- Folha de S. Paulo/ Ilustríssima
Aos 90 anos, José Arthur Giannotti, professor emérito de filosofia da USP, lança livro acerca das divergências entre dois dos maiores filósofos do século 20, Heidegger e Wittgenstein. Para o reitor da UFBA, a obra, que retoma temática da crise da razão, é repleta de elegância, argúcia e desafios.
O mais recente livro de José Arthur Giannotti, “Heidegger/Wittgenstein”, é o trabalho fascinante de um pensador que nos desafia com a tese da crise da razão. Seria insensato cifrar em poucas linhas o sentido de suas quase 500 páginas, cada qual merecedora de mergulho demorado, de elogios ou contrapontos.
Mais prudente é destacar aspectos da obra, o modo como arma um projeto de reflexão. Não trata de nos oferecer um comentário sobre Heidegger e Wittgenstein —simplesmente os dois maiores filósofos do século passado.
A textura do livro é, antes, a de um exercício singular de filosofia e serve como palco para um pensamento in fieri, que, entre outras coisas, com maldisfarçada imodéstia, procura “estudar o velório da lógica formal como reguladora das questões lógico-metafísicas”.
Um claro e belo trabalho de professor, pensador e literato. Comecemos pelo literato, pois Giannotti escreve muito bem. Já debocharam de seu estilo intrincado, de sua escrita difícil, que preferiria dizer o simples de maneira tortuosa. Todavia, não é fácil o trabalho do escritor/filósofo, caso tenha que afastar a neblina até da frase mais singela, como “o giz é branco”.
O escritor faz-nos ver aí mais que uma frase de manual, uma vez que o jogo da predicação condensa o núcleo mesmo do filosofar. Precisa então revolver o pó fenomenológico dessa aproximação à brancura, desse flerte de uma substância que se nos pro-põe ligada a um predicado, mostrando-se nele, armando nele seu salto, mas também revolvendo um jogo filosofante, carregado de modalidades (possibilidades, existências e necessidades).
E um jogo em aparência simples nos remete a Aristóteles e à reflexão sobre as condições de possibilidade de ligação entre palavra e real, estando exemplificada nessa com-juntação um lógos apofântico, que, todavia, como bem acusa Giannotti, estaria empobrecido nos manuais ou na lógica escolar.
Difícil a escrita porque a medida de sua clareza é a da exposição de algo como a remissão fenomenológica a um martelo que se dá como martelante. Não a um sujeito ou a um objeto, mas ao que se põe em uma trama pré-predicativa, lançando-se em um campo de possibilitações antes mesmo de realizar uma possibilidade.
Ou lhe cabe ainda expor um fato a ser representado, mas à condição de lançar-nos em um espaço lógico de variações, como a dispor uma forma comum a fato e proposição. Com sua força, o escritor dispõe em um universo conceitual comum discursos que habitariam universos paralelos —e isso tudo com imagens de bom literato, sem ornamentos ou floreios artificiais.
Giannotti descreve como opera, como se indagasse o rumo das perguntas e acompanhasse o leitor no trabalho de exibição de um pensamento. Não por acaso, prefere imagens de artesão, o labor de uma oficina, em descrições de um pensar que parece dar-se com as mãos, acompanhando as ranhuras que o olhar acaso traça no tecido de conceitos.
Por exemplo, “o caso da regra não é apenas a marca que ela deixa na matéria”; “o Dasein não está no mundo como um grão de areia na imensidade do deserto”, sendo afinal atravessado por estados de ânimo que “determinam o ser-aí inteiro, como o arco que faz vibrar tanto a corda como o violino”. O pensamento provoca na escrita pequenos choques, pois usa frases firmes em questões delicadas e frases delicadas, sutis, em questões que pareceriam triviais.
Heidegger afirma que “ensinar é mais difícil que aprender porque implica um fazer aprender”. Giannotti é, nesse sentido, um excelente professor. Nunca nos esconde como usar as ferramentas filosóficas. Sua familiaridade, ademais, com a história da filosofia é um modelo de refinamento e um guia para o ensino.
