- O Estado de S.Paulo
Inadmissível que uma minoria use em seu proveito a maior fatia dos recursos públicos
A aprovação da reforma da Previdência é, sem dúvida, um marco na História do País. Apesar de seus percalços e atrasos, ela vem por bem operar uma grande transformação não somente do ponto de vista do equilíbrio fiscal, mas também tornar efetiva a luta contra os privilégios. Há uma dupla significação aí envolvida: econômica e política.
A significação econômica tem sido bem ressaltada, graças a um processo que, iniciado no governo Temer, ganha agora sua conclusão no governo Bolsonaro. Não seria mais possível o País continuar sangrando com os recursos gastos na conservação do sistema previdenciário, beneficiando uma minoria incrustada no Estado, enquanto o desemprego adquire proporções alarmantes, para além da falta de recursos em áreas fundamentais como segurança, saúde e educação. Se nada tivesse sido feito, o País estaria caminhando para a insolvência fiscal, com todas as consequências nocivas daí resultantes. O não investimento, nacional e estrangeiro, tão necessário, seria apenas um de seus efeitos.
A significação política reside em que os estamentos e as corporações do Estado foram enfrentadas. É bem verdade que o caminho começa apenas a ser percorrido, há muito a ser feito. Mas não era mais possível conviver com um grau tão alto de desigualdade entre os setores privado e público. Os privilégios de uma minoria, com aposentadorias polpudas em idade precoce – algumas corporações se aposentam com pouco mais de 50 anos, em média –, foram reduzidos e no que diz respeito à idade mínima, contidos.
Temos aqui uma espécie de paradoxo: um governo de corte liberal na área econômica, conduzida por um ultraliberal, o ministro Paulo Guedes, capitaneia uma reforma contra os privilégios, propugnando a igualdade entre todos os cidadãos, orientada por um espírito de universalidade entre os trabalhadores privados e públicos; e uma esquerda que defende os privilégios das corporações e dos estamentos estatais, contra o tratamento igualitário para todos os cidadãos, isto é, aferrada aos benefícios particulares desses setores. “A esquerda” é a favor dos privilégios, da particularidade e da desigualdade; a “direita” é a favor da eliminação dos privilégios, da universalidade e igualdade.
Chegou-se a tal situação paradoxal graças a um trabalho de formação da opinião pública muito bem conduzido pela esquerda, que soube transmitir a mensagem de que sua posição era universal, quando esse aspecto era nada mais do que uma máscara a encobrir a particularidade de suas ideias e o tratamento desigual entre os cidadãos privados e públicos. Por décadas o País conviveu com tal condição, como se a direita fosse particularista, e não igualitária. Presa aos privilégios dos funcionários públicos, a esquerda conseguiu convencer durante muito tempo a sociedade de que estaria defendendo os trabalhadores em geral.
O véu só começou a ser rasgado no governo Temer, quando os privilégios começaram a ser expostos. A luta foi árdua com as corporações, que se mobilizaram fortemente contra a reforma da Previdência. Nesse contexto, convém não esquecer, duas denúncias foram oferecidas pelo então procurador-geral da República Rodrigo Janot contra o então presidente, visando ao seu impeachment. Hoje se sabe que não tinham nenhum fundamento essas denúncias, baseadas num áudio truncado e numa frase inexistente no contexto em que foi apresentada. Infelizmente, não se pode voltar no tempo, então o estrago foi feito. A reforma da Previdência parou e os privilégios foram mantidos. Seus germes, porém, estavam solidamente implantados.
O presidente Jair Bolsonaro e sua equipe econômica recuperaram e ampliaram o projeto de profunda mudança previdenciária, que chega agora a bom termo. A Câmara dos Deputados, sob a presidência de Rodrigo Maia, e o Senado, sob a presidência de David Alcolumbre, estiveram à altura do desafio, sabendo dialogar e fazer o melhor para o País, apesar da desarticulação política dominante. Souberam distinguir a política miúda dos verdadeiros interesses nacionais.
Nesse processo a esquerda ficou se contorcendo, desorientada e imersa em suas contradições e particularidades. Não aproveitou a ocasião para se renovar. Alguns deputados e senadores do PSB e do PDT viram a importância do que estava em jogo e não se submeteram às diretrizes partidárias. Agora enfrentam o problema das punições, quando deveriam ser vistos como a vanguarda de uma esquerda que pretende modernizar-se. O PT, como sempre, graças à sua orientação leninista, votou em bloco na defesa das desigualdades e a favor dos privilégios, tampouco soube tirar proveito da oportunidade política de revisar suas posições.
Note-se que a posição de Marx sempre foi de defesa dos trabalhadores em sua universalidade, não lhe ocorreu sustentar os interesses de funcionários públicos, que gozam de benefícios inalcançáveis e impossíveis para os trabalhadores em geral. O filósofo alemão lutava contra a desigualdade, assim como os anarquistas e socialistas de diversos matizes da época. Ora, a esquerda brasileira – e, de modo geral, a esquerda em outros países – abandona essa mensagem marxista/anarquista/socialista em proveito de uma defesa intransigente das corporações e dos estamentos estatais.
O combate político, atualmente, deveria ser, tanto do ponto de vista da “direita” quanto da “esquerda”, o de desaparelhar o Estado, capturado pelos seus estamentos e corporações. Não é moral nem politicamente admissível que uma minoria use em proveito próprio a maior fatia dos recursos públicos, enquanto a maioria vive em condições sociais das mais penosas, com desemprego, falta de esperança e baixa renda. A reforma da Previdência deve, nesse sentido, ser sucedida, em nova etapa, pela reforma administrativa, mais propriamente, do Estado.
* Professor de filosofia na UFGRS.
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