quinta-feira, 18 de abril de 2019

Fernando Abrucio*: A linguagem política da era Bolsonaro

- Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

A linguagem política é um dos indicadores da qualidade da democracia de uma nação. Sua natureza diz respeito à maneira como os atores políticos e sociais falam, dialogam e negociam. Claro que as instituições políticas são essenciais, pois delimitam os direitos dos cidadãos e os deveres dos governantes. Mas leis e estruturas governamentais não andam sozinhas. O jogo político depende muito de como as lideranças políticas estabelecem um padrão de comunicação internamente à política e com a sociedade. Este é um ângulo vital para entender o inicio do governo Bolsonaro e suas perspectivas.

A construção da democracia é um dos maiores exemplos da relevância da linguagem política. Só foi possível reconstruir o mundo no pós-Segunda Guerra quando a tolerância e a barganha entre os principais atores políticos tornaram-se a regra do jogo. Foi o modelo pluralista que permitiu à Europa se livrar do fantasma dos totalitarismos que haviam vigorado por lá por duas décadas.

Falou-se muito do nazismo nos últimos dias e esqueceu-se que sua superação somente foi possível quando os políticos alemães deixaram de se ver como inimigos e passaram a se tratar como adversários. O mesmo vale para a Itália fascista. Basta ler Norberto Bobbio para aprender como a arte do diálogo foi essencial para a reconstrução da democracia italiana.

A democracia pressupõe mais do que a mudança da linguagem falada entre os políticos. Seu sucesso depende da forma como a política dialoga com a sociedade. A abertura de canais de participação, a maior transparência, o respeito pelo povo e pelas diversas partes que o compõem foram grandes conquistas obtidas em vários países no pós-Segunda Guerra.

Infelizmente, a história não é um processo evolutivo contínuo, como sonhavam muitos dos iluministas. O fato é que o mundo tem esquecido a importância de uma linguagem política democrática. Esse fenômeno começou na década de 1980, mas ganhou contornos mais fortes nos últimos dez anos, com a ascensão de populismos de direita cuja essência comunicativa é autoritária. O maior exemplo disso está, hoje, no centro do poder, nos Estados Unidos.

Donald Trump e seu ideólogo, Steve Bannon, criaram um modelo de linguagem baseada num tripé: propagar cotidianamente a mentira pública - ou a pós-verdade, para usar o termo hipócrita que inventaram - como forma de difamar os adversários; inventar inimigos públicos, que devem ser combatidos violentamente, sem direito ao contraditório; e evitar o diálogo com opositores ou mesmo grupos que pensem diferente, uma vez que não existe espaço para a negociação de posições.

Esse modelo de linguagem política tem se espalhado, levando os seus ideólogos ao poder em países como Polônia, Hungria, Filipinas, Itália e Brasil. Também esteve presente na campanha que produziu o Brexit, o maior desastre político da Grã-Bretanha desde o fim do Império Britânico. E há chances de mais nações embarcarem nessa onda. Isso levaria ao enfraquecimento da democracia em várias partes.

Vale frisar que essa radicalização autoritária da linguagem política se alimentou de erros de liberais e da esquerda. Da parte dos primeiros, o discurso pró-globalização tornou-se muito elitista e perdeu a capacidade de ouvir e falar com a maior parte do povo. E não há democracia sem incluir a voz das pessoas no debate. Os populistas de direita estão ouvindo os "perdedores" da mudança econômica e tecnológica e lhes vendendo um mundo novo, ilusório em grande medida, mas que conversa com as angústias de muitos cidadãos comuns.

Já a nova esquerda tem insistido muito numa visão ancorada na lógica da identidade. Obviamente que é muito importante defender grupos minoritários ou alijados do processo político. A situação das mulheres, dos grupos LGBT, dos negros e de minorias étnicas é um problema muito relevante da democracia e não haverá igualdade democrática sem garantir direitos a todos. Mas a defesa desses grupos deve ser feita em diálogo com os demais, e não os afastando de antemão de qualquer possibilidade de negociação de posições.

Os erros dos liberais e da esquerda, no entanto, não justificam, em hipótese alguma, a virulência e o autoritarismo da linguagem política dos populistas de direita. Por isso, é preciso entender e combater essa nova forma de comunicação seguindo os cânones da democracia. A análise do bolsonarismo deve seguir essa linha argumentativa.

Bolsonaro repete claramente o padrão de linguagem política dos populismos de direita, acrescentando temperos locais, como a questão da violência urbana e o ataque ao "inimigo comunista". Sua forma virulenta e autoritária de expressar-se, aliás, vem de longe. Ele propôs o fuzilamento do presidente Fernando Henrique Cardoso há 20 anos, no mesmo momento que propôs fechar o Congresso Nacional - algo que já não tem feito mais, embora tenha dificuldade de lidar com a legitimidade dos eleitos pelo Legislativo.

