Poeta, morto em 2016, será também alvo de debates e lives, enquanto o seu acervo é organizado e uma biografia entra em preparação
Roberta Pennafort | O Globo
RIO - Vivo fosse, Ferreira Gullar passaria com festa seus 90 anos, no próximo dia 10. Estaria inquieto com a turbulência do noticiário de 2020 e o confinamento imposto pelo coronavírus, e participaria de ‘lives’ expondo as muitas opiniões que cultivava – sobre arte, política, a existência humana. A conjectura é da viúva, a também poeta Cláudia Ahimsa, que, passados quase quatro anos, ainda elabora a ausência do marido. A melancolia trazida pela quarentena, ela conta, foi revertida com a entrega a um trabalho que lhe recuperou um pouco de Gullar: o livro “As muitas maneiras de dizer ‘eu te amo’”.
São 31 ilustrações do escritor (e também artista visual, crítico e et ceteras), sendo 30 naturezas-mortas em estilo pontilhado, e um retrato de Cláudia, a quem Gullar, aos 64 anos, já viúvo da atriz Thereza Aragão, conheceu com 29 anos, na condição de “poeta solta no mundo”, então vivendo e versando na Alemanha. O encontro foi na Feira de Frankfurt, em 1994, quando o Brasil era o país-tema do evento literário.
A acompanhar os desenhos, o livro, produzido artesanalmente pela editora portuguesa Urucum, traz um texto de Cláudia (“pequeno, porque dói”, diz um trecho). Uma breve narrativa de um grande amor.
– Eu estava lá em Frankfurt lançando meu segundo livro, e foi paixão à primeira vista, olho no olho, não admiração intelectual. Eu não era leitora dele – frisa Cláudia, que, a partir dali, passaria a se corresponder intensamente com Gullar (“tudo o que você pode imaginar acontecia naquelas cartas, a maioria é impublicável”, brinca). Só vencidos oito meses eles se reviram, já no Brasil. Na mala, de presente, Cláudia trouxe um caderno de desenho, canson, que cinco anos depois, voltaria para ela – as folhas todas preenchidas, e com a dedicatória que agora dá título ao livro.
Além da publicação, a ser vendida on-line a partir do dia 10 (pelo site www.urucum.com), as nove décadas desde o nascimento de José Ribamar Ferreira, maranhense feito Ferreira Gullar no Rio de Janeiro, motivam também homenagens virtuais, adequadas aos tempos pandêmicos.
A Academia Brasileira de Letras, instituição à qual Gullar nunca aspirou, mas em que acabou ingressando a apenas dois anos da morte, depois de muita insistência de amigos, está programando uma edição do podcast Efemérides Acadêmicas, com os membros Arno Wehling, Antonio Carlos Secchin e Antonio Cicero. Cicero tomará parte também no tributo da Companhia das Letras, editora onde está a obra poética de Gullar. Fará uma videoaula sobre o incontornável “Poema sujo” (1975).
O cineasta Silvio Tendler, autor do programa de TV sobre ele “Há muitas noites na noite” (2015) e do documentário “Arqueologia do poeta” (2019), vai conduzir uma ‘live’ no Facebook (no perfil da Caliban Cinema e Conteúdo, sua produtora), dia 10, às 19h, também para festejar Gullar. Como convidados, a filha dele Luciana Aragão Ferreira, a neta Juliana Aragão e o inseparável companheiro Zelito Viana.
– Há uns dez anos, tentei patrocínio para um filme sobre Gullar, mas o parecerista da Agência Nacional de Cinema me disse que o povo não gosta de poesia. Aí, montei no Oi Futuro um bar que servia poesia (uma videoinstalação sobre o “Poema sujo”), e foi um sucesso – lembra Tendler, que pesquisou, para empreender sua “arqueologia”, direto no acervo do poeta, guardado no apartamento em que vivia, em Copacabana.
Dos arquivos do imóvel da Rua Duvivier, a filha de Gullar cedeu ao Globo, especialmente pela ocasião dos 90 anos, o poema publicado aqui. É um trecho de “O sentido da vida”, inédito e sem registro de data. Foi, provavelmente, escrito entre os anos 1960 e 1970, quando ele trabalhava na sucursal do jornal O Estado de S. Paulo, no centro do Rio, estima a família. Estes e outros versos devem sair numa publicação futura.
