Candidato
a marisco entre EUA e China, faltam ao governo Bolsonaro política externa
independente e pensamento estratégico. O alinhamento com Trump foi o melhor
exemplo
(Os
Maias, Eça de Queiroz, 1888)
Essa
alegoria do escritor português que tanto influenciou nossa literatura encerra
um grande “afresco” literário sobre a atávica e parasitária elite lusitana e a
situação de estagnação de Portugal no final do século XIX. Serve sob medida
para a situação em que se encontram o presidente Jair Bolsonaro e seu ministro
das não-Relações Exteriores, Ernesto Araujo, que agora correm atrás do prejuízo
como a dupla Carlos Maia e João da Ega, por causa da vitória de Joe Biden,
candidato do Partido Democrata nas eleições para a Presidência dos Estados
Unidos. O presidente Donald Trump, um demagogo tresloucado que ocupou a Casa
Branca por 4 anos e levou muitos a acreditarem no naufrágio da civilização
ocidental, foi escolhido por ambos como aliado incondicional. Entretanto, mais
uma vez, a democracia americana se recuperou de um desastre político e retomou
o seu curso histórico.
No
mundo globalizado — traumatizado por uma pandemia que já matou 1,4 milhão de
pessoas, a recessão dela decorrente e o aprofundamento das desigualdades —,
falta uma autoridade moral, portadora de valores universais capazes de
influenciar a marcha da História, à qual a sociedade contemporânea possa
recorrer. O Velho Mundo, com suas ideias iluministas e protagonista da história
mundial do século XV ao XIX, hoje não é o candidato natural a essa posição.
Somente os Estados Unidos podem exercer esse papel de liderança global nos
fóruns internacionais, pela universalidade de seus fundamentos políticos, sua
composição étnica e multiculturalismo, além do inegável poder que adquiriu no
século passado, após vencer duas guerras mundiais e a “guerra fria”. Nenhum
outro país reúne, simultaneamente, capacidade de produção industrial, força
militar, pesquisa científica, conhecimento, tecnologia e influência política e
cultural para isso.
Marisco
Misógino,
homofóbico e chauvinista, Trump havia abdicado desse protagonismo, lançando os
Estados Unidos na contramão da História. Mas é um erro supor que tudo começou
com o republicano. Na verdade, o erro histórico dos Estados Unidos foi
continuar a tratar os vencidos na “guerra fria” — a antiga União Soviética e os
países do Leste europeu — como inimigos a serem humilhados, espoliados e
isolados politicamente. É esse hegemonismo truculento que está na gênese do
trumpismo, marcadamente após a Guerra do Iraque, com o seu intervencionismo
para derrubar regimes e refundar nações, alterando abruptamente a geopolítica
de regiões inteiras. O ponto de inflexão dessa política, porém, foram os
fracassos nas tentativas de derrubar os governantes da Síria, Bashar al-Asha,d
e da Venezuela, Nícolas Maduro, por subestimar o poder de intervenção militar
da Rússia e a emergência da China como potência econômica e diplomática.
No
seu livro Sobre a China, Henry Kissinger, ex-secretário de Estado
norte-americano, que no governo Richard Nixon negociou com êxito o
restabelecimento das relações dos Estados Unidos com os chineses, chamou a
atenção para o fato de que as duas guerras mundiais do século XX resultaram de
uma disputa pelo controle do comercio mundial no Atlântico por uma potência
continental, a Alemanha, e uma potência marítima, o Reino Unido. Agora, o eixo
do comércio mundial se deslocou para o Pacífico e a disputa continua sendo
entre uma potência continental e uma marítima: China e os Estados Unidos,
respectivamente. É preciso evitar que essa guerra comercial não se transforme
numa guerra quente, não se cansa de advertir Kissinger, o ex-diplomata hoje
nonagenário.
O erro estratégico de Bolsonaro e seu não-chanceler, Ernesto Araujo, foi acreditar que isolamento diplomático em que o país mergulhou, por causa de uma agenda negacionista, reacionária e antiambientalista, seria compensado pela aliança imediatista, não com o Estado norte-americano, mas com o presidente Trump. Deu errado. A águia do Norte novamente alçou voo, em busca da liberdade, mas o dragão chinês, nosso principal parceiro comercial, espreita o processo em curso antes de estrugir labaredas de fogo. A China dispõe de recursos humanos e financeiros, capacidade industrial e tecnologia para sustentar essa disputa por longos anos. O maior desafio para a diplomacia brasileira é não virar marisco nessa disputa, que continuará com Biden, em outros termos. Bolsonaro colecionou agressões aos chineses, que pacientemente observam o curso de nossas relações com os Estados Unidos. Se forem toscamente discriminados, principalmente no caso do 5G, vão se reposicionar política e comercialmente, com um poder de retaliação muito grande. Se tem uma coisa que falta ao governo Bolsonaro é politica externa independente e pensamento estratégico. O alinhamento com Trump foi o melhor exemplo.
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