Novo presidente procura acalmar o mercado: ‘Temos de ser responsáveis’ diante da crise
e pediu 'Lula livre' em seu discurso da vitória, se reunirá com Macri nesta segunda-feira
Janaína Figueiredo, enviada especial | O Globo
BUENOS AIRES — Apesar de a Casa Rosada ter organizado uma nova campanha eleitoral após o revés sofrido nas eleições primárias de agosto último, o presidente Mauricio Macri não conseguiu impedir a vitória em primeiro turno de seu principal rival nas eleições deste domingo, o candidato da aliança entre peronistas e kirchneristas Alberto Fernández.
A aliança Frente de Todos — de Fernández e sua companheira de chapa, a senadora e ex-presidente Cristina Kirchner (2007-2015) — conquistou, com 97,58% das mesas de votação apuradas à meia-noite deste domingo, 48,03% dos votos, contra 40,45% do atual chefe de Estado. O ex-ministro da Economia, Roberto Lavagna, ficou em terceiro lugar, com 6,17%. Para vencer a eleição no primeiro turno na Argentina é necessário alcançar 45% dos votos ou 40% com pelo menos dez pontos de vantagem em relação ao segundo colocado.
Com o resultado, a centro-esquerda peronista volta ao poder na Argentina, quatro anos depois da vitória de Macri sobre Cristina Kirchner, que legou ao sucessor uma crise econômica que se agravou sob o atual presidente, apesar de um pacote de US$ 50 bilhões firmado por ele em 2018 com o Fundo Monetário Internacional.
Pouco depois das 22h, Macri reconheceu a derrota em discurso e disse que convidou o opositor para uma conversa sobre a situação do país nesta segunda-feira:
— Parabenizo o presidente eleito Alberto Fernández. Acabei de falar com ele pela grande eleição que fez. O convidei para tomar amanhã um café da manhã na Casa Rosada porque deve começar uma transição ordenada que leve tranquilidade aos argentinos.
Em seu discurso de vitória, Fernández anunciou que aceitou o convite:
— Vamos colaborar em tudo o que possamos porque a única coisa que nos preocupa é que os argentinos deixem de sofrer de uma vez por todas — disse.
Fernández fez várias menções a Cristina, que estava ao seu lado na comemoração que reuniu milhares de pessoas em frente ao quartel-general da campanha da Frente de Todos, e dedicou um agradecimento especial ao falecido presidente Néstor Kirchner (2003-2007), de quem foi chefe de Gabinete:
— Obrigada, Néstor, onde você estiver, você semeou o que estamos vivendo — Disseram que não voltaríamos mais, mas uma noite voltamos e vamos ser melhores.
"Lula livre"
Os argentinos foram às urnas num clima de enorme polarização em toda a América do Sul — com protestos por reformas sociais e contra medidas de ajuste no Chile e no Equador, a quarta eleição consecutiva do presidente boliviano Evo Morales contestada pela oposição e a pior crise econômica da História da Venezuela. A vitória de Fernández tem o potencial de reconfigurar o balanço de forças na região, depois de uma série de vitórias eleitorais de forças conservadoras, a última do presidente Jair Bolsonaro no Brasil.
A eleição foi acompanhada por enviados do PT como o ex-chanceler Celso Amorim. Também estiveram com Fernández neste domingo o ex-presidente do Paraguai Fernando Lugo (2008-2012) e o ex-premier da Espanha José Luis Rodríguez Zapatero. Durante a campanha, o agora presidente eleito visitou Luiz Inácio Lula da Silva na prisão e neste domingo, dia do aniversário do brasileiro, enviou-lhe uma mensagem através das redes sociais, na qual fez o gesto de "Lula livre" com os dedos.
Em seu discurso da vitória, Fernández voltou a mencionar Lula, "um homem injustamente preso", e pediu de novo "Lula livre", sob aplausos da multidão. Ele e Cristina também cumprimentaram Evo Morales pela vitória em primeiro turno na eleição do domingo passado. O governo brasileiro anunciou na última sexta-feira que não reconhecerá a vitória de Morales até que haja uma auditoria do resultado. A auditoria deverá ser feita pela OEA (Organização dos Estados Americanos).
Preocupação com dólar
O candidato peronista não chegou a dar uma surra no chefe de Estado, como fez nas primárias, quando ficou 17 pontos percentuais acima de Macri. Desde então, o presidente fez uma campanha intensa em todo o país e conseguiu aumentar de forma expressiva os 32% obtidos em agosto, num país mergulhado em profunda recessão.
O macrismo também perdeu o governo da província de Buenos Aires, principal distrito eleitoral do país. O novo governador será Axel Kicillof, ex-ministro de Economia do segundo governo de Cristina, que alcançou mais de 50% dos votos. Já na capital foi reeleito o macrista Horacio Rodríguez Larreta, como apontavam as pesquisas.
Numa campanha na qual a crise econômica ocupou um papel central — muito acima de questões como os escândalos de corrupção envolvendo ex-funcionários kirchneristas e até mesmo a ex-presidente e sua família —, Fernández foi uma revelação política com a qual o macrismo não contava.
Foi um dia de muita ansiedade. Macri manteve até o final a expectativa de forçar um segundo turno para ter chances de reeleger-se. Após votar no Bairro Norte portenho, o chefe de Estado afirmou que hoje, seja qual fosse o resultado, estaria “trabalhando na Casa Rosada pelo futuro dos argentinos”. Já Fernández, que votou em Porto Madero, disse que “vamos trabalhar juntos, acabou o nós e eles”.
— Estamos vivendo uma enorme crise e temos de ser responsáveis — disse o candidato da Frente de Todos, tentando acalmar os ânimos dos que temem uma nova desvalorização do peso esta semana.
Após as primárias de agosto, o dólar disparou, provocando, em consequência, o aumento do risco país e um forte reajuste de preços internos. Na noite de ontem, foi realizada uma reunião de emergência no Banco Central para avaliar medidas que poderiam ser adotadas nos próximos dias, caso a corrida ao dólar, acentuada nas últimas semanas, fique ainda mais intensa — o que preocupa o governo e, também, o peronismo.
O mercado teme que um governo peronista e kirchnerista faça mudanças radicais na política econômica, e existem dúvidas sobre uma eventual renegociação da dívida pública, iniciativa que Fernández já antecipou. Mas a realidade é que a aliança não deu muitas pistas sobre seu programa econômico, e essa incerteza preocupa investidores dentro e fora do país.
Além de eleger presidente, os argentinos renovaram parte do Parlamento e elegeram governadores e prefeitos.
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