- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
O grande fotógrafo brasileiro, German Lorca, costuma dizer, quando vê algo fotografável, "isso dá uma fotografia". Muitas de suas belas fotos foram feitas sob estímulo dessa criativa intuição. Num país como este, o vivencial de enredos e histórias que dizem quem somos, e aquele somos que não conhecemos, propõe a todo instante argumentos e roteiros que esperam apenas a prontidão de quem possa filmar ou fotografar.
Henri Cartier-Bresson formulou a tese do instante decisivo para definir o momento justo e revelador do ato fotográfico. É aquele instante que só pode ser capturado pelo fotógrafo em estado de prontidão para fazer a fotografia ou o filme que dirá de maneira mais completa e mais significativa o que é o real ali registrado. A prontidão é condição do instante decisivo. O desaparecimento dos correspondentes locais dos grandes jornais suprimiu nossa prontidão para conhecer a saga do vivido. Privou-nos da atenção decisiva para os fatos do Brasil profundo. Isso empobreceu nosso imaginário.
Ainda temos aqui histórias à procura de seus cineastas. Uma delas é a história de Rovana, filha da escritora negra Ruth Guimarães, que foi da Academia Paulista de Letras. Ruth era casada com um primo-irmão. Dos filhos que tiveram, três eram portadores de uma síndrome rara. O escritor Joaquim Maria Guimarães Botelho escreveu um livro em que narra a história de sua irmã Rovana, com extensas transcrições de um diário por ela escrito. Foi alfabetizada por Gioconda, uma Anne Sullivan do interior de São Paulo, uma dedicada professora. Começou a falar aos 11 anos de idade. Nesse diário, situado e explicado por seu irmão, a comovente história dessa prisioneira do silêncio.
Outra história é relativa a uma tragédia shakespeariana nas selvas de Rondônia, nos anos 1970, quando o governo militar estimulou as migrações do Paraná e do Espírito Santo para colonização daquele Estado. Terras indígenas foram incorporadas ao plano de colonização, como a dos paíter e a dos uru-eu-wau-wau. Um dos jovens paíter, Oréia, de uns 16 anos, aprendeu a falar português e foi recrutado pela Funai como intérprete. Ele e uma jovem de sua idade, filha de colonos capixabas, apaixonaram-se. A resistência dos pais da moça foi imensa. Nos sertões do Brasil era e ainda é crença que índio não é gente. Além do que, a moça havia sido prometida em casamento a um jovem de sua região de origem.
Por essa época ocorriam os últimos raptos étnicos na região amazônica. Os uru-eu-wau-wau, de Rondônia, raptaram um adolescente, filho de colonos. Nunca mais foi encontrado. Por sua vez, Oréia raptou sua amada e a levou para a aldeia. A família da moça organizou uma expedição e recapturou-a. Oréia entrou num processo depressivo, ficava deitado na rede, abúlico. Seu grupo de idade atacou a família da moça, que nessa altura já havia sido enviada de volta ao Espírito Santo. Em represália, a família e amigos atacaram a aldeia, mataram Oréia, o esquartejaram e distribuíram os pedaços pela mata, para que fossem comidos pelos animais.
Os jovens voltaram a atacar os agressores e mataram vários. De volta à aldeia cumpriram vários dias de ritos de purificação antes de entrarem na oca. Uma história emblemática da tragédia que cobriu o Brasil nos anos 1970, na grande onda de ocupação da Amazônia. O cenário do grande desencontro da condição humana, cuja história espera seu cronista.
A tragédia do desencontro está também na história de Helena Valero, jovem brasileira branca que foi raptada pelos índios ianomâmi em meados dos anos 1930. Ela havia estudado numa missão católica. Falava português, espanhol e nheengatu. Na captura, fora ferida por uma flecha envenenada com curare. Estava com os pais, na roça, que fugiram e a esconderam antes sob galhos e folhas, prometendo voltar.
Foi, porém, capturada pelos índios, que estavam longe de seu território, e levada embora. Recebeu o antídoto para o veneno e sobreviveu. Com eles viveu por cerca de 20 anos, tendo casado duas vezes na tribo. Teve três filhos e uma filha. Escapou em 1956 e voltou para os brancos. Foi à procura de sua família, que a rejeitou porque tivera convivência carnal com os índios. Acabaria voltando para os ianomâmi. Foi reencontrada nos anos 1980, por dois jornalistas de "O Estado de S. Paulo".
Estava cega e vivia às margens do rio Orinoco, cuidada por uma nora indígena. Ela já havia contado sua história ao antropólogo italiano Ettore Biocca, que publicou em livro sua narrativa. No Brasil, pátria de Helena Valero, sequer houve interesse em publicar seu livro, a única mulher brasileira raptada por indígenas a fazer, em primeira pessoa, minuciosa narrativa de sua saga e de sua tragédia.
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José de Souza Martins é sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Uma Sociologia da Vida Cotidiana” (Contexto).
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