quarta-feira, 13 de maio de 2020

O que a mídia pensa - Editoriais

• Vídeo de Bolsonaro parece uma confissão – Editorial | O Globo

Confirmados os fatos, inquérito precisa prosseguir para o bem das instituições republicanas

O vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, em que, segundo o ex-ministro Sergio Moro, o presidente Bolsonaro confirmou que faria tudo para substituir Maurício Valeixo na diretoria-geral da Polícia Federal, inclusive demitir o ministro da Justiça e Segurança Pública, superior hierárquico de Valeixo, era a peça final de um quebra-cabeça já conhecido no seu conteúdo. O relato público que Moro fez no dia 24, dos motivos de sua saída, sem responder a perguntas da imprensa, já trazia o entendimento de que o presidente queria ter na Polícia Federal, na cúpula e/ou na superintendência do Rio de Janeiro, pessoas com as quais ele pudesse obter informações e relatórios de inteligência, o que não é função da PF, uma polícia que trabalha em inquéritos instaurados pela Justiça. Bolsonaro queria privatizar a PF.

A íntegra do vídeo, pedida pelo ministro do Supremo Celso de Mello, presidente do inquérito sobre as denúncias de Moro, conduzido pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, foi exibida ontem em Brasília para Moro e seus advogados, além de representantes da Advocacia-Geral da União (AGU), do lado do presidente, policiais e procuradores. A divulgação restrita — o vídeo continua sob sigilo — completou uma cena não surpreendente, mas o fez com um bônus. Segundo relatos, o presidente aparece, como afirmara Moro, dizendo que substituiria o então diretor-geral da PF, Maurício Valeixo, a quem Moro resistia a afastar, e que poderia demitir o próprio ministro. O bônus veio na declaração de que ele queria defender sua família. Tudo ficou explícito, a se confirmar o conteúdo do vídeo.

A explicação também não é uma surpresa, mas tem grande impacto político e ético ao sair da boca de Bolsonaro. Soa como confissão. A preocupação do presidente com os filhos é conhecida. E motivos existem. Bolsonaro assumiu a Presidência quando Flávio, eleito senador pelo Rio, passara a ser investigado no escândalo da “rachadinha”, ocorrido na Alerj, em que Flávio e outros deputados foram apanhados num esquema de recolhimento de parte dos salários de assessores, segundo denúncia do Ministério Público. No caso do hoje senador, uma operação a cargo do desaparecido Fabrício Queiroz.

A PF não está neste caso. Mas atua em dois inquéritos que correm sob a presidência do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo, que investigam esquemas de distribuição de fake news e de ameaças contra o Supremo e ministros da Corte; e ainda os esquemas de financiamento e organização das manifestações antidemocráticas, apoiadas pelo presidente e clã. Moraes se tornou um alvo ainda mais prioritário de milícias bolsonaristas por ser quem concedeu liminar pedida pelo PDT contra a posse do delegado Alexandre Ramagem no lugar de Valeixo, com o argumento de “desvio de finalidade”. Indiscutível, pois em nenhum momento Bolsonaro escondeu que teria no chefe de sua segurança durante a campanha alguém com quem pudesse “interagir”. Entenda-se, obter informações privilegiadas sobre adversários políticos, por exemplo. Esta é uma possibilidade a não ser descartada. A história de ditaduras latino-americanas ensina o que pode acontecer quando aparatos de segurança pública passam a servir a caudilhos, autoritários por definição.

Nesses dois inquéritos, os filhos “02”, o vereador Carlos, e “03”, o deputado Eduardo, poderiam estar citados. Além, é provável, de suas conexões com o “gabinete do ódio” que atuaria no Planalto, usina de articulação de ataques virtuais, e nem por isso menos criminosos. O presidente, já no final do dia de ontem, em um arremedo de entrevista dada do alto da rampa do Planalto, procurou afastar a família de qualquer investigação da PF.

Só o prosseguimento deste inquérito — se o procurador-geral, Augusto Aras, não arquivá-lo intempestivamente — poderá esclarecer. Independentemente da família presidencial, interessa averiguar esta tentativa de interferência política e pessoal em um aparato de segurança do Estado, para que as devidas punições impeçam que isso se repita e faça o Brasil retroceder no processo civilizatório.

