Vitória
de Trump representaria a perda de esperança na sobrevivência da própria
humanidade
Na
noite das eleições pensei em ver um jogo da Copa do Brasil para não passar a
noite em claro, sofrendo com algo que não posso influenciar. Trump ou Biden,
Botafogo ou Goiás? Este último duelo tinha funcionado para embalar meu sono na
semana anterior.
No
entanto passei mais uma noite em claro. Afinal, há tanta coisa em jogo. Minha
ideia dos Estados Unidos não se alterou. Como nunca fui lá, conecto-me pela
cultura, e alguns pontos importantes do mapa são Nova York e a Califórnia.
Nesses lugares, Trump foi derrotado de forma acachapante. Continuam, de certa
maneira, familiares para mim.
O
problema são as decisões tomadas em Washington. No dia anterior, os EUA
formalizaram sua saída do Acordo de Paris, deixando os outros países com a
enorme tarefa de adaptação ao aquecimento global.
Para
os estrategistas, uma solução pró-Trump seria interessante para a China, pois
acentuaria a decadência americana no mundo. Para mim, ela representaria a perda
de esperança na sobrevivência da própria humanidade, deixando-nos com a
alternativa de apenas lutar para que isso seja mais lento.
No
meu país, seria um estímulo para que Bolsonaro e Salles acelerem a destruição
dos recursos naturais e reduzam as chances de encontrarmos nossa moderna
vocação econômica: a exploração sustentável da Amazônia, das fontes renováveis
de energia, a abertura de milhares de empregos num projeto de recuperação
verde.
Alguma
coisa não funcionou na primeira noite. As pesquisas se equivocaram, e Biden não
conquistou uma vitória esmagadora. Aconteceu o que todos anunciavam; Trump
tumultuaria o processo e buscaria uma saída no tapetão. Ele, como todo mundo,
sabia que a maioria dos democratas votou pelo correio e que esses votos
demoraram a ser contados.
Independentemente
do resultado, tudo isso me faz pensar no Brasil. Lá como aqui, a polarização
domina o país. Lá como aqui, o populismo é muito mais resiliente do que pode
parecer quando nos referimos apenas aos círculos intelectuais.
Antes
de criticar as pesquisas que falharam, é importante registrar que algumas
pessoas têm medo de revelar seu voto; outras o escamoteiam porque veem nos
institutos de pesquisa um braço do sistema e de dominação, denunciado pelos
populistas.
E,
antes de criticar os democratas por terem esperado uma onda azul que não
arrebentou na praia, é preciso estudar se existem alternativas para certas
tendências humanas.
Como
não se importar com os imigrantes ilegais, inclusive centenas de crianças
separadas dos pais? Nem sempre os latinos legalizados são solidários com os
ilegais. Nem sempre os negros se compadecem dos seus irmãos asfixiados até a
morte pela polícia.
Na
medida em que a vitória de Biden se anunciava de forma mais lenta que o
esperado, Trump optou por entrar na Justiça e, de certa forma, tumultuar o
processo. Isso preocupa não só pelos Estados Unidos. Trump é uma inspiração
para Bolsonaro, que tem uma tendência a questionar resultado das eleições, até
mesmo quando as vence.
Ha
tantas lições a tirar deste momento que ele nos deixa uma tarefa para muito
tempo. Mas é claro que o populismo de direita é enraizado na visão de mundo de
seus seguidores, e não podemos subestimá-lo, mesmo diante da derrota eleitoral.
Aliás,
a vitória nesse caso lembra-me a fala de um oficial no filme “A Guerra da
Argélia”: “É muito difícil chegar ao governo, mas as dificuldades começam de
verdade quando se chega lá”.
Biden
é um homem com recursos oratórios modestos, mas realizou a tarefa de ser o
candidato mais votado da história americana. O panorama que encontra diante de
si é minado não só pela pandemia, crise econômica, mas também pelo legado do
populismo. Desconfiança nas instituições, notícias falsas, teorias
conspiratórias, divisão profunda na sociedade, tudo isso modela um caminho
muito difícil de transpor.
Muito
mais que a paciência e a unidade necessárias para derrotar o populismo de
direita, será necessário construir pontes, apesar dos sabotadores que as
explodem com frequência.
A primeira e grande ponte será com o próprio mundo, voltar ao esforço multilateral, reconhecer a importância do trabalho conjunto para enfrentar o grande desafio planetário. A volta ao Acordo de Paris e a reconstrução verde da economia americana seriam um grande começo.
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