- Valor Econômico
Brasil demorou para superar inflação e crise da dívida
Depois de ter sido o país que mais cresceu entre as décadas de 1950 e 1970, o Brasil perdeu todos os “bondes” da história desde então, tornando-se uma economia de baixo crescimento. Demorou muito para superar a crise da dívida e livrar-se do processo hiperinflacionário, dois problemas que assolaram de forma indistinta nações subdesenvolvidas no início da década de 1980. Na verdade, foi justamente por não aceitar o fim do modelo de substituição de importações que a Ilha de Vera Cruz nunca mais se reconciliou com o crescimento acelerado.
Uma medida da “estagnação” está na comparação com os Estados Unidos. Dados do FMI mostram que em 1980, ano em que crescemos 9,2%, o PIB do Brasil, a preços correntes e pelo Poder de Paridade Compra (PPP, na sigla em inglês), era de US$ 590,9 bilhões. Naquele ano, pelo mesmo critério, o dos EUA era de US$ 2,857 trilhões, portanto, 4,8 vezes o brasileiro. No ano passado, segundo estimativa do FMI, a relação aumentou para 6,22 vezes - respectivamente, PIB (PPP) de US$ 3,479 trilhões e US$ 21,665 trilhões.
Em 1980, a China, ainda um gigante adormecido, mas com despertador programado para acordá-lo logo mais, tinha um PIB, também pelo critério usado pelo FMI, de US$ 304,3 bilhões, quase metade do brasileiro. Bem, 40 anos depois, os chineses já registram PIB, medido pelo PPP, superior ao dos EUA - US$ 30,9 trilhões, quase nove vezes o do Brasil. Uma observação importante: isso não faz da China nação mais rica que os EUA, afinal, seu PIB per capita, estima o FMI, chegou a US$ 20 mil no ano passado, enquanto o dos americanos é de US$ 67,7 mil.
Uma curiosidade da série “quando-é-que-nosso-despertador-vai-tocar”: em 2020, pela primeira vez, o PIB per capita chinês (pelo critério de PPP) superou o brasileiro, estacionado (ou atolado) em US$ 18,7 mil. Em 1980, o dos chineses estava em US$ 302,3 e o nosso, em US$ 4,8 mil.
Motivada por interesses de grupos específicos, principalmente de seus maiores beneficiários, a negação de que o velho modelo de desenvolvimento é obsoleto e insustentável nos fez perder a revolução tecnológica que se deu, primeiro, no Japão, depois nos chamados tigres asiáticos e nos EUA e, mais recentemente, na China. Quase 40 anos depois da falência daquele modelo, nossa economia continua bastante fechada e o Estado brasileiro, falido desde aquela época, continua ajudando e custeando alguns de seus beneficiários.
Para que o leitor não acuse este humilde repórter de omissão, aqui vai o maior exemplo de resistência ao fim do regime de substituição de importações: a indústria automobilística, toda ela multinacional. Além de se beneficiar de barreiras tarifárias e não tarifárias contra a competição internacional, tem direito a incentivos fiscais e subsídio creditício desde que chegou por aqui, há quase 70 anos. Agora mesmo, em meio à pandemia e à evidente escassez de recursos públicos para o enfrentamento da mais grave crise da história, movimenta-se em Brasília para receber algum socorro financeiro. O discurso não muda nem neste pandemônio - se o governo não ajudar, ameaçam os executivos, as montadoras deixarão o mercado brasileiro. Eles pedem dinheiro aqui, sendo que, na maioria dos países onde estão suas matrizes, a liquidez é farta e o juro real (descontada a inflação), negativo.
A Ilha de Vera Cruz não atolou sozinha. Na década de 1980, o Ocidente constatou que a produtividade da economia japonesa era assombrosamente superior à de suas economias e que o despertador da China já tinha tocado. Foi aí que os EUA de Ronald Reagan e a Inglaterra de Margaret Thatcher adotaram uma série de medidas para desregulamentar, isto é, diminuir a presença do Estado na produção de bens e serviços, abrindo espaço para que o setor privado, por definição mais eficiente, assumisse protagonismo.
Enquanto isso, na Terra de Santa Cruz, deu-se o seguinte:
1. Fernando Collor confiscou poupança, outras aplicações financeiras e até depósito à vista, mas, com um voluntarismo típico de um “outsider”, coisa que na verdade ele não era, decretou, no segundo dia de gestão, a 16 de março de 1990, o fechamento de dezenas de estatais (esquisitices como Siderbrás, Portobrás, cuja falta a sociedade jamais sentiu); demitiu 108 mil funcionários sem estabilidade no emprego, dentre os quais, empregados das estatais extintas; colocou milhares de servidores da ativa em disponibilidade (possibilidade prevista pela Constituição em caso de calamidade, justificado pelo fato de a inflação ter alcançado 89% em apenas um mês, fevereiro de 1990); iniciou as privatizações; começou a abrir lentamente a economia e lançou agenda para desregulamentar diversos setores; como, a exemplo de Bolsonaro, Collor chegou a Brasília sem base de apoio no Congresso, seu capital político esvaiu-se após o fracasso do confisco - a “bala de prata” contra a inflação, disse o então presidente - e, justamente quando se rendeu aos partidos, seu governo desmoronou a partir de denúncias feitas pelo próprio irmão, levando-o ao impeachment; a agenda de Collor tinha, sim, cunho liberal, mas, antes de mais nada, atendia à aritmética - o Estado tornou-se insolvente, a dívida pública, inadministrável, e, consequentemente, a inflação era altíssima (e, por essa razão, um pesado imposto sobre os mais pobres), logo, as medidas se destinavam a encaixar o setor público dentro do PIB;
2. Itamar Franco, o vice, assumiu em outubro de 1992 e deu sequência à agenda do antecessor; foi ele quem, fazendo muxoxo, privatizou em 1993 a CSN; esperava-se do presidente, porém, que lançasse logo um plano para debelar a inflação, que àquela altura já estava em quatro dígitos ao ano; teimoso que só ele, nomeou e demitiu três ministros da Fazenda no espaço de apenas sete meses, antes de dar ao cargo a Fernando Henrique Cardoso.
Esta é a terceira coluna dedicada a relatar e discutir o passado recente da história econômica do país. O objetivo é humildemente tentar entender onde estamos, uma vez que, há sete anos, nosso PIB parece preso numa espécie de areia movediça. Na próxima semana, tem mais, mas, antes, um registro para mostrar como o patrimonialismo, isto é, o hábito secular de grupos sociais de ver a coisa pública como algo que lhes pertença, é uma característica mais forte entre nós do que o populismo: 30 anos depois do Plano Collor, congressistas e Judiciário ainda tomam medidas para compensar servidores públicos que, sem estabilidade constitucional, foram demitidos na ocasião.
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