O material armazenado também foi apresentado ao jornalista Miguel Conde, que prepara uma biografia de Gullar, programada pela Companhia das Letras para o ano que vem. Conde está priorizando momentos menos conhecidos da vida do escritor, que, em 1998, já lançara as memórias “Rabo de foguete”, sobre o período do exílio, durante a ditadura militar. Por exemplo, os jovens anos em São Luís e o começo da temporada em Moscou, em 1972.
– Um dos principais desafios é não ser de todo levado pelo relato do próprio Gullar a respeito daquilo que ele viveu, que, em geral, é muito sedutor e persuasivo. De jovem sonetista a poeta experimental, de teórico da vanguarda neoconcreta a militante comunista, ele teve uma vida múltipla. Gullar contava que quando alguém o parava na rua e perguntava “você não é o Ferreira Gullar?”, ele gostava de responder “às vezes”. Dizia que só fazia sentido escrever se você apostasse a vida inteira nisso, e sinto que, de fato, ele fez essa aposta – acredita o biógrafo.
Espanto pela vida
A figura delgada de cabelos escorridos e verve incansável se foi a 4 de dezembro de 2016, em decorrência de uma pneumonia. Mas o porvir é farto, em se tratando desse acervo, afirma Maria Amélia Mello, amiga e editora de parte de seus livros, incluindo o último de poesia, “Em alguma parte alguma” (de 2010, na época, lançado pela José Olympio).
À época com 80 anos, o autor declarou que os versos secaram junto com seu espanto pela vida. “Gostaria de saber por que não me espanto mais, mas não posso me espantar de propósito; não tem a ver com a idade, Rimbaud parou com 19 anos”, ele explicou então. Três meses antes, ele havia ganho o Prêmio Camões, o principal da língua portuguesa.
– A obra do Gullar vai ser muito trabalhada ainda. Se você olhar os últimos 50 anos, ele estava em todas, nas artes plásticas, poesia, política, teatro, tradução. No leito de morte, escreveu a crônica “A arte do futuro”, quando já não havia futuro para ele. Como diria João Cabral de Melo Neto, era um homem que andava entre os que vivem. São dois ou três pedidos que chegam toda semana para a inclusão de poemas dele em livros didáticos, antologias... – conta Maria Amélia, editora literária da Autêntica, pela qual Gullar lançou o derradeiro título em vida, “Autobiografia poética e outros textos” (2015). Durante a quarentena, saiu também pela Autêntica o único livro escrito especificamente para crianças, “Dr Urubu e outras fábulas”, com ilustrações de Cláudio Martins.
A editora vem se dedicando, com Celeste Aragão Ferreira, neta de Gullar, que acompanhou o dia a dia do trabalho do avô em seus últimos quatro anos de vida, à leitura e organização de diários do poeta que vão dos anos 1950 aos 2010. Esta parte do acervo, assim como outros escritos das gavetas de Copacabana, pode vir a ser cedido ao Instituto Moreira Salles, com quem a família está conversando sobre a possibilidade de conservação.
– Vamos manter vivas as muitas vozes que falam através de Ferreira Gullar, devolvendo ao nosso povo a poesia. Assim ele o quis. Abraçando a todos, diz: “Uma parte de mim é todo mundo” – promete a filha Luciana, citando o popular poema "Traduzir-se".
Mês que vem, o Gullar artista visual, celebrado na fase final da vida por seus relevos em aço e metal, estará na exposição “Livros e arte”, em diálogo com nomes como Frans Krajcberg e Luiz Zerbini. Será na agora reaberta Casa Roberto Marinho, com curadoria de Leonel Kaz.
Da parte de Cláudia Ahimsa, ainda é gestado o projeto de um livro de poemas que ela escreveu para Gullar, no período inicial do luto, ilustrados com fotos de objetos dele deixados em sua casa (“as coisas perguntam por ele”, ela diz); a publicação de poemas eróticos de Gullar para ela; e uma “biografia do amor” dos dois.
– Quando eu o conheci, sabia que seria uma onda gigante. Aos poucos, estou começando a aceitar (a perda). Ele não estava mal de saúde. Mas, no passado de fumante, teve um começo de enfisema, que acabou virando um pneumotórax. E eu que achava que essa palavra só existia na poesia do Manuel Bandeira...
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