocupação. Agora o foco do seu interesse era o quadro que ele chamava de desequilíbrio catastrófico que se estava criando a partir de uma situação de “vácuo” e “marasmo”. Caio Prado Jr. inclusive chega a interpelar as “forças políticas dominantes sobre que recai a responsabilidade da direção do país” pela omissão numa hora “em que mais se fazia sentir a necessidade da ação, de uma tomada decisiva de posições, de perspectivas claras e de realizações de grande envergadura” (Revista Brasiliense n. 38, nov/dez. 1961).
Para Caio Prado a política brasileira encontrava-se num “ponto morto”, na “completa esterilidade dos seus atuais quadros políticos”, vivendo-se uma situação que se deteriorava sem uma estrutura político-partidária capaz de dar passagem a formas de “atividade política fecundada e de perspectivas” (sic) (Idem).
Assim ele via a raiz desses impasses, “incongruências” e “inconsequências” que “estranhamente” se perpetuavam: “Realmente, a política brasileira ainda se acha fundamentalmente disposta dentro de um velho esquema inteiramente superado pelos fatos, e que herdado de um passado que já se vai tornando remoto, vem anacronicamente se arrastando em renovação. Esse esquema vem dos tempos em que a figura de Getúlio Vargas ocupava o centro de nossa vida política. Essencialmente, os nossos partidos e agrupamentos políticos ainda formam nos dois campos originários das forças que no passado respectivamente apoiaram Getúlio Vargas e lhe fizeram oposição... Analisando-se com atenção a vida política brasileira e a sua estrutura partidária, verifica-se que efetivamente o que ainda marca, de maneira decisiva, a linha divisória dos partidos, é a sua tradição do tempo do getulismo, isto é, a sua posição originária respectivamente de partidários e adversários do governo, ou antes, da pessoa de Getúlio Vargas” (Idem).
Diante daquela circunstância crítica, mas que muitos até mesmo a tinham como pré-revolucionária, Caio Prado Jr. centralizava a análise no tema do sistema partidário, firmando sua tese segundo a qual era o velho “dispositivo político” que projetava a “ilusão” – “já hoje felizmente bem atenuado, pelo menos na opinião pública” – de que “as contingências e vicissitudes da política brasileira são reflexo da correlação de forças econômicas e sociais no plano das lutas político-partidárias”. Para ele, esse dispositivo oficializava na cena pública conflitos partidários que, na verdade, e “em última instância”, resultavam do jogo “de facções de estreitos horizontes e inspirados unicamente em interesses personalistas e de clientelas políticas concorrentes” (Idem).
Tomando como exemplo a eleição e o governo de JK, dizia Caio Prado que esse “tradicionalismo ideológico” se perpetuava subsumindo e anulando num “jogo estéril” (sic) “uma larga parcela de esforços honestos e dignos de melhor sorte”; e que, na falta de “questões gerais”, reproduzia-se a política formada como mera agregação de interesses pessoais e de “clientelas partidárias” (Idem).
As eleições permaneciam sendo palco para “contingências eleiçoeiras”, apenas ocasiões para simples composições heterogêneas, formando um mundo, de “inconsequência” e de “esterilidade no que respeita à solução, ou pelo menos encaminhamento, das soluções para os fundamentais problemas brasileiros” (Idem).
Esse velho estilo persistira na conduta das forças políticas que se haviam posto à frente da administração JK, posicionando-se não em função das diretrizes do governo, mas “na base de determinações puramente partidárias e de facção”. Por sua vez, maquiando sua própria face igual à da parte mais conservadora do governo de Juscelino, a UDN ocupara todo o espaço da oposição, recobrindo-o com o manto de uma luta “facciosa de clã político” derrotado (idem).
