- Valor Econômico
O déficit brasileiro atingiu 6,2 milhões de domicílios
Anton Tchékhov (1860-1904), um dos grandes nomes da literatura russa, era um homem atormentado por dúvidas, mas seus biógrafos revelam que ele tinha pelo menos uma certeza: a aversão a certos privilégios de sua época. O ócio, por exemplo, era considerado pelo escritor um aspecto negativo da Rússia czarista. Em sua visão, significava que para desfrutarem do benefício do "dolce far niente", as pessoas exploravam e oprimiam. Ou seja, para compensar o descanso de uma certa elite, alguém era obrigado a trabalhar muito mais.
No conto "A Noiva", o autor de "O Jardim das Cerejeiras" defende o seu ponto de vista quando um personagem diz a uma moça de nome Nádia o trecho a seguir: "Entenda, você e sua mãe não fazem nada, isso significa que outros trabalham para vocês, que você explora a vida do seu próximo em seu favor, e que isso não seria correto, não é injusto?"
Os clássicos são clássicos pela perenidade de suas ideias, e Tchékhov faz parte da boa bibliografia para lidar com as questões contemporâneas. Ao longo do tempo, o status do ócio mudou e sua boa reputação é devida a Domenico de Masi, que cunhou o termo ócio criativo, uma proposta inovadora de discutir o trabalho. A atualidade do escritor russo, na verdade, está na lógica elementar de que a conta de um benefício é sempre paga por alguém.
No caso da delicada condição fiscal no Brasil, essa questão não é marginal. Os benefícios obtidos com dinheiro público precisam, no quadro de ajuste que se impõe, ser amplamente discutidos pela sociedade. Os números são eloquentes: em 2017, o déficit do governo central ficou em R$ 118,4 bilhões. Diante desse cenário de cobertor curto, o poder público deve decidir os escolhidos e os perdedores, como disse o economista Luiz Guilherme Schymura, diretor do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre-FGV), em entrevista ao Valor.
Para ele, a dificuldade é grande para equacionar esse problema, pois não há defensores dos interesses difusos da sociedade: "Brasília é dominada pela agenda dos grupos específicos".
No contexto histórico brasileiro, não surpreende a revelação de que integrantes do Judiciário recebam auxílio-moradia de R$ 4.378 - com isenção fiscal - por mês, mesmo com imóvel próprio na cidade onde trabalham. Observe-se, quem defende o benefício alega que está previsto na lei orgânica da magistratura. A legislação determina que o Estado forneça imóveis funcionais a esses servidores. Na ausência deles, o auxílio deve ser pago. Para alguns especialistas, porém, o auxílio-moradia nessas condições pode ferir a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO).
No mês que vem, o Supremo Tribunal Federal (STF) vai consolidar o seu entendimento sobre o pagamento do auxílio-moradia nesses casos. Hoje, esse pagamento está em vigor por decisão do ministro Luiz Fux, que concedeu liminar a favor da magistratura.
As notícias em torno do assunto viraram manchetes dos jornais, o que levou um corregedor a tratar as apurações como "picuinha" da mídia para atacar a Justiça. Muitos especialistas afirmam que a liminar de Fux, porém, onerou o erário. O economista Marcos Lisboa, presidente do Insper, disse ao Valor que os benefícios podem não burlar "algumas leis peculiares brasileiras, mas certamente burlam qualquer boa norma da economia". Vamos aos números: o gasto com auxílio-moradia no Judiciário e no MP consumiu R$ 5,4 bilhões nos últimos quatro anos, segundo a ONG Contas Abertas.
Um outro lado da questão é que a Constituição Federal também prevê que todo brasileiro tenha direito a moradia. No entanto, em 2015 o déficit brasileiro foi de 6,2 milhões de domicílios, ou seja, 9,3% do total do país. O Maranhão possui o maior déficit (19%) e o Rio Grande do Sul, o menor (5,9%). Os dados são da Fundação João Pinheiro.
Para efeito meramente de ilustração, com os valores do auxílio-moradia nesse período poderiam ser construídas 22,5 mil casas nas metrópoles brasileiras ou 56,9 mil nas cidades menores, de 20 mil habitantes, segundo estimativa do Valor Data.
A questão é complexa, mas na visão do historiador Carlos Guilherme Mota, professor emérito da USP, no Brasil impera "a lei do primeiro eu". Para ele, o país tem uma tradição de ser comandado por uma autocracia burguesa que dita as regras e define a maneira de como usufruir os benefícios dos postos públicos. "Se fosse uma empresa privada, seria diferente", afirma. "Essas instituições são geridas por pessoas com preocupações com a viabilidade econômica de suas ações."
É da democracia a disputa de grupos de interesse pela sua participação no Orçamento. Com a lei do teto dos gastos públicos, acreditava-se que as despesas diminuiriam, os problemas distributivos estariam mais evidentes e a sociedade poderia cobrar mais eficiência dos gastos públicos, diz Naercio Menezes Filho, coordenador do curso de políticas públicas do Insper. No entanto, a cultura brasileira parece ter dificuldade para valorizar o bem comum acima do interesse próprio. "As pessoas não conseguem entender que é preciso mais isonomia."
Esse espírito de corpo pode estar por trás de graves problemas na sociedade. Tomemos o caso da reforma da Previdência, uma necessidade urgente. O déficit em 2017 ficou em R$ 268 bilhões, considerando INSS (R$ 182 bilhões) e setor público (R$ 86 bilhões). No primeiro caso, atendendo a cerca de 30 milhões de pessoas, no segundo, a 1 milhão.
Mas o problema é qual reforma deve ser feita? Menezes adverte que nunca se pensa na racionalidade do sistema, o que leva a uma guerra de direitos e quem acaba perdendo são sempre aquelas categorias que têm menos condições de organização. "A reforma tem de ser feita. Será preciso convencer a população de sua necessidade. Por sua vez, os deputados terão de ouvir a população e decidir acima dos interesse corporativos", alerta Menezes. Mas é difícil acreditar em gestos como esses dos nossos políticos.
Em tempo: médico, Tchékhov dava o exemplo. Dedicava a vida ao trabalho e era uma referência. Costumava dizer que a medicina era sua mulher e a literatura, sua amante. Nunca leu Karl Marx (1818-1883) e não tinha relação com a classe operária, como Máximo Gorki (1868-1936), mas "encontrou sons de tristeza social que tocavam o coração de seu povo", como escreveu Thomas Mann (1875-1955), defensor do liberalismo e um grande admirador do escritor russo.
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