Pedro Ferreira* e Renato Fragelli* / Valor Econômico
A hostilidade do grupo ideológico ao livre comércio é notória, o que deve dar calafrios na equipe econômica
O governo Bolsonaro, que há pouco completou 100 dias, constitui uma desordenada aliança entre populistas conservadores e liberais clássicos, à qual se associa um grupo militar coeso com interesses mais geopolíticos. Para fins eleitorais, o concerto funcionou bem, tendo o selo de qualidade da Universidade de Chicago conferido credenciais reformistas a um candidato que, durante seus anos de baixo clero na Câmara, havia se notabilizado pela defesa dos interesses de grupos específicos - notadamente militares e policiais - e de uma bizarra pauta de extrema direita, bem como de oposição aberta a reformas modernizantes. Não está claro, entretanto, se a aliança sobreviverá aos quatro anos de mandato.
Como reforma da previdência e equilíbrio fiscal não estão no DNA de Bolsonaro, este não raro dá declarações que poderiam ter sido proferidas por parlamentares da oposição. Antes mesmo de as negociações políticas começarem, o presidente já contradizia sua equipe econômica sugerindo baixar a idade mínima para a aposentadoria das mulheres, entre outras modificações que reduziriam a economia fiscal. Com habilidade, o ministro da economia e deputados conscientes da necessidade da reforma conseguiram contornar aquela que se revelaria a primeira crise envolvendo a reforma da previdência.
O conflito entre visões de mundo ficou novamente claro no recente cancelamento do aumento de 5,17% do preço do diesel. A regra de reajuste fazia todo sentido: o preço doméstico dos derivados de petróleo seguia o preço internacional convertido à moeda doméstica pela taxa de câmbio. Como a capacidade de refino de diesel da Petrobras é inferior ao consumo doméstico, quando a empresa pratica preço inferior ao definido pela regra, nenhuma distribuidora privada se interessa em importar o produto. Neste caso, a fim de suprir a demanda doméstica por diesel, a Petrobras tem que importar a diferença entre o consumo e sua capacidade de refino, vendendo-a domesticamente a preço inferior ao comprado no exterior.
O prejuízo previsível levou à queda de R$ 33 bilhões do valor de suas ações. Estaria Bolsonaro se inspirando em Dilma Rousseff? Para evitar excessos de volatilidade, a regra agora em suspenso - ou em renegociação - previa que os reajustes seriam espaçados no tempo.
Ocorre que racionalidade econômica nem sempre é fácil de entender e seguir. Com receio de greve dos caminhoneiros, o presidente tomou uma decisão que vai de encontro à estratégia de sua equipe econômica. O cálculo político de curto prazo falou mais alto do que a racionalidade econômica. O resultado foi uma sinalização muito ruim que terá consequências permanentes. A partir de agora, qualquer grupo de pressão com capacidade de mobilização se sentirá estimulado a lutar por seus interesses, mesmo que em claro detrimento da maioria da população.
O Executivo, por iniciativa de seu chefe, mostrou-se menos forte do que se esperava ou aparentava. A fim de evitar o desastre maior, a equipe econômica saiu em campo tentando apagar o incêndio e restabelecer a racionalidade, tendo o ministro da Economia declarado que uma boa conversa conserta tudo. Tudo indica, mas não se sabe por quanto tempo, que funcionou.
Não faltam exemplos de conflitos entre visões de mundo dentro do governo. O ministro das Relações Exteriores e o recém demitido ministro da Educação enxergam o mundo pelas lentes antiglobalistas, identificando uma espantosa conspiração mundial de marxistas culturais para solapar os valores cristãos ocidentais. Nessa toada, o (ainda) ministro Ernesto Araújo já conseguiu indispor o Brasil com o mundo árabe, com a Rússia e com a China. A hostilidade do grupo ideológico ao livre comércio é notória, o que deve dar calafrios na equipe econômica e no ministério da agricultura.
No Ministério da Educação, os desastres de gestão se confundiram com a falta de visão e com erros de diagnósticos. Enquanto a Petrobras sabiamente decidia concentrar sua verba de promoção em ciência e educação infantil - base para o desenvolvimento intelectual posterior dos estudantes -, o Ministério da Educação embrenhava-se numa esdrúxula cruzada ideológica, ignorando o que realmente é essencial na educação brasileira: a melhoria de sua qualidade. Ficaram para o segundo plano ações fundamentais na área, como encaminhar a renovação do Fundeb (que expira em 2020).
A Apex, que deveria ser fechada segundo o plano liberal de campanha - dado que até hoje não disse para o que veio - vem sendo disputada acirradamente por antiglobalistas. Estes também arrumaram confortáveis empregos na TV Brasil, televisão estatal criada pelo PT, com audiência insignificante, outra autarquia cujo prometido fechamento foi postergado sine die. Aparentemente, os populistas de direita - olavistas ou não - regozijam-se tanto com um emprego público bem remunerado quanto seus predecessores petistas, apesar da retórica anti-governo.
A tensão entre o grupo conservador-ideológico e o liberal tende a crescer. Sobretudo se a Presidência continuar intervindo no dia a dia das empresas públicas, ou se a desastrada articulação política continuar mais atrapalhando do que ajudando na aprovação das reformas. É pouco alvissareiro verificar que o ministro da Economia tenha se tornado uma peça mais importante nas negociações políticas do que o ministro da Casa Civil e os líderes do governo no Congresso.
Os mercados continuam a acreditar, ainda que com certo ceticismo, que as reformas possam se tornar realidade, com aumento das concessões públicas e privatizações, aprovação da reforma da previdência e da autonomia do Banco Central, alguma modernização na balbúrdia tributária e normalização das relações internacionais e comerciais. Isto daria força política ao grupo liberal que teria mais capacidade de barrar intervenções açodadas e disparates ideológicos. Os antiglobalistas, neste caso, ficariam restritos a espaços onde o estrago seria menor, como a Apex, TV Brasil e redes sociais. Talvez por excesso de otimismo, ou pensamento desiderativo, este último cenário nos pareça o mais provável, embora ele esteja muito longe de estar assegurado.
*Pedro Cavalcanti Ferreira é professor da EPGE-FGV e diretor da FGV Crescimento e Desenvolvimento
*Renato Fragelli Cardoso é professor da EPGE-FGV
Nenhum comentário:
Postar um comentário