Convida-nos, pois, com intimidade, a tratar cada grande pensador como talvez devêssemos tratar colegas de departamento, caso estes tivessem disposição e fôlego para um debate autêntico. Abrindo-nos um caminho, Giannotti aviva seu pensamento e, ao operar, faz-nos ir e vir nos textos, ora indicando a primeira ocorrência de um conceito, ora apontando uma mudança antes insuspeitada.
Há dificuldade, sim, no livro, mas não há bolor. Um mestre dialético indica onde os conceitos se engatam, qual sua história e seu destino. Com sua palavra, acompanha as articulações naturais das coisas, evitando, como nos ensinou Platão, “despedaçar as partes, à maneira de um mau açougueiro”.
Não raro, ao fazer notar um aspecto, dá uma preciosa indicação bibliográfica e revela tesouros, como um depositário da tradição, da recepção da obra filosófica, única capaz de trazer à luz o impensado que bem determina cada pensamento.
Giannotti é, enfim, um mestre do pensamento —e não uma mera “bordadeira”, como disse recentemente, menoscabando o trabalho preponderante nos melhores departamentos de filosofia. Aqui, devo dizer, está sendo injusto com o trabalho rigoroso que ele mesmo ajudou a estabelecer e cuja necessidade é ineludível.
Lembro-me dele passando adiante, quatro décadas atrás, um roteiro de leitura da “Crítica da Razão Pura”, de Kant, que herdara de mestres franceses e ele próprio enriquecera; ou fazendo a leitura demorada de um só parágrafo, como se cumulasse na interpretação de cada palavra uma história milenar de exegese e, em suma, uma disciplina.
Se Giannotti não deve, nem pode, desdenhar esse trabalho, o que significa essa sua frase mais ácida? Talvez apenas queira lembrar-nos que perderemos tudo se abandonarmos o exercício rigoroso da exegese filosófica, mas também ganharemos muito pouco se nos limitarmos a ele.
A crítica ácida nos mostra ainda que ele, José Arthur Giannotti, há muito tem uma história própria e, logo, presta contas sobretudo a si mesmo, inclusive quando colado ao texto do pensador com quem dialoga com naturalidade tamanha.
Não cabe lamentar a falta eventual de algum bordado. Seria uma injustiça com esse livro identificar alguma frase afastada do espírito dessa ou daquela passagem que interpreta. Seria sinal de cegueira apontar leituras controversas de passagens que não são apenas de Heidegger ou de Wittgenstein, porque, em verdade, são desses autores segundo a lente singular de Giannotti.
Estaríamos diminuindo um labor elevado e deixaríamos escapar o melhor de seu efeito e sua trama. Sem dúvida, Giannotti é um excepcional leitor, mas também um leitor forte, que, por isso mesmo, torna precioso até o ponto que porventura distorce.
Além disso, o livro atual continua um exercício já antigo. Não é apenas a segunda parte de “Lições de Filosofia Primeira”, publicado de 2011. Isso está dito e é óbvio. Mais que isso, contudo, o livro atual dialoga com sua primeira obra mais decididamente autoral, “Trabalho e Reflexão”, de 1983, quando um dos mais bem-treinados profissionais da filosofia no Brasil arriscou um diálogo internacional com a filosofia e as ciências, bem como um acerto de contas com o real.
Não por acaso, 37 anos depois, Giannotti alerta o leitor de que retoma agora a linha constante do seu filosofar como uma maneira diferenciada de pensar o “ver”: “No que me concerne, reconheço que minhas preocupações atuais encontram suas sementes no livro ‘Trabalho e Reflexão’, no qual usei esquemas operatórios para entender a teoria do valor da mercadoria em Marx, mas desaparece aqui o papel constituinte da própria reflexão”.
Repassar lógica e metafísica ocidentais não é exercício para fracos. Ao armar sua trama de apresentação da crise da razão, Giannotti precisa aprofundar até aspectos menores, como a dualidade signo-sinal, que ainda povoa a lógica escolar.
Pode ver, assim, a radicalização da “epoché” husserliana por Heidegger na com-juntação dos entes (com a qual descreve o ser-aí, um logos instalado no exercício do ser curador e antes da linguagem propriamente dita) como realizando uma tarefa semelhante à per-feita pela análise wittgensteiniana da gramática dos verbos psicológicos.