• As cartas do Centrão – Editorial | O Estado de S. Paulo

Bolsonaro negocia com partidos que, sem nenhum compromisso com o interesse público, fazem da política balcão de negócios

Não bastasse a pandemia do novo coronavírus, o presidente Jair Bolsonaro criou mais um elemento a gerar preocupação sobre o futuro do governo e do País. Na tentativa de se proteger de eventual abertura de processo de impeachment, bem como de barrar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar suas irresponsabilidades, o presidente da República passou a negociar pessoalmente com o chamado Centrão – o bloco de partidos que, sem nenhum compromisso com o interesse público, faz da política um balcão de negócios.

Conforme revelou reportagem do Estado, o objetivo do Centrão é a liberação de recursos públicos, com o abandono por parte do governo federal de seu compromisso com o equilíbrio das contas públicas. Sinônimo de fisiologismo e habituado a não ter especiais pudores em suas negociações, o bloco de legendas tem claro o que deseja do presidente Jair Bolsonaro.

Ciente de que o Palácio do Planalto tem o controle das artilharias virtuais contra seus adversários políticos, o Centrão exige, em primeiro lugar, um cessar-fogo das redes bolsonaristas. Ainda que sua trajetória parlamentar seja umbilicalmente unida aos partidos do Centrão, desde a campanha presidencial de 2018, Jair Bolsonaro valeu-se da rejeição popular à compra e venda de apoio parlamentar, e prometeu instaurar uma forma de fazer política. Agora, o Centrão está cansado do tratamento abusivo que recebeu nos últimos dois anos e prescreve, se o presidente de fato almeja apoio no Congresso, a interrupção dos ataques, numa política de mais moderação e diálogo. O Centrão é especialista neste diálogo que, acima de tudo, é um intenso e profícuo comércio.

O Centrão pode ser criticado por inúmeros defeitos, mas não o da ingenuidade. Sabe que, para a concretização dessa troca de apoio e favores, é preciso que as partes honrem a palavra – e, nestes 17 meses de governo, o presidente da República não foi pródigo em exemplos nesse sentido. Na realidade, Jair Bolsonaro fez-se insistentemente refém de quem grita mais alto, mesmo que a voz altiva fosse apenas a de seus devaneios. O Centrão não é afeito a esse tipo de inconstância. Para entregar o tão desejado apoio político no Congresso, quer ver antes o presidente Bolsonaro cumprindo sua palavra.

Mas tudo isso são meras condições prévias diante do real objeto de desejo do Centrão. Em sua aproximação de Bolsonaro, o bloco vislumbrou um jeito de assegurar sua sobrevivência eleitoral. A solução não tem nada de inovadora, mas simples cópia do que, anos antes, o presidente Lula fez de forma tão sistemática. O Centrão quer que o governo federal abra as torneiras do Tesouro, irrigando com fartos recursos públicos o cenário eleitoral, especialmente no Nordeste.

Parlamentares do bloco já falam abertamente, por exemplo, em tornar permanente o auxílio emergencial de R$ 600 a informais e de ampliar o valor do benefício pago a empregados com carteira assinada afetados por redução de jornada e salário ou pela suspensão do contrato de trabalho. A jogada é clara: que o “corona voucher” possa ser o que foi o Bolsa Família, em termos eleitorais, durante os anos em que o PT esteve no governo federal.

Além de não ser ingênuo, o Centrão sabe que não há recursos públicos suficientes para a empreitada. Mas ele não se melindra com a origem do dinheiro e tem uma sugestão para contornar essa dificuldade – a emissão de moeda. Eis o cenário ideal para as aspirações do Centrão: um presidente da República que faz de tudo para se enfraquecer diariamente e ainda se mostra disposto a imprimir dinheiro. É modalidade de saque sem limite.

A concretização do acordo de Jair Bolsonaro com o Centrão representa o abandono da política prometida na campanha, escanteando a um só tempo o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto. Tal como Lula e Dilma fizeram, o tal pacto levaria o País à garra por meio da irresponsabilidade fiscal, tudo em troca de apoio político-eleitoral. De forma trágica e dolorosa, o País vê como bolsonarismo e lulopetismo são semelhantes, se não nos meios empregados, certamente quanto aos fins que almejam.

É constrangedor o desrespeito com que Jair Bolsonaro trata os brasileiros – e tudo isso, no meio de uma pandemia.

• Bolsonaro, o incurável – Editorial | O Estado de S. Paulo

Estratégia é óbvia: fazer crer que a pandemia não passa de ‘histeria’ para prejudicar seu governo

Mais cedo ou mais tarde, a corrida mundial dos cientistas para encontrar uma vacina contra a covid-19 será bem-sucedida. Já para o presidente Jair Bolsonaro, não há xarope que dê jeito.

