EDITORIAIS
Os partidos e o candidato da terceira via
O Estado de S. Paulo
O País tem um urgente desafio: encontrar um
candidato competente e responsável, capaz de representar uma alternativa viável
a Luiz Inácio Lula da Silva e a Jair Bolsonaro. A população não pode ser refém
do lulopetismo e do bolsonarismo, opções que – por mais empenho que se coloque
para identificar diferenças entre elas – convergem de forma tão cristalina no
negacionismo (seja na saúde pública ou na economia), na falta de disposição para
promover as reformas, na utilização da máquina pública para interesses
particulares (familiares ou partidários), na irresponsabilidade da gestão
pública e no exercício do poder para fins exclusivamente eleitorais.
Esse desafio à liberdade e à cidadania –
encontrar um candidato a presidente da República responsável e com viabilidade
política – é, em alguma medida, tarefa de toda a sociedade. Mas, ainda que
todos os cidadãos sejam em alguma medida responsáveis – e é muito oportuno que
ninguém se sinta alijado do processo político –, há numa democracia
representativa atores institucionais sobre os quais recai especial
responsabilidade pelo futuro do País. Faz-se referência aqui aos partidos
políticos.
De maneira muito especial, cabe às legendas
encontrar um candidato viável da terceira via, comprometido com o interesse
público.
Essa específica responsabilidade dos
partidos não é mero dever de ocasião, em razão das atuais circunstâncias. Nada
mais distante disso. A tarefa é decorrência direta da missão institucional dos
partidos políticos em uma democracia representativa: assegurar pluralidade de
opções políticas. E ao falar da terceira via, é disto que se trata: garantir
que o eleitor, ao votar para presidente da República, tenha uma opção de voto
viável e responsável.
Por isso, a Constituição de 1988 coloca os partidos políticos entre as instituições fundamentais para a organização do Estado. Essa menção não é uma espécie de homenagem formal ou de regalia institucional. As legendas têm papel decisivo na qualidade dos candidatos que o eleitor tem à disposição. Tanto é assim que, por expressa determinação constitucional, a filiação partidária é uma das condições de elegibilidade.
Ao contrário do que às vezes se pensa, os
partidos são muito relevantes no cenário político. Eles não são – não precisam
ser – reféns de Luiz Inácio Lula da Silva ou de Jair Bolsonaro. Por exemplo,
nas eleições de 2020, cinco partidos se destacaram quanto ao número de
prefeitos eleitos: MDB (783), Progressistas (687), PSD (654), PSDB (521) e DEM
(466).
Essas cinco legendas têm, portanto,
inegável força política e expressiva capilaridade, não dependendo do
lulopetismo ou do bolsonarismo para sua viabilidade eleitoral. Seria, no
mínimo, ingênuo que, com tal potencial político, esses cinco grandes partidos
não fossem protagonistas nas eleições presidenciais apresentando candidatos
competentes, responsáveis e viáveis.
Vale lembrar que, nas eleições do ano
passado, o partido de Lula e aquele pelo qual Bolsonaro foi eleito presidente
fizeram muito menos prefeitos que as cinco primeiras legendas. O PT elegeu 182
e o PSL, 90. O DEM sozinho elegeu duas vezes e meia o número de prefeitos do
PT.
Os números das eleições de 2020 revelam que
o eleitor não é submisso aos extremos lulopetista e bolsonarista. Dessa forma,
encontrar um candidato viável da terceira via não é apenas um dever dos
partidos, mas também uma oportunidade eleitoral.
Na urgente empreitada de encontrar um
candidato de centro viável e responsável, os partidos podem resgatar o aspecto essencial
de sua missão: o de intermediar a relação entre poder político e população,
aproximando-os. É precisamente esse aspecto que Luiz Inácio Lula da Silva e
Jair Bolsonaro negam aos partidos, quando os fazem vassalos de seus interesses
particulares.
Sempre, mas especialmente agora, o País
precisa dos partidos. Somente com a altiva participação das legendas, o eleitor
poderá desfrutar de um mínimo de pluralismo político que o liberte da
asfixiante disjuntiva entre Lula e Bolsonaro.