Nesse mesmo artigo, o analista da Revista Brasiliense continuava sua reflexão sobre a política brasileira, dizendo que a própria candidatura de Lott – “nítida e confessadamente reacionária” (sic); sendo o general “desde o desaparecimento de Getúlio Vargas e sobremaneira por ocasião do episódio de 11 de novembro de 1955, o garante da situação PSD-PTB” – apenas iria fazer funcionar o “decrépito dispositivo” contra as arremetidas da UDN “no sentido de indevidamente polarizar as forças políticas do país”, centralizá-las em torno de uma “estreita luta de facções sem nenhum conteúdo ideológico e programático real” (Idem).
Caio Prado observava que a eleição de Jânio também reproduzira o “obsoleto esquema faccioso que é o PSD-PTB de um lado, a UDN do outro”. E que não seria nada estranho que, nesse quadro, a demagogia “populista e esquerdizante” de Jânio ganhasse conteúdo popular apenas para, em sua aventura, levar a uma situação de “paralisia” da política brasileira. Ademais, acrescentava ele, essa “cena política oficial” envolvia os debates em torno das questões nacionais com uma “nebulosa estratosfera de vagos princípios abstratos onde, embora debatidos, não oferece a menor possibilidade ou probabilidade de se traduzirem em realizações concretas” (Idem).
Segundo Caio Prado Jr., os partidos políticos deveriam aposentar “definitiva e inapelavelmente o decrépito dispositivo político-partidário” e se reestruturarem “em função de programas de ação efetiva no rumo da solução dos grandes problemas nacionais, e na base da organização popular, isto é, tomando por fulcro os movimentos populares onde encontrarão o impulso e cooperação necessários, e somente aí o encontrarão, para aquela ação” (Idem).
No quarto artigo que publica na Revista Brasiliense de novembro/dezembro de 1962, “Perspectivas da política progressista e popular”, Caio Prado Jr. tornava a insistir na questão da inexistência de um “sentido mais profundo” na “vida política partidária oficial brasileira”, e revelava seu pessimismo ante o fato de que as “aspirações e reivindicações e a problemática econômico-social brasileira” estavam apenas sendo instrumentalizadas (Revista Brasiliense n. 44, nov./dez. 1962).
Ao invés de ver o tempo do governo Jango como um terreno firme cuja “disposição de forças” permitisse definir táticas adequadas a um objetivo de mais alento, Caio Prado Jr. fixava como tema obrigatório a compreensão geral da vida política e da sua deficiência “revelada na inadequação dos quadros partidários à nossa realidade e problemática econômico-social” (Idem). Ele observava que a formulação dos “grandes problemas” havia-se tornado “clara, pelo menos em suas linhas gerais e fundamentais” e que se tinha popularizado alguns pontos dos “temas nacionais”, no entretanto, voltava ele ao mesmo ponto, “os quadros partidários brasileiros não se dispõem em função das soluções a serem dadas a essas questões. Ou o fazem de maneira ambígua e inconsequente. Eles se dividem e agrupam não na base de programas destinados a enfrentar as tarefas propostas pelo desenvolvimento autônomo e nacional da economia brasileira e pela reforma agrária – que são os pontos em que se centralizam as questões pendentes na conjuntura atual – e sim com vistas a insignificantes interesses de grupos partidários, quando não de simples ambições e vaidades pessoais” (Idem).
Segundo Caio Prado Jr., a responsabilidade maior pela persistência desse quadro cabia, em primeiro lugar, às “forças progressistas e populares” que haviam perdido a iniciativa perante os “fatos”, ou seja, ante os demais atores, tanto junto àqueles a quem deveriam conduzir quanto em relação aos adversários (e aliados) que, pela lógica da política vigente, terminavam por lhes subalternizar a ação (Idem).
Ao não se concentrar na labor de operar a “polarização de forças segundo os problemas nacionais”, o protagonista “progressista e popular” deixava que aqueles problemas nacionais “se disfarçam e esvaem na heterogeneidade dos dispositivos partidários que se defrontam na arena política, bem como na vagueza de formulações inconsistentes e inconsequentes” (Idem).
