quinta-feira, 18 de abril de 2019

*José de Souza Martins: Pelas próprias mãos

Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

Propensão ao justiçamento incivilizado ganha um aliado perigoso e indevido nos  políticos que pregam  o armamento e a transformação do brasileiro num povo de pistoleiros

O Brasil ainda é um dos países que mais lincham no mundo. Entre tentativas e linchamentos consumados, cerca de uma ocorrência por dia. Não incluo no cálculo os casos indevidamente definidos como de "linchamento moral", os de agressão moral ou de difamação. Os verdadeiros linchamentos são aqueles em que a multidão quer sangue.

Com os assassinatos correntes, os do crime organizado, os casos de violência policial e as diferentes formas de agressão disseminadas na população, o país está vivendo uma verdadeira guerra civil, o que de certo modo equivale à situação de países dominados por conflitos internos intensos. Os de governos frágeis e sem rumo, incapazes de assegurar a paz e a unidade com pluralidade, com base nos princípios e valores da civilização. Dentro do Brasil verde e amarelo, há um Brasil, que, embora sendo o mesmo, é outro, aquele no qual não nos reconhecemos.

Os linchamentos de agora têm uma diferença em relação aos 2 mil casos que estudei em meu livro "Linchamentos - A Justiça Popular no Brasil". A maioria das ocorrências se concentrava nas regiões metropolitanas de São Paulo, de Salvador e do Rio de Janeiro, nessa ordem, com uma proporção menor de casos em outras regiões. Com a expansão das cidades, os linchamentos estão se deslocando para o Nordeste e, ainda mais, para o Norte.

A pesquisa cobre um período de meio século. Indica características do comportamento coletivo, em face de determinados crimes, que são essenciais para compreender as peculiaridades sociais dessa modalidade de violência. Nesse período, ao menos 1 milhão de brasileiros participou de linchamentos e tentativas.

Os linchamentos tendem a ocorrer em áreas urbanas, sobretudo na periferia das cidades ou nas localidades novas. Onde as populações ainda têm uma sensibilidade social de tipo comunitário, diversa da propriamente urbana. Estão desorientadas nas discrepâncias da dupla orientação, vítimas da nossa urbanização inconclusa e patológica.

Ali, a sociabilidade antiga está mutilada e a nova ainda é precária e não ajustada aos valores propriamente urbanos da impessoalidade e da distância social. São lugares onde os desconhecidos se estranham, nos relacionamentos duplamente à margem. Seus protagonistas tiveram diferentes tipos de socialização, distanciados entre si por temporalidades de datas desencontradas.

Nesses confrontos, protagonistas e vítimas, não raro, têm entre si distâncias de muito mais de um século na concepção dos valores sociais, dos costumes e da visão de mundo. Coisa própria de um país de história desigual e lenta.

Em grande número de linchamentos brasileiros é possível identificar valores e orientações de conduta punitiva e concepções de direito que datam da época das Ordenações Filipinas, isto é, do período colonial. Em que, de certo modo, há o reconhecimento do direito de vingança, fortemente presente nos linchamentos atuais, o direito de cobrar em sangue o sangue derramado por alguém da família extensa e da comunidade ou a sua honra. Como ocorria no cangaço.

A propensão ao justiçamento incivilizado ganha um aliado perigoso e indevido nos políticos que neste momento pregam o armamento geral e a transformação do povo brasileiro num povo de pistoleiros.

A declaração do presidente da República, em Israel, ilustrada por sua foto a portar arma de fogo, de que espera que cada brasileiro tenha sua arma, é um retorno ao arcaísmo da concepção de justiça pelas próprias mãos e de suas reelaborações oligárquicas e populares ao longo dos últimos dois séculos. Um retorno à barbárie da negação da Justiça moderna e civilizada. É declaração que expressa um tipo de mentalidade, a de quem desconhece a força pedagógica do poder.

A barbárie da chacina praticada por uma dezena de soldados do Exército contra um pai de família indefeso, seguida de risos dos assassinos e justificada, em princípio, em nota do próprio comando militar, se inscreve na pauta dessa cultura do atraso e da pistolagem. Estamos governados por uma mentalidade de equívocos.

Portar arma não intimida ninguém, em especial os inocentes, que não estão de prontidão para se defenderem se tratados como aquilo que não são, como nesse caso. Isso é coisa de quem não conhece o país em que vive. Nos linchamentos, a arma comum é a pedrada, a paulada, o pontapé, o soco, eventualmente a facada, raramente o tiro. Instrumentos cujo uso não precisa de permissão de ninguém, muito menos dos governantes.

O povo já está armado. A questão é desarmá-lo. Não é incomum que o linchamento termine com a vítima queimada viva ou estraçalhada na lapidação ou na cacetada, como aconteceu com inocente mãe de família, no Guarujá (SP), não faz muito tempo.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Fronteira - A Degradação do Outro nos Confins do Humano” (Contexto).

Um comentário:

Daltony Nóbrega disse...

Um artigo muito útil e claro que traz luz sobre um assunto controverso, hoje pautado pelo visível despreparo e pelo deslumbramento onipotente dos novos ocupantes do poder, de um lado, e pela falta de visão e de caráter dos defensores do armamento indiscriminado. Obrigado ao professor e ao blog pelo exemplo de lucidez.