Limites do trabalho remoto
O Estado de S. Paulo
A rapidez com que muitas empresas, em acordo com seus empregados, conseguiram instituir regimes de trabalho diferenciados para reduzir os contatos pessoais e, assim, reduzir também os riscos de contágio pela covid-19, sem perda perceptível no resultado final, mostrou que o trabalho remoto pode ser uma boa solução para muitas atividades. O crescimento do home office durante a pandemia foi uma das transformações mais notáveis no mercado de trabalho em todo o mundo. Sua adoção permitiu a continuidade de uma grande variedade de serviços mesmo nos momentos mais graves da pandemia. É enganoso, porém, imaginar que seu alcance sobre as diferentes atividades humanas remuneradas continuará a crescer como se observou até agora. A grande maioria das profissões só pode ser exercida de maneira presencial.
O título de reportagem publicada pelo Estado (21/3)
é esclarecedor: Trabalho remoto não passa nem perto da maioria.
Um imenso grupo de trabalhadores não tem
como trabalhar em casa. No fim de 2019, alguns meses antes do início da crise
da covid-19, esse grupo que não pode trabalhar em regime de home office somava
79,7 milhões de pessoas, ou 86% do total de empregados no País. Na ocasião,
considerava-se que 12,9 milhões de trabalhadores (os 14% restantes) podiam
desempenhar suas tarefas a distância, de acordo com estudo da IDados ao qual a
reportagem teve acesso.
Durante o ano passado, pesquisadores do
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) acompanharam a evolução do
trabalho remoto, com base nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios (Pnad) Covid-19 que o IBGE realizou até dezembro. No dado mais
recente, de novembro, o Ipea constatou que o contingente de trabalhadores
atuando de forma remota somava 7,3% milhões de pessoas, o que correspondia a
9,1% das pessoas ocupadas e não afastadas. No mês anterior, correspondia a 9,6%
do total.
A diferença se deve a conceitos e
metodologias utilizadas em um e em outro estudo, mas ambos mostram que, mesmo
quando o home office alcançou seu porcentual mais alto durante a pandemia, mal
alcançou 10% do total de pessoas ocupadas. De fato, não chega perto da maioria
dos trabalhadores, como diz a reportagem.
O estudo do Ipea mostra, além do limite de
abrangência, o caráter diferenciado do trabalho remoto sob várias perspectivas.
Quanto à renda, por exemplo, é notório que quem trabalha em regime de home
office ganha em média mais do que os demais trabalhadores. Embora não
constituíssem 10% do total de pessoas ocupadas em novembro do ano passado, os que
trabalhavam em home office haviam recebido 17,4% da massa total de rendimentos
efetivamente gerados naquele mês.
Outra característica do trabalho remoto é
seu alto índice de formalização. Dos que trabalhavam em home office em
novembro, 84,8% tinham registro em carteira, enquanto em todo o mercado de
trabalho a informalidade alcança cerca de metade do trabalhadores.
A distribuição geográfica é outro
diferencial do trabalho remoto em relação às demais ocupações. Os trabalhadores
em home office concentram-se no Distrito Federal, em São Paulo e no Rio de
Janeiro.
O perfil traçado pelo Ipea da pessoa em
teletrabalho é predominantemente de pessoa ocupada no setor formal, com
escolaridade de nível superior completo, do sexo feminino, de cor branca e
idade entre 30 e 39 anos.
É um perfil muito diferente da média do
trabalhador brasileiro que forma quase 90% do mercado. Este ganha menos, tem
menor escolaridade, tende a estar no mercado informal, seu porcentual é maior
em regiões menos desenvolvidas e está mais sujeito aos riscos de contágio por
causa dos deslocamentos para o trabalho presencial. Suas oportunidades de
ocupação são mais escassas e seus riscos de demissão, maiores. Com o fim do
auxílio emergencial, sua renda média certamente caiu.
É essa imensa maioria do mercado de
trabalho que precisa da atenção preferencial das autoridades.
O espetáculo e a Justiça
O Estado de S. Paulo
O Estado tem o dever de investigar e punir os crimes cometidos, assim como o de prevenir e reprimir ações criminosas. A atuação estatal deve ser eficiente. Respeitando os direitos e as liberdades fundamentais, não se pode transigir com a criminalidade. No entanto, o braço repressor do Estado tem sido usado muitas vezes para criar espetáculos, como forma de constranger e ameaçar, em clara manipulação de suas finalidades.
Veja-se, por exemplo, o caso do inquérito
do Decreto dos Portos (Decreto n.º 9.048/2017), envolvendo o ex-presidente
Michel Temer. Desde o início das investigações, o caso foi alardeado como um
grande escândalo, dando como certa a ocorrência de crimes “há mais de 20 anos”.
