- Valor Econômico
Políticas de austeridade geram substanciais custos ao bem-estar e deprimem a demanda e o emprego
Começamos com os Movimentos: do Líbano ao Chile, passando pelo Equador, sem esquecer os Coletes Amarelos na França, a tigrada do andar de baixo e do intermediário está a manifestar seu desagrado com a vida que lhes é imposta.
O nacionalismo xenófobo de Donald Trump nos Estados Unidos, o referendo sobre a permanência do Reino Unido na União Europeia, a tensão entre a Alemanha e a política monetária do senhor Mario Draghi na Zona do Euro, o Japão encalacrado na estagnação e a desaceleração chinesa são sintomas dos achaques e estertores que acometem o arranjo geoeconômico erigido nos últimos 40 anos.
Eppur se muove, proclamam as relações econômicas que constituem os mercados no capitalismo. Permita o caro leitor uma observação hegeliana, tão ligeira quanto ousada, a respeito do Movimento. Slavoj Zizek insiste na incompatibilidade entre o pensamento de Hegel e qualquer tipo de evolucionismo historicista, o “movimentismo”.
Hegel assevera: “de forma alguma [a dialética] envolve o reconhecimento da força irresistível de um fluxo que leva tudo com ele”. O filósofo adverte que crítica da fixidez das determinações corre o risco de cair na armadilha de um processo infinito, em uma sucessão de eventos que levam ao futuro.
As concepções ossificadas - à direita e à esquerda - deixam de examinar o conjunto de relações que estruturam o capitalismo como uma organização econômica, social e política singular, singular porque histórica. Isso significa que essas relações se reproduzem num movimento incessante de diferenciação e autotransformação no interior de sua estrutura. Não há determinismo nem indeterminação: o capitalismo se transforma no processo de reprodução de suas estruturas. A historicidade do capitalismo é a antítese do historicismo vulgar. O Movimento também é incompatível com os pressupostos da rigidez cadavérica, embutidos nos modelos Dinâmicos(sic) Estocásticos de Equilíbrio Geral.
Sugiro, modestamente, um sobrevoo desde o fim dos anos 1970. A reestruturação do capitalismo envolveu mudanças no modo de operação das empresas, na integração dos mercados e, sobretudo, nas relações entre o poder da finança e a soberania do Estado.
O verdadeiro sentido da globalização é o acirramento da concorrência inserida em uma estrutura financeira global monetariamente hierarquizada, comandada pelo poder do dólar. Sob os auspícios do capital financeiro e de um sistema monetário internacional assimétrico, ocorreu a brutal centralização do controle das decisões de produção, localização e utilização dos lucros em um núcleo reduzido de grandes empresas e instituições financeiras à escala mundial. A centralização do controle impulsionou e foi impulsionada pela fragmentação espacial da produção.
A convergência entre a centralização do controle pela finança, a fragmentação espacial da produção e a centralização do capital financeiro alterou profundamente a estratégia da grande empresa. Até os anos 1960 do século XX, a Revolução dos Gerentes estava comprometida com a obsessão pelo crescimento da grande empresa no longo prazo. Dotada de uma estrutura burocrática hierarquizada, a grande corporação abrigava com segurança os “blue collars” no chão de fábrica e, nos escritórios, acomodava a classe média “white collar” em bons empregos e saudáveis remunerações.
Naqueles tempos, a cada US$ 12 gastos na compra de máquinas ou construção de novas fábricas, apenas US$ 1 era despendido com os dividendos pagos aos acionistas. Nas décadas seguintes, a proporção começou a se inverter: mais dividendos, mais aquisições de empresas já existentes, menos investimento em nova capacidade e na contratação de trabalhadores.
A associação de interesses entre gestores e acionistas estimulou a compra das ações das próprias empresas com o propósito de valorizá-las e favorecer a distribuição de dividendos. A isso se juntam a febre das fusões e aquisições, o planejamento tributário nos paraísos fiscais, o afogadilho das demonstrações trimestrais de resultados e as aflições das tesourarias de empresas e bancos, açoitadas com o guante da marcação a mercado.
No mesmo movimento, as empresas migraram para regiões onde prevalecem relações atraentes entre produtividade, câmbio e salários. Isso desatou, nos países de origem, a “arbitragem” com os custos salariais e estimulou a flexibilização das relações de trabalho, fenômeno agravado pela desqualificação e eliminação de trabalhadores, impostas pelo avanço das tecnologias da informação e pela automação na indústria e nos serviços.
A evolução do regime do “precariato” constituiu relações trabalhistas que se desenvolvem sob as práticas da flexibilização.
A flexibilização das relações trabalhistas encolheu o crescimento da renda das famílias e subordinou os gastos de consumo ao endividamento. O circuito de formação da renda na economia como um todo começa a falhar. O desemprego e a queda dos rendimentos dos trabalhadores reduzem o gasto das empresas no pagamento de salários e também desestimulam a aquisição de meios de produção de outras empresas.
Assim, a grande empresa contemporânea move a economia capitalista na direção da concentração da riqueza e da renda. Enredada nas armadilhas da acumulação financeira e enfiada no pântano da liquidez curto-prazista, empurra a economia global para a estagnação secular, falhando em sua capacidade de gerar empregos.
O artigo “Neoliberalism: Oversold?” dos economistas do FMI aborda os efeitos de duas políticas inscritas na agenda da globalização: a remoção das restrições ao movimento de capitais (liberalização das contas de capital) e a consolidação fiscal (“austeridade” para reduzir déficits fiscais e o nível da dívida). O estudo afirma que alguns influxos de capitais, como investimento direto estrangeiro, parecem impulsionar o crescimento no longo prazo, mas o impacto de investimentos de portfólio e, especialmente, de influxos de aplicações especulativas de curto prazo não estimula o crescimento e muito menos garante um financiamento estável do balanço de pagamentos.
A ocorrência, desde 1980, de aproximadamente 150 convulsões com influxos de capitais em mais de 50 mercados emergentes credencia a reivindicação do economista de Harvard, Dani Rodrik,de que esses episódios “dificilmente são efeitos ou defeitos secundários nos fluxos de capital internacional, eles são a história principal”.
Segundo o estudo, as políticas de austeridade não só geram substanciais custos ao bem-estar pelos canais da oferta, como deprimem a demanda e o emprego. A noção de que a consolidação do orçamento pode ser expansionista (isto é, aumenta o crescimento e o emprego), por elevar a confiança do setor privado e o investimento, não se confirmou na prática.
*Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Em 2001, foi incluído entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX no Biographical Dictionary of Dissenting Economists.
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