- O Estado de S. Paulo
Movimento criado por Plínio Salgado ainda conta com seguidores nos dias de hoje
Na história brasileira há momentos nos quais não apenas o anedótico se superpõe à realidade, mas também embaralha a memória: lembramos mais facilmente do que é divertido ou pitoresco e recalcamos o drama ou a tragédia. Nada mais humano. E sublime. O problema é que ao iluminar apenas o anedótico, a memória obscurece a história, deixando na sombra e, não raro, distorcendo ou omitindo acontecimentos. Isto ocorreu, em grande parte, com a história do integralismo brasileiro.
Foi a partir da famosa batalha da Praça da Sé, em 7 de outubro de 1934, que deixou um saldo de sete mortos e dezenas de feridos – e na qual se enfrentaram antifascistas e integralistas, que estes últimos receberam o apelido de “galinhas verdes”. Não se sabe se foi Aparício Torelly (o Barão de Itararé) que o inventou, mas o apelido pegou e chegou até a ser dicionarizado. Tal associação marcou de tal maneira o movimento que, exceto por alguns estudos acadêmicos, o tema transformou-se numa das muitas lacunas da história brasileira.
Para cobrir tais lacunas, dois lançamentos recentes revisitam o integralismo: O Fascismo em Camisas Verdes, de Leandro Pereira Gonçalves e Odilon Caldeira Neto (Editora da FGV) e Fascismo à Brasileira, de Pedro Doria (Editora Planeta). Apoiados em sólidas pesquisas, os dois livros esmiúçam aquele que foi um dos maiores movimentos populares de direita da história brasileira. O primeiro livro estica a cronologia, indo além da morte de Plínio Salgado em 1975, percorrendo sua carreira como deputado em vários partidos e estendendo-se até os movimentos neointegralistas dos anos recentes, com os sites na internet. Já o livro de Pedro Doria, limita-se ao exame detalhadíssimo do período áureo da Ação Integralista Brasileira, desde as suas origens, no final da década de 1920, à fracassada tentativa de tomada do poder, em 1938 – incluindo um precioso bônus de exercício comparativo ao leitor: um capítulo inteiro abordando a história do fascismo italiano.
Porque tudo começa com o encontro entre Plínio Salgado e Mussolini, em Roma, em junho de 1930 – que se transformou, afinal, numa linha divisória na trajetória ideológica do brasileiro: ali nasceu a inspiração para o intelectual modernista (é bom não esquecer) o qual, da mesma maneira que outros escritores de sua geração, ansiava por uma transformação do país, rejeitando tanto o liberalismo carcomido da “República Velha”(termo inventado naquela época) quanto o “perigo vermelho”. O Manifesto Nhengaçu Verde Amarelo, assinado em 1929 por Salgado, Cassiano Ricardo e outros, já inventava até uma tradição para o nacionalismo integralista, na qual os judiados povos indígenas, através (sic) da “força centrípeta do elemento tupi” dariam o tom para o mito da mestiçagem integradora.
Daí que o movimento teve uma origem francamente intelectual: “É preciso que nós, intelectuais, tomemos conta do Brasil. Definitivamente. Temos de romper com a tradição medíocre da política. Estamos fartos de vivermos, nós, intelectuais, à sombra dos poderosos. Queremos mandar”, escreveu Salgado. O integralismo brasileiro – e nisto ele foi herdeiro do pedigree fascista – como doutrina era tosco e – como bem demonstram os dois livros –, além da obsessão conspiratória, Salgado produziu um bolo ideológico com ingredientes que contemplavam as mais variadas correntes do espectro político – e acabou atraindo toda uma geração que, afinal, mostrava-se ansiosa por encontrar algum caminho entre o comunismo e o capitalismo liberal.
Para tanto, a ideologia da AIB mal se equilibrou entre três correntes: com Salgado, um cristianismo social; com o jovem Miguel Reale, uma linha mais social e política e, finalmente, com Gustavo Barroso, uma linha francamente antissemita. Como se sabe, o tonitruante Barroso, da Academia Brasileira de Letras, traduziu em 1936 para o português Os Protocolos dos Sábios de Sião, um falso panfleto que constitui um dos capítulos mais vergonhosos de outra história – a história das mentiras fascistas. Grande parte do exército abraçou o integralismo: foi o então capitão Olímpio Mourão Filho - número dois na organização das milícias integralistas – quem perpetrou a outra grande mentira fascista: de um pastiche de um artigo sobre o Béla Kohn, escreveu o Plano Cohen, um plano mirabolante de instalação no Brasil de um regime judaico-comunista. Salgado nunca aceitou nem o antissemitismo, nem algumas ideias de Reale e nem concordou com o Plano Cohen mas, como chefe, surfou entre as duas correntes para incrementar a doutrina segundo as conveniências do momento.
