Engana-se
quem acredita que Trump seja carta fora do baralho: Biden venceu, mas o
trumpismo sai fortalecido
“I’ll be back”, teria dito o presidente Grover
Cleveland ao deixar a Casa Branca depois de perder a reeleição em 1888. E ele
cumpriu a promessa. Ao dar a volta por cima em 1892, Cleveland ainda é, até
hoje, a única pessoa na história americana a governar o país em dois mandatos
não consecutivos (1885-1888 e 1893-1896). Donald Trump pode lhe fazer companhia
em 2024.
Cleveland
era democrata - e o vínculo partidário não é a única característica que o
diferencia de Trump. Discreto, fez da austeridade e da retidão seus principais
ativos políticos. Na sua primeira eleição, sofreu uma intensa campanha
difamatória na imprensa, com os adversários acusando-o de ter um filho
ilegítimo. Ao ser questionado por seus apoiadores sobre qual deveria ser a sua
estratégia de defesa, respondeu com uma frase que marcou época: “Tell the
truth”. Ao assumir que caiu em tentação e admitir a possibilidade de ser pai da
criança, Grover Cleveland mereceu um voto de confiança do puritano eleitorado
americano no final do século XIX.
Mas
à parte a coloração partidária, a discrição e a postura em relação ao dilema
“fato ou fake”, há pontos em comum entre eles. Ambos tiveram uma carreira
política meteórica: em apenas dois anos, Cleveland elegeu-se prefeito de
Buffalo, governador de Nova York e presidente da República, enquanto Trump...
bem, todos sabemos o quão rápida foi sua ascensão.
Os
dois presidentes também viveram em mundos muito polarizados. Cleveland chegou
ao poder derrotando seu adversário James Blaine por apenas 0,3% dos votos nacionais
e se não fosse uma diferença de apenas 1.200 votos no estado de Nova York,
teria perdido a disputa no Colégio Eleitoral - assim como Donald Trump venceu
Hillary Clinton com margens apertadas e ainda perdendo nacionalmente.
Ao
tentarem a reeleição, tanto Cleveland quanto Trump ampliaram seu eleitorado,
mas por um triz não conseguiram manter o domínio sobre Estados relevantes, e
acabaram sendo derrotados. Em 1888, Nova York e Indiana representaram para
Grover Cleveland o que Georgia, Pensilvânia e Michigan foram para Trump em
2020.
Quatro
anos depois, o retorno de Cleveland à Casa Branca foi possível pelo agravamento
da situação econômica, o acirramento das disputas raciais no país e a ausência
de alternativas no seio de seu partido - condições que podem contribuir para a
volta de Trump em 2024.
A
vitória de Joe Biden vem sendo efusivamente comemorada como o fim de uma era.
Analistas chegaram a dizer que “a aventura populista norte-americana chegou ao
fim” e que a razoabilidade e a sensatez se impuseram de modo definitivo sobre a
truculência das táticas de Donald Trump. Calma lá.
Deixando
de lado a teatralidade das acusações de fraude e as ameaças de judicialização
do resultado das urnas, Trump poderá deixar a presidência de cabeça erguida.
Ele conseguiu mobilizar seu eleitorado para fazer frente à onda azul que se
mobilizou desde os protestos em resposta ao assassinato de George Floyd,
manteve o domínio republicano em suas bases tradicionais e ainda angariou votos
em redutos antes considerados monopólio democrata, como parcelas relevantes do
eleitorado latino - tudo isso em meio a uma pandemia e uma crise econômica sem
precedentes na história recente.
A
derrota trumpista se deu em margens tão apertadas quanto as de 2016, o que
evidencia que os Estados Unidos continuam tão divididos quanto antes, tanto
geográfica (litoral x interior, cidades grandes x zonas rurais) quanto
demograficamente (brancos x não brancos, homens x mulheres, alta x baixa
escolaridade). Não é por outro motivo que tanto Joe Biden quanto Kamala Harris,
em seus discursos da vitória, usaram a mesma expressão: “curar o país”, como se
ele sangrasse em função de tantas divisões.
Amainar
diferenças tão acirradas até 2024 será uma tarefa hercúlea, ainda mais se os
democratas não conseguirem o controle do Senado. É bom lembrar que nem Barack
Obama, com todo o seu carisma e contando com oito anos de mandato, conseguiu
vencer resistências, unificar o país e fazer sua sucessora.
Como
a Emenda nº 22 da Constituição americana não impede um ex-presidente que perdeu
a eleição de candidatar-se de novo, Donald Trump tem à sua frente quatro anos
para fazer campanha e azucrinar o governo de Joe Biden pelas redes sociais e
manipulando as atenções da mídia.
Outra
circunstância que o favorece é a ausência de novas lideranças em ambos os
partidos. Do lado republicano, ainda que existam críticas às suas postura e
personalidade, nenhum nome lhe faz sombra. Entre os democratas, as primárias
deste ano, com um número recorde de pré-candidatos e a escolha recaindo sobre
um senhor de 77 anos, dizem muito sobre o deserto de alternativas.
É
verdade que o atual presidente tem um passado nebuloso e a perda da imunidade
presidencial abre flancos para processos judiciais que podem inviabilizar um
plano de retorno ao centro máximo do poder nos Estados Unidos. Nesse caso,
ainda lhe restaria um plano B, que atende pelo nome de Donald Trump Jr.
Clãs
sempre fizeram parte da política americana: John & John Quincy Adams, no
alvorecer da República, e George H. & George W. Bush são duplas de pais e
filhos que chegaram à presidência. Outro exemplo é William Harrison (1841-1844)
e seu neto Benjamin Harrison, que derrotou Grover Cleveland em 1888. Também
tivemos os Dead Kennedys na década de 1960 e o casal Clinton mais recentemente,
todos com grande protagonismo. E ainda há Michelle Obama - que nega interesse
em entrar no jogo, mas parece ser uma carta guardada na manga dos democratas
para o futuro.
Com
um perfil super ativo nas redes sociais, papel de comando nas campanhas do pai
e tendo participado como consultor na administração que se encerra, não seria
surpresa ver Trump Jr., 43 anos, sendo preparado para assumir o bastão do pai
caso ele não possa concorrer em 2024.
É
muito cedo para especular sobre o que vai acontecer nos EUA daqui a quatro
anos. Mas engana-se quem acredita que Trump seja carta fora do baralho. Sua
campanha, aliás, já começou.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.
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