domingo, 8 de novembro de 2020

Eliane Cantanhêde - O Trump tupiniquim

- O Estado de S.Paulo

Com derrota externa e interna, Bolsonaro está abatido, isolado e sem referências

É estarrecedor que o presidente dos Estados Unidos acuse adversários e o próprio sistema eleitoral de fraude e corrupção, atiçando seus apoiadores para uma guerra campal e achincalhando a maior democracia do planeta. Mas Donald Trump é Donald Trump, sai da Casa Branca como entrou e leva o raro troféu de presidente que perde a reeleição, pensando sempre nele, só nele.

Biden prega união nacional, Trump mente, agride e é cortado do ar pelas três maiores redes de TV dos EUA, aprofundando a polarização do País e a divisão no Partido Republicano, que começou quando ele impôs sua candidatura no grito. Cara a cara com a derrota, ele expõe desespero e atrai críticas dos próprios republicanos e parte da direita americana que não é belicosa, mentirosa, autoritária e ignorante. Mas ele tem mais de 70 milhões de votos...

No Brasil, o voto é obrigatório com o sistema de um cidadão, um voto, seja ele banqueiro ou pedreiro. Nos EUA, é opcional e o candidato com mais voto popular pode perder a eleição no colégio eleitoral, como os democratas Al Gore e Hillary Clinton. Se o candidato republicano tem 51% em Iowa, todos os votos do Estado vão para o republicano. Se você votou no democrata, seu voto vai para o lixo.

Quanto à votação, o Brasil tem coordenação nacional e regras do TSE e, desde 1996, a urna eletrônica, segura, fácil, rápida, que permite o anúncio do novo presidente no dia do pleito. Já nos EUA cada estado tem suas regras e as cédulas são de papel, do século passado. A apuração é manual, voto a voto, envolve milhões de pessoas, gera incertezas, disputas judiciais e o resultado pode demorar semanas.

Bolsonaro, porém, insiste na volta da cédula impressa, depois de criar uma figura inédita no mundo: a do eleito que denuncia fraude na própria eleição – sem prova nenhuma, aliás, como o Trump real nos EUA. E as semelhanças não param aí. Trump se nega a coordenar a reação nacional à pandemia, diz que é só uma gripe, desdenha de máscaras e isolamento social e fez propaganda da cloroquina. Você já viu esse filme aqui? Mas isso não é brincadeira, é brincar com a vida.

Trump lá e Bolsonaro cá vivem numa realidade paralela, como velhos populistas convencidos de que podem falar e fazer qualquer coisa, espancar a China, aliar-se ao que há de pior e promover retrocessos em gênero, direitos humanos e meio ambiente na ONU. Bolsonaro só não saiu do Acordo de Paris, como fez Trump no dia da eleição, por falta de condições políticas.

Há, porém, diferenças entre o “mito” Bolsonaro e o “Deus” Trump, que não rasga dinheiro e manteve o slogan “America First” com o Brasil. Ganhou todas, inclusive ao derrubar um brasileiro em favor de um americano no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e ao impor cotas de aço, alumínio e etanol para o Brasil. Logo, usou os produtores brasileiros para comprar votos desses setores nos EUA.

Apesar da ridícula convocação de manifestações pró Trump em cidades brasileiras, até o mercado financeiro avalia como positiva a vitória de Joe Biden, que defende princípios, não é dado a maluquices e vai manter o decantado pragmatismo da política externa americana. Os dois presidentes podem se bicar, mas Brasil e EUA manterão acordos comerciais, programas de cooperação e a negociação em prol dos interesses de cada um. E quem discorda da pressão em defesa da Amazônia?

A troca de Trump por Biden é saudável para o mundo, os EUA e o Brasil, mas Bolsonaro tem razão em estar abatido. Ele perde o único grande parceiro internacional e seus candidatos às eleições municipais afundam como Trump. Com derrota externa e interna e a obsessão por 2022, será cada vez mais engolido pelo Centrão, quicando de um palanque a outro e falando besteira.

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