Como em outros países, essa linguagem política antidemocrática foi revestida de modernidade durante a campanha de 2018 no Brasil. As redes sociais falam diretamente com o povo, diziam os líderes bolsonaristas. Apesar de o anseio por uma nova política atravessar todo o espectro social, Bolsonaro e seus apoiadores, principalmente o PSL, venderam-se bem aos eleitores como os antípodas da "velha política". Não há dúvida de que é preciso reformar e renovar o sistema político brasileiro, mas isso só poderá ser feito por meio de formas democráticas de exercício do poder, incluindo aqui a linguagem política.

Os primeiros meses do governo Bolsonaro revelam que sua linguagem política é pouco afeita à lógica democrática. O primeiro exemplo disso está no difícil diálogo com o Congresso Nacional. No fundo, o Executivo federal não aceita a legitimidade dos parlamentares, a despeito de terem sido eleitos da mesma forma que o presidente. Por trás da proposta do "voto patriota" e desinteressado dos congressistas está uma visão de mundo que não aceita outra visão que não a do próprio governante e seu grupo palaciano. Negociar se transformou num verbo que só se relaciona com a corrupção, e assim foram fechados os canais de diálogo com os deputados.

O problema na relação com Congresso vai além de uma questão normativa. Há implicações práticas para o futuro do governo Bolsonaro. O chamado Centrão, decisivo em qualquer votação, tem chamado o presidente de "Dilmo". Para além da ironia da história presente neste apelido, afinal trata-se da política contra a qual Bosonaro mais destilou seu ódio, essa situação revela a enorme falta de confiança entre os congressistas e a Presidência da República. Só com o PSL e mais alguns apoios pontuais não se aprova a reforma da Previdência ou qualquer outra medida legislativa importante. Em poucas palavras, sem fazer algum tipo de coalizão formal o presidente não governará o país.

O modelo comunicacional do presidente Bolsonaro também é problemático na sua relação com a sociedade. O fechamento de vários conselhos de participação, sem um estudo maior ou conversa com atores relacionados a tais áreas, é uma forma de se fechar ao diálogo. O modelo participativo brasileiro tem problemas, e muitas pesquisas mostram isso. Porém, para reformá-lo, é preciso acreditar na conversa constante com grupos que nem sempre vão concordar com o governo de plantão. Nessa interação, podem ser construídos novos consensos ou soluções - ou ao menos pode-se dar direito à expressão de posições divergentes, mesmo que minoritárias. Escutar e auscultar o povo ou parcelas dele não significa seguir tal ou qual posição. Bolsonaro tem legitimidade suficiente para ouvir, discordar e arbitrar segundo as regras democráticas. Portanto, não deveria ter medo da ampliação do leque de interlocutores.

A visão bolsonarista é similar ao tripé criado por Trump e Bannon. Primeiro, espalha-se um conjunto de "fake news" para atacar adversários ou para criar confusão no jogo político. A forma de usar as redes sociais, comandadas por Carlos Bolsonaro, espelha bem esse modelo, que faz uma linha direta com os seguidores mais fiéis, mas não tem ajudado a manter a popularidade. Em segundo lugar, é preciso ter inimigos, de vários tipos, como comunistas, imprensa, professores e todo grupo que possa ter uma concepção diferente de mundo. E com inimigos, termina a trilogia, não se conversa nem se negocia. É preciso aniquilá-los.

A dificuldade em usar uma linguagem política mais pluralista vai além do bolsonarismo, atingindo também a oposição e certos atores sociais. Mas é no grupo bolsonarista que esse fenômeno é elevado à enésima potência, tornando-se uma estratégia de conquista e manutenção de poder. Isso gera um duplo problema para Bolsonaro. De um lado, porque isso atrapalha os objetivos de seu governo, porque sem o apoio do Congresso e de outros atores sociais será muito difícil sair da crise atual. Conversar bastante e firmar acordos deveriam ser metas para se alcançar a governabilidade.

Só que o lado mais sombrio do problema é outro: usar uma linguagem virulenta e de combate aos tachados como inimigos, não alimentar o diálogo com outros atores políticos e sociais, isolar-se, enfim, nas suas próprias certezas irrefutáveis é um comportamento antidemocrático. Talvez isso explique porque Bolsonaro não saiba qual é a diferença entre uma ditadura e a democracia.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP,

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Verdade,os bolsonaristas é o grupo menos pluralista que já houve no Brasil.