Nesse enfrentamento, ambos romperiam “o mesmo cerco”, de sorte que, ao fim e ao cabo, nos defrontaríamos “com dois paradigmas para refletir sobre a linguagem que deixam de lado a ideia de posição para delinear o ser, mergulhando, cada um a seu modo, numa práxis constitutiva sem ser reflexionante”.
Ora, o mesmo aí é Giannotti. Quem pôde, afinal, senão ele mesmo, convocar esses pensadores um tanto imiscíveis como aliados para romper um cerco, em seu desafio de décadas?
Leitores devotos aceitarão mal que esses dois autores encontrem um solo comum, se esse solo não lhes for reconstituído e ante-posto, pro-posto, dis-posto. Nosso pensador, porém, pôde propor-lhes um contexto e levá-los a um comentário para além do que ousariam suspeitar.
E, nesse livro gigantesco, servem ao percurso traçado por Giannotti, que confessa: “Tenho a impressão de ter atravessado os limites do universo inaugurado por Descartes e solidificado por Kant, em que o eu é o princípio de toda determinação”. O que criticar aqui? Absolutamente nada. E fica a lição de nunca chamar grandes pensadores para tarefas vãs. O resto é trabalho escolar.
Temos a celebrar um exemplo de literato, professor e pensador. Tendo completado 90 anos, Giannotti continua uma referência fundamental para a comunidade filosófica brasileira. E a construção de uma comunidade não se faz sem vítimas.
Ao longo dos anos, Giannotti esteve entre os que contribuíram para estabelecer um padrão de rigor para o pensamento filosófico, que começa com um padrão de rigor na leitura. Não foi outro seu papel nos célebres seminários a respeito do livro “O Capital”, de Marx.
Em um trabalho multidisciplinar, submeteu uma obra disputada por interesse político mais terreno a padrões inéditos de leitura entre nós, lendo Marx como se deve ler Kant ou Aristóteles.
Em meio à afirmação de um estilo rigoroso, foi preciso afastar e até diminuir talentos mais voltados ao beletrismo. Essa ação militante, que foi de um coletivo, teve o condão de transformar a filosofia no Brasil. Hoje, estão espalhados pelo país profissionais formados segundo critérios reconhecíveis pelos melhores centros filosóficos.
Um preço, porém, foi alguma limitação do trabalho de história da filosofia à disciplina do comentário, como se condenados à eterna lembrança, ou de outras aventuras filosóficas consistentes a contribuições medidas pela cultura do “paper”, como se condenados a um rápido esquecimento.
Nesse sentido, “Heidegger/Wittgenstein” é um grande alento. Primeiro, trata-se de trabalho original de um grande leitor da história da filosofia, cujos pecados são os de um leitor inter-essado. Segundo, mostra a sofisticação de um muito bem-treinado interlocutor da filosofia de feição analítica, capaz de arrancar secreções metafísicas da mais estrita lógica formal. Terceiro, testemunha um diálogo singular com a história da filosofia, valendo aqui mencionar a generosa menção à boa literatura filosófica nacional.
Saio encharcado do livro. Fiquei tentado, parafraseando Adorno, a intitular assim a resenha: “Como ler Giannotti, o obscuro”. Esse mito cultivado até por Giannotti, com indisfarçável orgulho. Lembro-me de ele ter reagido outrora a uma provocação, dizendo que escrevia de modo difícil porque pensava de modo difícil —quer dizer, profundo.
Agora, a propósito deste seu “Heidegger/Wittgenstein”, ele voltou a alimentar a lenda e declarou em entrevista não esperar mais de cem leitores. A lenda é falsa.
A seu modo provocador, Giannotti mente, ao dizer uma verdade. O mito é falso por não dizer o essencial. O livro é um exemplo raro da melhor clareza filosófica. Ou seja, é um texto para ler sentado, um texto de trabalho, e um repositório de elegância, argúcia e desafios.
Quem tiver a coragem de se permitir um grande e raro prazer, quem tiver a arte de se demorar sobre cada passagem, como fazemos com os clássicos, vai concluir a leitura entre atônito e gratificado. E vai se despedir do livro como quem se afasta de um grande amor.
*João Carlos Salles, Professor de filosofia e reitor da UFBA (Universidade Federal da Bahia)
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HEIDEGGER/WITTGENSTEIN: CONFRONTOS
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• Autor José Arthur Giannotti
• Editora Companhia das Letras
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