O analista via o tempo transcorrido do governo Jango como uma conjuntura na qual não se havia conseguido converter a instabilidade que se formara após a renúncia de Jânio em uma fase de “grandes transformações capazes de encaminhar a solução das contradições pendentes” (Ide).
Assim ele descrevia a situação dramática: “O país atravessou neste ano e pouco, uma das mais agitadas fases de sua política, uma sucessão de crises que vem abalando profundamente o país e chegando mesmo a colocá-lo na iminência de lutas armadas. Na base dessa agitação e crise, o que em última instância as alimenta, foi sem dúvida, como ainda é o caso, a intranquilidade decorrente do aguçamento das contradições profundas que dilaceram o organismo econômico e social da Nação e se manifestam entre outros neste efeito e sintoma tão palpável que é a crescente aceleração do processo inflacionário” (Idem).
O ponto de Caio Prado era a deterioração política que avançava com a perda de uma circunstância inicialmente favorável – o “ardor das massas” (sic) que despontara em 1954 “numa luta que estimulada e desencadeada, embora por fatores altamente positivos, logo se esteriliza e se perde, em todas suas arrancadas, em becos sem saída” –, a cena pública se amesquinhando a cada dia (Idem).
A continuação do movimento pela posse de Jango em uma nova luta para recuperar todos os poderes presidenciais (“intensa agitação popular, greves, pronunciamentos militares”), quando Goulart já podia até nomear o próprio ministério, dizia ele, expressava a "ânsia desmedida" pelo poder das “forças progressistas e populares”. Caio Prado Jr. chega mesmo a dizer que se realmente o plebiscito fora o “fato político máximo” desde a posse, ele não ensejara um “passo decisivo” adiante, no sentido das reformas, nem indicara “algum sintoma de uma próxima realização” (Idem).
O historiador também recusa a radicalização das áreas que combatiam a então chamada “conciliação” do Presidente com o centro político e setores conservadores que haviam participado da negociação da sua posse. Observava que, numa avaliação como esta, restava ainda explicar como e porque o Presidente “resolveu conciliar, e como logra fazê-lo com o assentimento geral, ou pelo menos sem oposição sensível do dispositivo e das forças políticas que o apoiaram e continuam apoiando sua política e suas posições” (Idem).
Dizia ele que “se fosse tão fácil deter ou modificar o rumo dos fatos políticos, com aferições como, no caso, aquela da vontade ‘conciliatória’ do Sr. João Goulart, não haveria mais previsão política possível, nem plano, programa, estratégia ou tática em que se pudesse confiar” (Idem).
Ao invés disso, devia-se procurar explicações, assim continuava Caio Prado Jr. fixando o seu ponto, no fato de que justamente se estava aproveitando noutra direção o apoio popular que o dispositivo janguista havia mobilizado (conseguindo, nas palavras do autor, “unir e confundir, desde a renúncia de Jânio Quadros, com o estabelecimento do pleno exercício, pelo Sr. João Goulart, dos poderes de Presidente da República”; cf. idem).
Nessas avaliações, Caio Prado mobiliza sua tese da debilidade da vida política nacional: a “não-coincidência” “entre os fatos concretos da política partidária brasileira, de um lado, e doutro as contradições profundas da nossa realidade econômica e social”. No caso daqueles anos do governo Jango, esta dissociação aparece nas suas análises gerando uma situação enganosa, de aparente radicalização. Esta percepção de conjuntura colocava-se como um desafio a enfrentar, para ele, “sem dúvida um grande óbice, talvez no momento o mais sério, oposto a um fecundo desenvolvimento da política brasileira no sentido da solução das grandes contradições econômicas e sociais que afetam o organismo da Nação” (Idem).
Caio Prado Jr. pensava que, sem a “ânsia desmedida” pelo poder naquela situação dramática, se estaria em melhores condições para se formular uma práxis (destinada a “corrigir as defeituosas vias em que se processa a política brasileira”) em favor de uma “clara definição e polarização de forças”. Era por este caminho que abriam-se perspectivas para “a solução das contradições econômicas e sociais pendentes”, interditando-se a velha lógica da “política brasileira” que terminava sempre por “canalizar e dissipar o dinamismo latente nessas contradições para estéreis lutas de facções e choques de interesses personalistas” (Idem).