Segundo a Procuradoria-Geral da República
(PGR), o Decreto dos Portos era apenas o “ato de ofício mais recente
identificado, na sequência de tratativas ilícitas que perduram há décadas”. No
entanto, a Justiça absolveu sumariamente todos os acusados. Vale lembrar que o
inquérito foi prorrogado diversas vezes, dando oportunidade para que se
realizassem todas as diligências necessárias para a investigação.
A sentença da Justiça Federal de Brasília é
contundente quanto à fragilidade da denúncia apresentada pela PGR. “A par de
serem inverossímeis, os fatos indicados na denúncia não se fizeram acompanhar
de elementos mínimos que os confirmassem. Não se apontou quais seriam as
vantagens indevidas recebidas ou prometidas; não se indicou como teria se dado
esse ajuste entre os denunciados; não se apontou uma única razão pela qual
terceiros iriam despender valores em favor de agente público por um período
indefinido de tempo, ausente qualquer indicação de que teria atribuição para a
prática do ato de ofício almejado. Essas informações são essenciais a qualquer
denúncia que verse sobre o suposto cometimento do crime de corrupção passiva
qualificada”, disse o juiz Marcus Vinícius Reis Bastos.
O caso do Decreto dos Portos não é único.
Observa-se um tom exagerado em muitas denúncias. A peça que marca o início do
processo penal e, portanto, deve ser extremamente rigorosa na narração dos
fatos e na avaliação jurídica dos fatos narrados tem ganhado uma nota de
hipérbole.
Parece que, depois da Lava Jato, nenhuma
peça acusatória, para ser relevante, pode denunciar apenas crimes “comuns”. Sob
essa estranha ótica, o resultado de uma investigação deveria ser sempre o
desbaratamento de uma organização criminosa, além da revelação de algum sistema
de lavagem de dinheiro. Muitas vezes, os fatos investigados são banais, mas a
denúncia atribui-lhes dimensão de um grande escândalo.
Se o único problema dessas denúncias fosse
o ridículo gerado pela discrepância de seu tom com os fatos, menos mal
causaria. No entanto, esse tratamento hiperbólico dos fatos – com a atribuição
de uma qualificação jurídica incompatível com o que se apurou na investigação –
tem facilitado a impunidade, mesmo nos casos em que há elementos altamente
comprometedores.
Tal fenômeno tem sido observado em relação
às rachadinhas parlamentares, uma prática lamentável que merece punição
rigorosa. Em vez de se basear nos fatos e na lei, promotores têm agido como se
bastasse o escândalo público para a condenação. Por exemplo, o crime de
peculato – apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer
outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo,
ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio – para se caracterizar exige mais
do que tem sido narrado em muitas denúncias.
Além de ser nefasta para a efetividade do
sistema de Justiça, a transformação dos casos em espetáculos públicos tem um
perigoso efeito colateral. Ao dar a dimensão de escândalo a toda nova operação,
a toda nova investigação, nega-se à população a possibilidade de discernir
entre o que tem fundamento e o que é apenas fumaça. Com isso, cada absolvição,
seja correta ou não, reforça na população a ideia de que a impunidade está
vencendo, que a lei é ruim e que o crime compensa. Assim, em vez de pacificar
os conflitos, o sistema de Justiça os potencializa.
A vez da Eletrobras?
Folha de S. Paulo
Senado deve aperfeiçoar texto que permite
privatização, mas é preciso celeridade
Não sem incluir dispositivos que pioram o
texto, a Câmara dos Deputados aprovou a medida provisória que autoriza
o governo a privatizar a Eletrobras. A MP segue para o Senado, que tem a
oportunidade de aperfeiçoar sua redação.
Aprovado com placar de 313 votos a 167, o
diploma garante recursos para a continuidade de patronagem política em estados
menos desenvolvidos. Ao interferir na organização do setor, pode trazer efeitos
indesejáveis, como o aumento da conta de luz.
A proposta original do governo já fora
montada para aplacar resistências políticas, sobretudo das bancadas do Norte e
do Nordeste, ao prever R$ 8,75 bilhões em dez anos para essas regiões, direcionados
à revitalização da bacia do São Francisco e dos reservatórios de Furnas e à
redução dos custos de geração na Amazônia Legal.