Mas antes de completar 5 anos – escreve Doria – “a AIB havia se tornado uma máquina midiática”, dominando jornais e, sobretudo, o rádio. Os símbolos também importavam, eram muito mais fortes que a doutrina e toda uma estética própria foi criada: nem fascio nem uma suástica, mas a letra grega sigma – um símbolo matemático que metaforizava o projeto de um Estado único e integral na soma dos números infinitamente pequenos. Salgado sempre foi categórico quanto à simbologia e aos rituais, pois estes seriam os elementos motivadores da população brasileira, vista por ele – de forma nada generosa – como ignorante e sem condição de compreender a doutrina. Protocolos e Rituais – um documento publicado no Monitor Integralista, sintetizava e definia desde os batizados integralistas para as crianças (os “plinianos”), cerimônias de casamentos e até uniformes, louças, adereços e souvenirs diversos – além da valorização de marchas, hinos e outros rituais de saudação e comportamento.
O Anauê! – a obrigatória saudação integralista (do tupi, você é meu(parente) amigo!) significava respeito à hierarquia mas, diferentemente do tom intrinsecamente marcial do fascismo, já trazia uma conotação da ética emotiva característica da sociabilidade brasileira. (Não é à toa que aqui é o único país onde Santa Tereza de Lisieux virou “Santa Terezinha”). Os camisas verdes valorizavam hinos e canções patrióticas e entoavam o hino integralista juntamente com o Hino Nacional brasileiro – este último ligeiramente adaptado, já que a segunda parte era omitida, pois achavam o contemplativo “deitado eternamente em berço esplêndido” incompatível com a ação mobilizadora e militarizada. Os dois livros exploram em minúcias toda a história do Integralismo brasileiro, lançando novas luzes sobre uma história que sempre se reduziu ao anedótico. Doria é mais narrativo e constrói seu relato alternando brilhantemente entre close-ups e long shots, como num roteiro cinematográfico.
Talvez o episódio mais definidor do integralismo no turvo oxigênio mental daquela época, foi quando antes de falar a uma plateia em 1933, Salgado percebeu que Barroso substituiu todo o discurso escrito por folhas em branco, e teve que falar de improviso. Daí nasceu o orador vibrante, que falava com o coração, sentindo a vibração do público e o circuito elétrico que emanava do coletivo. Mas isto aconteceria com vários líderes políticos brasileiros, incluindo, na mesma época, Getúlio Vargas.
Como em todo ritual fascista, não era o orador que mobilizava multidões, eram as projeções delas sobre o líder que galvanizavam o evento público, transformando a cena política em ritualizações míticas do entusiasmo coletivo. “O homem vestia, predisposto por velhas tendências, o mito”. É certo que a frase é de Raymundo Faoro sobre Getúlio. Mas Menotti Del Picchia disse quase o mesmo do amigo Plínio, quando este discursava: “São as forças criadas pelo temperamento e depois por uma obsessão. Ele não sai do mito.” Mas este carisma que eletrizava as massas, cabia a muitos líderes políticos da época. Uma época na qual a política, que vinha do iluminismo, se rendia a um novo personagem, que não fazia parte dos seus projetos racionais: as massas, com todos os seus símbolos e rituais coletivos e cujos traços mais salientes seriam, na sempre perturbadora definição de Elias Canetti: “A densidade, o crescimento e a abertura para o infinito, a coesão surpreendente e notável, o ritmo comum e a descarga súbita”. Quaisquer semelhanças com os confrontos políticos na atualidade, com o ódio visceral e virtual que emana das redes sociais, ficam por conta dos leitores.
*Elias Thomé Saliba é historiador, professor titular da USP e autor, entre outros livros, de ‘Raízes do riso’ (Companhia das Letras)
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