“Um primeiro e imediato passo”, dizia ele naqueles tumultuados anos, seria a concretização “sistemática” (sic) de um programa “a fim de tirá-lo das vagas generalizações e dispersão de princípios que ainda hoje o caracterizam”, ter noção “precisa de como propor essas questões concretamente e de modo a lhes dar soluções expressas em normas práticas e desde logo aplicáveis” (Idem).
Ele se refere ao exemplo da reforma agrária, que estaria – cite-se o autor – “reduzida simplesmente, na maioria dos casos, a imprecisas formulações acerca da distribuição de terras e a diatribes contra o latifúndio. O resultado é esse que vemos: a falta de consistência e seguimento dessa política, perdida como se encontra em vagas formulações de caráter agitativo, e incapaz por isso de se fixar em diretrizes concretas suscetíveis de orientar as forças populares, com segurança, em qualquer emergência que porventura se apresente.´ O que não somente faz a política popular incompreendida por muitos, e frequentemente até mesmo eivada de suspeição em largos setores da população que em princípio lhe seriam favoráveis, mas ainda abre perspectivas para a exploração demagógica por parte daqueles que pretendem usar e efetivamente usam as forças populares em proveito de suas ambições e facciosos interesses político-partidários” (Idem).
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Nesses anos do governo Jango Caio Prado não se volta diretamente para o Plano Trienal – o programa reformista de urgência como propunha o seu formulador Celso Furtado para evitar o retrocesso político o perigo do golpe de direita –, tendo escrito na Revista Brasiliense sobre o capital estrangeiro e a lei de remessa de lucros.
Mas publica três artigos sobre a reforma do mundo rural. No primeiro deles, “Um Discurso Marca Época”, o historiador via o surgimento do governo de Miguel Arraes como uma possibilidade de implantação de medidas concretas de renovação da economia agrária (“racionalizando” a palavra-de-ordem da reforma agrária, afastando-a da “agitação estéril”) (Revista Brasiliense, n. mar./abr. 1963).
No segundo, “O Estatuto do Trabalhador Rural” (ETR), Caio Prado Jr. tomava essa lei trabalhista, ante cuja promulgação em 1963, observava ele, as esquerdas não haviam demonstrado grande interesse, como o fato decisivo para “atualizar” a sua ideia de “revolução abolicionista”, seja porque o ETR dava lugar a uma vasta mobilização social “na generalidade do país”, seja porque também abria, no imediato, “as melhores perspectivas para a ação reformadora e seu sucesso”. Caio Prado Jr. voltava à ideia de reforma agrária de valorização do trabalho, à qual a luta pela terra era questão “evidentemente conexa” (sic) na medida em que as mudanças maiores provocassem os seus resultados gerais (Revista Brasiliense n. 47, mai./jun. 1963).
Por fim, em seu último texto “Marcha da Questão Agrária no Brasil” (Revista Brasiliense jan./mar. 1964), Caio Prado Jr. insistia na concentração de energias no “centro nevrálgico e ponto principal de partida da reforma que deve ser imediata e intensamente atacado”, que era a mobilização da "grande massa dos desempregados" sindicalmente organizados nos setores mais importantes da agropecuária brasileira. Em lugar de realçar os conflitos liderados pelas Ligas Camponesas que pontilhavam algumas áreas do país, o historiador considerava que a movimentação trabalhista descortinava “amplas perspectivas de reforma e renovação econômica e social e podemos até dizer política”, mais consentânea, como ele dizia às vésperas da destituição do Presidente de João Goulart 1964, com o “profundo sentido do nosso processo revolucionário” (Op. cit.).
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[Fonte: Raimundo Santos. O lugar de Caio Prado Junior na cultura política brasileira. Rio de Janeiro: FAPERJ/Mauad, 2001].
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