- Valor Econômico
Pequenos enganos e boas intenções custam caro ao país
Já era noite no seu gabinete no Palácio do Planalto. Distraído com uma sequência de audiências protocolares e despachos burocráticos, o presidente finalmente se deu conta de que naquela tarde a Câmara votava a reforma da Previdência: “Se ninguém me ligou até agora, é porque o resultado foi ruim”. Acionou então um de seus assessores, que confirmou o pressentimento: a idade mínima havia sido derrotada.
Por um voto. Para colocar as contas da Previdência em ordem, o governo propôs 60 anos para mulheres e 65 para homens, acrescidos de pelo menos 25 anos de contribuição. Para piorar, o voto faltante veio de um integrante do seu partido, que até um mês antes era seu ministro. Foi dormir terrivelmente irritado - sabia que a votação seria apertada, mas perder por um voto, e justo de alguém da sua equipe mais próxima, era muito doloroso.
No dia seguinte as coisas serenaram. O presidente acabou perdoando o deputado - que havia explicado que, inadvertidamente, apertara o botão de “abstenção” no lugar do dígito verde do “sim”. Além disso, a Câmara tinha mantido pelo menos o tempo de contribuição - não era o ideal, mas já daria um refresco no déficit dos próximos anos. Por fim, apesar do gosto amargo de sentir a vitória escapar por tão pouco, 307 votos num assunto tão polêmico mostrava que, no fim do primeiro mandato, seu governo ainda tinha força no Congresso - o que seria um grande ativo para a sua reeleição (essa conclusão vai por minha conta, pois não consta dos “Diários da Presidência 1997-1998”, de Fernando Henrique Cardoso).
Embora, nas suas memórias, FHC tenha minimizado os efeitos do engano de Antonio Kandir na votação, esse erro custou muito caro para o país. A idade mínima só será estabelecida nesta semana, com a promulgação da PEC de Bolsonaro no Congresso.
Foram 21 anos perdidos, com déficits crescentes sugando recursos do orçamento público.
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Na ressaca de um impeachment, grandes escândalos de corrupção e debates sobre as vantagens e desvantagens de nosso sistema de governo, o Congresso decidiu reformular as regras do jogo, aprovando novas leis sobre o financiamento das eleições e a atuação dos partidos.
As dificuldades de formar coalizões já se faziam sentir à época (Collor que o diga) e a derrota do parlamentarismo no plebiscito de 1993 sepultou o sonho de uma reforma radical. Nas eleições de 1994, 18 partidos conseguiram pelo menos uma cadeira na Câmara. Era preciso fazer algo para evitar que o país se tornasse ingovernável.
Decidiu-se então ressuscitar um instrumento que não havia sido adotado na Constituição: a cláusula de barreira. De acordo com a nova lei dos partidos políticos, aprovada em 1995, os partidos só teriam acesso ao fundo partidário e ao horário “gratuito” de rádio e TV se alcançassem pelo menos 5% dos votos válidos no Brasil inteiro. Para dar tempo de os partidos se adequarem, a regra só seria aplicada dali a dez anos.
A questão, claro, foi parar no Supremo. PCdoB e PSC - que certamente não sobreviveriam à nota de corte - argumentaram que a cláusula de barreira seria inconstitucional. Nas vésperas da entrada em vigor do dispositivo, o STF pautou a matéria. O relator, ministro Marco Aurélio, deixou clara a sua preocupação: de acordo com os resultados das eleições de 2006, apenas sete partidos sobreviveriam, e isso seria uma afronta ao princípio do pluralismo político. O plenário, unânime, concordou, e a cláusula de barreira foi extirpada da legislação. O Brasil conta hoje com 32 partidos registrados no TSE, sendo 30 com representação na Câmara.
Ser “dono” de partido é um dos negócios mais vantajosos no país. Afinal, quem não quer ter direito a dezenas ou centenas de milhões de reais por ano, podendo alocá-los com grande flexibilidade e pouca transparência?
O Congresso demorou 11 longos anos para restituir, com a Emenda Constitucional nº 97/2017, a cláusula de desempenho no sistema eleitoral. Nesse ínterim, escândalos se sucederam tendo nas suas raízes negociatas para a formação de coligações, doações ilícitas de grandes empresas, candidatos laranjas e distribuição de cargos e verbas para votar com o governo.
Obviamente não era a intenção do Supremo fomentar o aumento da corrupção no país. Mas quando ele decidiu, em 2006, recorrendo apenas ao texto ou ao “espírito da Constituição”, sem refletir sobre os incentivos e as consequências de sua decisão, foi isso o que provocou.
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A história foi contada pela repórter Cleide Carvalho, n’“O Globo” de 03/04/2018. Em 1991, numa exposição agropecuária em Passos (MG), o fazendeiro Omar Coelho Vítor perdeu o controle quando um jovem mexeu com sua esposa e desferiu cinco tiros de pistola. Apesar de ferido na boca e na coluna, o rapaz felizmente sobreviveu.
Processado por tentativa de homicídio, Omar foi condenado pelo júri a sete anos e meio de prisão. Quando o crime completou dez anos, o TJMG confirmou a sentença em segunda instância. Mas os advogados impetraram um habeas corpus no STF, e o plenário decidiu mudar a jurisprudência da Corte e aplicar, pela primeira vez, a tese de que Omar só poderia ser preso após esgotados todos os recursos, conforme determinaria o art. 5º, inciso LVII, da Constituição.
Depois de interpor embargos de declaração, recurso especial, agravo regimental, mais dois embargos de declaração, embargos de divergência, agravo regimental nos embargos de divergência, embargos infringentes e agravo regimental nos embargos infringentes ao recurso especial, o STJ declarou a prescrição do crime. Vinte e um anos depois do crime, Omar estava livre. “Ele tinha bons advogados em Brasília”, explicou a vítima dos tiros da sua pistola.
Na última quinta-feira, a ministra Rosa Weber proferiu seu voto sobre a prisão em segunda instância. A ministra não compactua com a impunidade no Brasil. Mas isso é o que o seu voto vai provocar. Tem dia que eu fico pensando na vida, e sinceramente não vejo saída.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.
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