- Valor Econômico
Produção nacional de ventiladores pode opor alas do governo
O ano de 2020 será marcado, entre outros tristes aspectos decorrentes da pandemia, como aquele que incluiu máscaras, equipamentos de segurança individual e respiradores artificiais entre os fatores essenciais à segurança nacional de qualquer país. No Brasil, contudo, quase tudo parece ocorrer na hora mais imprópria possível. Ou então nós mesmos nos esforçamos para complicar o que já é complexo e desafiador.
Essa discussão sobre a importância estratégica da indústria de materiais e equipamentos médico-hospitalares ganhou relevância no cenário global, em razão da concentração da produção na China e da concorrência imposta por diversos países - muitas vezes desleal - na corrida para a formação de estoques. É uma nova dinâmica que já afetou as relações internacionais.
No âmbito local, o tema demanda atenção urgente do governo e também do empresariado: os números de infectados e mortos não param de crescer. Está evidente a fragilidade do Brasil.
Dados do IBGE apontam a falta de equipamentos de ventilação mecânica principalmente nos Estados das regiões Norte e Nordeste, como Amapá, Piauí, Maranhão, Alagoas, Acre, Pará, Roraima, Tocantins, Amazonas, Bahia, Paraíba, Rio Grande do Norte, Sergipe e Ceará. A pandemia de covid-19 já chegou a patamares alarmantes em algumas dessas unidades da federação. Tampouco é diminuto o número de municípios que não contam com respirador algum e, portanto, dependem de equipamentos de prefeituras vizinhas ou dos grandes centros urbanos. Não há previsão de que este cenário melhore a curtíssimo prazo.
É esta a realidade que o governo tenta contornar ao aumentar a presença de militares no Ministério da Saúde. O movimento é visto com ressalvas por outros segmentos do Executivo e pelo Congresso, mas pode ser considerado um sinal de que pelo menos em alguns gabinetes do Palácio do Planalto esse tema é visto com a gravidade necessária.
Uma das missões dadas a esses militares é justamente garantir a logística necessária à distribuição dos materiais e equipamentos adquiridos pelo governo federal no país e no exterior. Trata-se, assim, de montar uma rede de contatos e ter capacidade de mobilização. Não há confiança no mercado internacional e o Brasil enfrenta uma precarização dos seus canais diplomáticos com a China e outros parceiros estratégicos.
Recentemente, por exemplo, o Ministério da Saúde precisou abortar a compra de 15 mil respiradores da China, após constatar que o fornecedor não teria condições de entregar os equipamentos. Cancelou o negócio antes de desembolsar qualquer centavo e evitou um iminente calote. Um problema saiu do caminho, mas a carência do país permanece e é crescente.
A solução encontrada foi dar início à prospecção de fornecedores locais para que o governo possa comprar praticamente a mesma quantidade de respiradores dentro do Brasil. Algumas empresas foram encontradas e o governo precisou desembolsar recursos e logo assinar os contratos, para que essas companhias tenham capacidade de adaptar suas unidades de produção.
A entrega das encomendas foi dividida entre abril, maio, junho e julho. Até agora, o governo federal distribuiu 557 respiradores, os quais demandaram investimentos de R$ 31,9 milhões, para Manaus, Belém, Macapá, Recife, Fortaleza, João Pessoa e Rio de Janeiro.
Outras cinco empresas nacionais estão em processo de homologação e podem entrar nesse esforço de guerra. Elas já começaram a receber visitas técnicas de representantes do governo federal, nas quais terão as suas capacidades financeira e produtiva analisadas.
Durante a crise, a ideia do Ministério da Saúde é apanhar os produtos diretamente nas linhas de produção de cada empresa quando os lotes estiverem prontos. Não há tempo a perder na distribuição: a entrega deve ocorrer diretamente aos hospitais mais necessitados, de acordo com uma lista de prioridades definida pela pasta.
O plano tem semelhanças em seu espectro internacional. Para assegurar-se do sucesso das aquisições no exterior, o governo brasileiro deve enviar equipes à China, Inglaterra, Espanha e Estados Unidos. Elas estarão encarregadas de receber os produtos comprados, verificá-los e garantir que os embarques ocorram como o planejado. A ação de atravessadores ainda preocupa o Brasil.
Vencido o desafio urgente de ampliar a distribuição de ventiladores artificiais pelo país, a prioridade de autoridades e industriais deveria ser a reflexão sobre o futuro. Não se sabe quanto tempo a pandemia de covid-19 durará nem se outras moléstias desse tipo atingirão em breve o país.
Esse será um novo desafio também para os órgãos de controle. A oposição já está pedindo ao Tribunal de Contas da União que se esclareça por que foi cancelada a compra dos ventiladores artificiais chineses. A mesma oposição que se queixa de ter sido impedida, em 2015, após pressões de adversários políticos junto ao TCU, de levar adiante um programa de produção nacional de respiradores. Um projeto de nação precisará transpor os obstáculos criados pela insistente disputa política.
Neste momento, diversos órgãos de Estado sinalizam a intenção de constituir um colchão de proteção nesta área, a despeito do comportamento permissivo do presidente da República em relação ao novo coronavírus. Bolsonaro não demonstra apreço pessoal à máscara ou aos demais instrumentos de combate à pandemia.
Este assunto também pode enfrentar resistências da ala mais liberal do governo. Afinal, o presidente foi eleito com um discurso crítico aos programas de incentivo à produção nacional.
A expressão “política industrial” é considerada maldita em diversos corredores do Ministério da Economia. A atual conjuntura, porém, pode fortalecer os grupos que advogam a necessidade de se ter uma capacidade de reação mais ágil em casos de crise.
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