Na segunda-feira (11/5), o presidente decretou a inclusão de academias de ginástica, salões de beleza e barbearias entre os serviços considerados essenciais, isto é, que podem funcionar mesmo em meio à quarentena imposta para enfrentar a pandemia. Trata-se de óbvio abuso da noção de serviço essencial; afinal, pode-se perfeitamente viver sem levantar pesos e sem cortar os cabelos, mas não se pode viver sem energia elétrica, transporte público e hospitais. Para o presidente, contudo, “academia é vida”. Em seu idioma exótico, Bolsonaro comentou que “as pessoas vão aumentando o colesterol, têm problema de estresse” e, com a academia, terão “uma vida mais saudável”. Já sobre os salões de beleza, Bolsonaro disse que “fazer cabelo e unhas é questão de higiene”.

Discutir se salões de beleza são serviço essencial em meio a uma pandemia – que, ainda longe do pico, já matou mais de 11 mil brasileiros – é perder o foco do problema central: Bolsonaro investe na desordem, da qual pretende extrair capital eleitoral. Em meio às imensas incertezas geradas pela doença, que desafiam até mesmo os melhores administradores públicos de todo o mundo, Bolsonaro oferece o elixir das soluções fáceis.

A estratégia é óbvia: preocupado exclusivamente com sua reeleição e com seu projeto autoritário, Bolsonaro quer fazer crer que a pandemia não passa de “histeria” para prejudicar seu governo e que tudo seria diferente se os “inimigos do Brasil”, como ele chama aqueles que impõem limites a seu poder, parassem de sabotá-lo.

A lista de bodes expiatórios do bolsonarismo é extensa. Inclui os governadores e prefeitos que, cumprindo seu dever, impuseram quarentena; inclui o Supremo Tribunal Federal que, em respeito ao princípio federativo, confirmou a autonomia de Estados e municípios para gerenciar a crise como acharem melhor; e inclui até mesmo o ministro da Saúde – o anterior foi demitido porque contrariou Bolsonaro ao insistir no isolamento social como melhor forma de combater a pandemia, e o atual está sendo hostilizado pelos bolsonaristas porque manifestou pesar pelos mortos e colocou em dúvida o tratamento com cloroquina, a panaceia do presidente.

Ficará para a história a expressão de espanto do ministro da Saúde, Nelson Teich, ao tomar conhecimento, por jornalistas, do decreto presidencial que amplia a lista de serviços essenciais. “Isso aí… Saiu hoje isso?”, perguntou, incrédulo, o ministro, que só está no cargo, pasme o leitor, porque disse ter “alinhamento completo” com Bolsonaro. Desprezado publicamente pelo presidente, o ministro está sendo igualmente ignorado pelos gestores de Saúde estaduais e municipais, que já informaram que não vão seguir as novas diretrizes do Ministério destinadas a obter um padrão nacional para o distanciamento social – primeiro passo para a flexibilização exigida por Bolsonaro. O Brasil deve ser hoje o único país do mundo em que o Ministério da Saúde tem papel periférico, quase decorativo, em meio a uma pandemia mortal.

Alguns governadores também avisaram que não vão acatar o decreto de Bolsonaro sobre serviços essenciais. “Afrontar o Estado Democrático de Direito é o pior caminho, aflora o indesejável autoritarismo no Brasil”, reagiu Bolsonaro, atribuindo aos governadores uma transgressão que é ele quem sistematicamente comete.

Felizmente, cada vez mais brasileiros diagnosticam Bolsonaro como incurável. A mais recente pesquisa da MDA para a Confederação Nacional dos Transportes indica que, em quatro meses, a avaliação negativa do governo subiu de 31% para 43,4%, enquanto a avaliação positiva do desempenho pessoal de Bolsonaro caiu de 47,8% para 39,2%. E nem chegamos à metade do mandato – donde se conclui que, em meio à disputa feroz entre Bolsonaro e o coronavírus para ver quem é pior para o Brasil, resta torcer para que alguém retome a ideia do falecido Brás Cubas e invente um emplastro “destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade”.

• A necessária voz da sociedade – Editorial | O Estado de S. Paulo

Não basta conhecer os ataques à Constituição e às instituições, é preciso tocar o sino de alerta

Delineia-se um quadro grave de ameaça e afronta à Constituição e às instituições. Em intervalo de menos de um mês, o presidente Bolsonaro participou de manifestações antidemocráticas, que pediam intervenção militar e fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (STF). Além disso, o ex-ministro da Justiça Sérgio Moro acusou Jair Bolsonaro de tentar interferir politicamente na Polícia Federal (PF), com um plano que incluía a exoneração do então diretor-geral da PF Maurício Valeixo, tal como efetivamente ocorreu.

