O Globo
Se houver uma reação positiva na cidade, será possível estimular mudanças no nível do estado
Quando Raul Jungmann, então ministro da Segurança, descreveu o Rio como o coração das trevas, aludindo ao enlace do crime com a política, senti-me atingido por essa imagem do escritor Joseph Conrad.
Costumo descrever minha relação de adolescente com o Rio através de outra imagem: o deslumbramento com as luzes que vi da serra, o mesmo do personagem de Thomas Hardy em “Judas, o obscuro”, diante do esplendor noturno da cidade vista da colina.
Vim de Minas. Minha referência são os que chegaram antes, trazendo a carga maior de talento. Carlos Drummond de Andrade: “Nesta cidade vivo há 40 anos/ Há 40 anos vivo esta cidade/ A cidade me vive há 40 anos...”.
O poeta já era nostálgico quando escreveu a “Elegia carioca”. Num outro poema, sentia-se sozinho numa cidade de dois milhões de habitantes, havia crimes e muito conto do vigário.
Tantas coisas aconteceram, e o Rio hoje é um lugar parcialmente ocupado pelo tráfico e pelas milícias, tornou-se um estado meio artificial, em que a cabeça não conversa com o corpo.
O processo de corrupção tomou os palácios do governo, o Parlamento, com metástese no Judiciário. As ruas estão cheias de gente sem teto, a sujeira se acumula, enfim, os sinais da decadência são muito eloquentes.
Somos testemunhas e cúmplices. Não basta apenas levar a vida na esperança de que algo bom aconteça. É preciso olhar para que o Rio tem de bom e canalizar essa força positiva para a mudança. Nada de muito grandioso; alguns sonham com a normalidade do Espírito Santo, um estado próximo e um pouco apagado no Sudeste.
O Rio tem a segunda economia do país. Há uma produção cultural importante, presença científica, multinacionais, enfim, todas essas forças teriam muito a perder se o Rio se tornar um desses pequenos países falidos do mundo, dominados por gangues.
O presidente da República fez sua carreira no Rio. O presidente da Câmara é daqui. Não creio que, no caso do primeiro, poderíamos avançar mais do que uma boa vontade na recuperação fiscal. A simpatia pelas milícias torna a família Bolsonaro não uma solução, mas parte do problema.
A pandemia, embora talvez a imprensa não tenha registrado com todo o vigor, revelou uma grande energia social. Em muitas comunidades foram criados comitês de crise.
Um grupo que já existia na internet, Juntos Somos + Rio, não só abrigou importantes debates sobre a pandemia, mas também divulgou inúmeras iniciativas de assistência que foram bem-sucedidas. É o resultado de uma reflexão já antiga sobre o potencial do Rio e deve se concentrar agora não apenas em programas, mas também no exame dos candidatos municipais.
Eleições são limitadas. Mas, de qualquer forma, se houver uma reação positiva na cidade do Rio, será possível estimular mudanças no nível do estado.
Politicamente, na capital estamos na Idade Média, pois um dos traços da modernidade é precisamente a separação entre Igreja e Estado.
Seria necessário também, sem grandes ilusões, escolher um pequeno número de vereadores que mantivessem um diálogo com a cidade e que, de uma certa forma, fossem permeáveis à influência das forças de renovação.
Em todo o mundo, prepara-se a retomada econômica. Um dos tópicos da retomada é exatamente como reorganizar as cidades de uma forma mais inteligente e sustentável.
Em Amsterdã, esse debate está mais avançado. São lugares distintos. Mas essas variáveis, o mundo digital e o meio ambiente devem compor quase todos os projetos de reconstrução. Se a cidade conseguir eleger um prefeito comprometido com a reconstrução e um grupo de vereadores com o qual possa dialogar, apenas um modesto passo será dado.
Núcleos como o Juntos Somos +Rio devem prosseguir no seu debate permanente, se possível multiplicando iniciativas, sobretudo nas comunidades, que têm problemas específicos para discutir. Qualquer êxito no Rio, por pequeno que seja, pode ter efeito positivo nas outras cidades do estado, impulsionando esta pressão.
Não há salvadores no horizonte. Alguns foram presos, outros capitularam diante do velho sistema carcomido. Aquela célebre frase do Kennedy — “Não pergunte o que o seu país pode fazer por você” — talvez tenha sido inspirada nos versos de John Donne: “Não pergunte por quem os sinos dobram/ Eles dobram por você”.
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