Tanto o Poder Judiciário como o Legislativo têm atribuições constitucionais para fazer valer, no sistema de pesos e contrapesos inspirado em Montesquieu, os limites do Executivo. Mas é também papel da sociedade defender o Estado Democrático de Direito, especialmente em situações graves como a que se vê agora. Referimo-nos aqui a toda a população – afinal, todos são cidadãos – e, de forma especial, à chamada sociedade organizada e às organizações da sociedade, com suas entidades civis, associações de classe e movimentos.

Numa República, todos são iguais perante a lei, e não cabe atribuir prerrogativas diferenciadas a alguns. Aqui se faz referência não a privilégios, mas à responsabilidade. Quem pode fazer mais – seja por sua condição social, sua situação econômica, seu prestígio profissional, sua capacidade de mobilização ou outra característica pessoal – tem maior responsabilidade. Diante da atual situação política e institucional, as elites, no sentido sociológico do termo, têm – repetimos – papel decisivo na defesa da Constituição e da legalidade.

Em primeiro lugar, é preciso estar alerta aos ataques contra o Estado Democrático de Direito. Para tanto, é fundamental estar bem informado, para discernir os diferentes fenômenos. Por exemplo, num regime de liberdade, é plenamente legítima a crítica contra uma decisão da Corte constitucional. Há, no entanto, manifestações que, mais do que discordarem da decisão, afrontam a independência e a própria existência do tribunal. É possível fazer críticas, mas não é tolerável ameaçar ou intimidar integrantes do STF.

Tal vigilância, baseada em informação precisa e confiável, é especialmente importante em tempos de massivas campanhas de desinformação nos meios digitais. Além de agredir as instituições democráticas, a desinformação põe em risco a própria capacidade da sociedade de se inteirar do que está ocorrendo, na velha tática utilizada pelos regimes autoritários.

Sem um conhecimento preciso dos fatos – sem que a sociedade organizada e as organizações da sociedade estejam inteiradas dos acontecimentos –, o País fica à deriva, sujeito às manipulações e manobras de demagogos e liberticidas. Daí a importância da liberdade de expressão e de imprensa, bem como do dever cívico de não se alhear da realidade do País. Se isso é uma necessidade em tempos normais, o que dizer quando o próprio presidente da República intervém em atos antidemocráticos ou minimiza, e até estimula, agressões contra a imprensa? Toda vigilância é pouca.

Mas não basta conhecer as ameaças e os ataques. É preciso tocar o sino de alerta, despertando os corações e as mentes de seus pares, colegas, familiares – de todos. Não cabe apatia, por exemplo, diante da gravidade das denúncias feitas pelo ex-ministro Sérgio Moro. Foi revelado que o presidente Jair Bolsonaro deseja violar a isenção do poder público para investigar atos criminosos, ponto nevrálgico do Estado de Direito. Diante disso, não basta o Supremo abrir um inquérito. É dever da sociedade fazer ouvir sua voz, manifestando que não aceita esse tipo de interferência e exigindo o retorno do mandato presidencial ao seu leito normal.

Com frequência, os golpistas que pedem intervenção militar e fechamento do Congresso dizem, sem o menor escrúpulo, que o povo, enojado das instituições, estaria ao lado deles. Para desfazer tal falácia, nada melhor que a voz da sociedade defendendo, de forma inequívoca, o Estado Democrático de Direito. Se há bravatas e manobras ilegítimas e liberticidas, a melhor resposta é a voz responsável da sociedade. Contra esse esteio social, os fanáticos nada podem.

• A noção do essencial – Editorial | Folha de S. Paulo

Com decreto descabido para a abertura de salões, Bolsonaro aposta no desgoverno

Poucas cenas ilustram tão bem o desgoverno da administração Jair Bolsonaro na crise do coronavírus quanto a reação do ministro da Saúde, Nelson Teich, ao ser informado de que seu chefe acabara de anunciar a inclusão de academias esportivas, barbearias e salões de beleza no rol de serviços essenciais a serem mantidos na pandemia.

Surpreendido pela notícia enquanto concedia uma entrevista coletiva de imprensa na segunda-feira (11), um balbuciante Teich ainda tentou explicar de forma constrangedora aquilo que seria inconcebível em outros tempos —a decisão amalucada fora tomada sem consulta a sua pasta.

Mais que impor uma humilhação ao subordinado, o decreto presidencial deixa claro que se mantém firme a infame estratégia bolsonarista de tentar sabotar esforços estaduais e municipais para controlar a disseminação do Sars-CoV-2.

Em decisão recente, o Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento de que prefeitos e governadores gozam de autonomia para determinar tanto medidas de quarentena como fixar os serviços aptos a seguirem funcionando.

Em outras palavras, o presidente sabe que não possui o poder para impor sua vontade nessa questão, e age apenas como o provocador cínico e incendiário que sempre foi. Fomenta a confusão, estimula a desobediência e excita as hostes que bradam em carreatas pela reabertura do comércio.

Depois de diversos estados anunciarem que irão ignorar o decreto, Bolsonaro voltou à carga. Sugeriu que a reação dos governadores afronta o Estado democrático de Direito e “aflora o indesejável autoritarismo no Brasil” —tratando com a costumeira leviandade de valores, esses sim, essenciais.

Medidas e declarações desencontradas —e, sobretudo, o descaso— do Executivo federal se enquadram naquilo que o diretor-executivo da Organização Mundial da Saúde classificou de “séria cegueira” de certos governos, não nominados, diante da Covid-19.

Não parece ser coincidência que, entre as dez nações com maior número de mortes, apenas o Brasil de Jair Bolsonaro e os EUA de Donald Trump não tenham adotado políticas de alcance nacional.

Impossível, assim, dissociar a omissão governamental do curso preocupante que a epidemia vem tomando no país. Como constatou reportagem desta Folha, na semana passada o aumento diário do número de mortes aqui se dava em taxa superior à de países europeus em estágio similar da crise.

Nada, no entanto, que faça mudar as prioridades do presidente.

• Justa causa – Editorial | Folha de S. Paulo

Crise pode exigir reforço e melhora dos programas de amparo ao emprego e à renda

Com a devastação causada pelo coronavírus na economia, multiplicam-se sinais de que os programas implementados pelo governo serão insuficientes para impedir uma profunda deterioração das condições no mercado de trabalho.

Estatísticas apontam aumento de 31% nos pedidos de seguro-desemprego, em comparação com igual período do ano passado. Ganharam direito ao benefício 1,5 milhão de trabalhadores demitidos em março e abril.

O incremento seria ainda maior se não fossem medidas tomadas para proteger o setor formal, que incentivam a redução da jornada e a suspensão temporária dos contratos como alternativas para aliviar a folha das empresas e preservar postos de trabalho.

Ao mesmo tempo, representantes do governo e congressistas começam a cogitar a prorrogação do auxílio de R$ 600 oferecido por três meses a trabalhadores informais e de baixa renda prejudicados pela paralisia da atividade.

Projeções da Instituição Fiscal Independente, órgão do Senado, sugerem que o número de beneficiados pelo programa poderá aumentar de 50 milhões para 112 milhões com o aprofundamento da crise.

Mesmo que o cenário mais pessimista não se confirme, e ainda que não se alterem as regras, é provável que os recursos reservados pelo Tesouro Nacional para os pagamentos se esgotem rapidamente.

Estudo de um grupo de pesquisadores ligados à USP, noticiado pela Folha, iluminou outro aspecto preocupante do problema —o grande número de brasileiros que, embora ameaçados pela crise, não contam com proteção assegurada.

O trabalho calcula que 26 milhões de trabalhadores do setor formal que correm risco de perder o emprego têm renda acima do limite fixado para o auxílio emergencial. Eles também não terão acesso ao seguro-desemprego, por terem pouco tempo de carteira assinada.

Outros 6 milhões não poderão contar com o auxílio emergencial por causa dos limites previsos pela legislação, que restringe a concessão do benefício a no máximo duas pessoas por domicílio.

A correção de distorções pode aprimorar a rede de amparo improvisada para atenuar os efeitos da pandemia, desde que se tomem os cuidados necessários para assegurar que o dinheiro chegue realmente aos mais vulneráveis.

Também faria bem o governo federal se buscasse a cooperação dos governos locais para cadastrar os mais necessitados, evitando assim as filas e transtornos inaceitáveis provocados pela centralização das ações na Caixa Econômica Federal.

• BC avalia os limites para a redução da taxa de juros – Editorial | Valor Econômico

Desvalorizações cambiais ainda mais fortes e ameaça de insolvência do Estado não são riscos desprezíveis

A reação à pandemia levou a um “choque desinflacionário” que jogará a inflação abaixo do piso de 2,5% da meta de inflação para 2020. O Banco Central cortou em 0,75 ponto percentual a Selic, para 3%, e prometeu outro corte no máximo da mesma magnitude na próxima reunião. Isto é tudo o que o BC pode fazer ou é possível ir mais longe? Pela ata do Comitê de Política Monetária, a questão, em termos teóricos e práticos, é controversa, e o BC preferiu então agir como quem tem pouca certeza sobre passos seguintes: reconheceu a “importância do gradualismo” na condução da política monetária.

O BC continuou a seguir sua estratégia correta de evitar que o piso da meta seja furado, algo raro. Nível de preços inferior ao intervalo menor, em um país de passado inflacionário, foi considerado informalmente um triunfo. Exageros do aperto monetário foram vistos com condescendência. Não mais, porque o perigo é outro.

O choque deflacionário é intenso e reflete um tombo assustador das atividades econômicas no país. As estimativas para o tamanho da recessão estão piorando e deixando o -5,3% do Fundo Monetário Internacional parecer otimista. Há projeções de -7% a -9% para o ano. E mesmo a melhor dessas expectativas seria suficiente para confirmar a década atual como a de menor crescimento desde a fundação da República.

A intensidade da recessão fez o BC prescrever “estímulo monetário extraordinariamente elevado” e vislumbrar uma retomada sem muito vigor. O segundo trimestre será um desastre, a primeira metade do ano foi perdida e a recuperação será “gradual” a partir do terceiro trimestre. E esse ritmo gradual tem a modulação dada pelas reaparições do coronavírus: será caracterizado por “idas e vindas”.

O corte de 0,75 ponto foi visto com surpresa por muitos analistas que estavam preocupados com a desvalorização ininterrupta do real. Outros, que costumavam apontar a meta de inflação como guia único de conduta quando se cobrava do BC uma atitude mais enérgica para estimular uma economia anêmica, passaram a apontar o câmbio como obstáculo a novas quedas dos juros. O BC seguiu fiel ao regime de metas - e também recebe críticas por estar sendo mais conservador, e não menos.

A taxa de juros é agora negativa (-0,2%) se considerada a inflação projetada um ano à frente. Há limites para reduzir a Selic abaixo dos 2,25% sinalizados pela ata do Copom? Dois integrantes do colegiado defenderam corte de 1,5 ponto percentual de uma só vez, e a manutenção da taxa pelos próximos meses, pois viram o risco de descumprimento da meta em 2021, a saber, a inflação continuar abaixo do piso, de 2%.

A maioria do BC, porém, acredita que há um limite efetivo mínimo para a Selic, mas que ele é maior que o dos países desenvolvidos, o “zero lower bound”, por causa das incertezas fiscais e do prêmio de risco que lhe é conexo. A importância do limite cresce com a aprovação da autorização para que o BC compre títulos públicos e privados.

O Brasil nunca teve o problema de um processo deflacionário sério, nunca pensou na solução em seus riscos. O mais óbvio deles é o de um BC que não é independente financiar o Tesouro, logo os interesses políticos do presidente de turno. Esse risco é passageiro: a permissão só é válida até o fim da pandemia. Dentro dos limites da boa política monetária e da transparência, faz sentido ter o instrumento à mão e usá-lo com prudência, se necessário.

Para isso, será preciso que a inflação fique por um bom tempo abaixo dos 2% anualizados, o que é improvável - isso só ocorreu nos últimos 40 anos em dois trimestres após a implantação do Plano Real. Mas o instrumento tem vantagens: abre espaço na carteira dos bancos para mais crédito a empresas e para emissões privadas, injetando recursos diretamente em um momento em que as instituições financeiras jogam na retranca. O BC poderá também ensaiar a suavização da curva de juros de longo prazo, que se desgarrou à medida que a Selic foi reduzida.

Juro baixo, por seu lado, reduz o custo de financiamento da rede de proteção lançada e de todos os gastos necessários à saúde pública. Diminui o custo de oportunidade do capital e viabiliza projetos de investimento que não saltaram a barreira dos altos juros.

Desvalorizações cambiais ainda mais fortes e ameaça de insolvência do Estado não são riscos desprezíveis, menos ainda diante de uma crise política séria que se desenrola, o que recomenda “gradualismo” a um BC que parece saudavelmente disposto a testar limites.

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