Tais aportes podem se justificar, apesar do
risco de má gestão que sempre acompanha intervenções desse tipo. Entretanto a
Câmara foi além e acrescentou outras exigências que interferem na regulação e
podem se mostrar ineficientes e custosas para o consumidor.
Uma das mais esdrúxulas é a exigência de
contratação de 6.000 MW de energia termelétrica, com usinas a gás natural a
serem construídas no Norte, no Nordeste e no Centro-Oeste. Como não há
infraestrutura, será preciso construí-la, e o custo irá para a conta de luz.
Abandona-se o critério de eficiência para a
localização de usinas —em prol de interesse político.
Apesar de tudo, o saldo ainda é positivo. A
proposta permite ao governo seguir com a operação de aumento de capital da
Eletrobras. Haverá emissão de novas ações, mas a União não buscará manter sua
participação na empresa, que cairá de 58,7% para cerca de 45%.
O processo deve render ao menos R$ 50
bilhões, dos quais metade irá para os cofres públicos e metade para reduzir a
tarifa de energia. A União também reterá uma classe especial de ações,
permitindo veto em temas estratégicos, e nenhum grupo poderá deter mais de 10%
do capital da hoje estatal.
A médio prazo, o governo poderá vender suas
ações remanescentes, em parte ou no todo, capturando a esperada valorização da
empresa no mercado. Ao final, o ganho com a privatização pode facilmente
superar R$ 100 bilhões.
Mesmo com balanço ainda favorável no
mérito, o Senado deveria retirar do texto os dispositivos resultantes de
demandas paroquiais, que interferem na organização do setor elétrico e impõem
custos desnecessários ao consumidor. É preciso, sobretudo, conferir celeridade
ao exame da MP, que perderá sua validade em 22 de junho.
Aborto revisitado
Folha de S. Paulo
Com maioria conservadora, Suprema Corte dos
EUA debaterá esse direito da mulher
A Suprema Corte dos Estados Unidos anunciou
que analisará um caso que pode mudar a jurisprudência no país sobre o direito
da mulher ao aborto legal. O processo trata de uma lei aprovada no Mississippi,
em 2018, que proíbe a interrupção da gravidez depois da 15ª semana de gestação.
A depender da decisão da maioria
conservadora da corte, o regramento do assunto passará a ser definido estado
por estado, e não mais em âmbito federal.
Em jogo está um direito instituído no país
há quase cinco décadas —desde o caso Roe versus Wade, de 1973. Ali se
estabeleceu a possibilidade de abortar se o feto não tiver condições de
sobreviver fora do útero (em geral até por volta da 23ª ou 24ª semana de
gestação).
Não faltam tentativas de grupos antiaborto
de provocar novamente a Suprema Corte para rever o precedente, em especial em
estados mais conservadores. Restrições nas legislações locais têm sido mais
comuns, como aconselhamento obrigatório, períodos de espera e entraves
burocráticos.
Em dois episódios recentes, a Suprema Corte
interveio em leis dessa natureza. Em junho de 2020, vetou, por 5 a 4, uma regra
da Louisiana que exigia de médicos que realizam abortos um convênio com
hospital próximo de onde trabalham.
Em outro caso, de 2016, derrubou norma do
Texas que impunha condições rígidas a médicos e clínicas de aborto no estado.
Hoje, com a nomeação pelo ex-presidente
Donald Trump da juíza Amy Coney Barrett, os conservadores contam com 6 dos 9
assentos na corte. A decisão pendente deve ser proferida apenas em meados de
2022, ano eleitoral.
Deve-se observar que, à diferença do
Supremo Tribunal Federal brasileiro, a Suprema Corte americana escolhe quais
processos aceitar. Trata-se, pois, de um movimento consciente dos juízes, com
impacto no debate político do país.
Pesquisas de opinião revelam que a maioria
dos americanos (entre 60% e 70%, a depender da sondagem) não querem que o
colegiado reverta o precedente Roe vs. Wade.
No entender desta Folha, a
interrupção da gravidez por decisão da gestante deve ser tratada sob a ótica da
saúde pública, não do direito penal. O procedimento, nas condições estabelecidas
em lei, deve ser um direito das mulheres, como se dá na maioria das democracias
mais desenvolvidas.
O Brasil faria bem em ampliar as
possibilidades de aborto legal; aos Estados Unidos conviria evitar retrocessos
nessa matéria.
Distorções revelam urgência da reforma administrativa
O Globo
Não faltam motivos para uma reforma administrativa séria. Não bastasse ser a segunda maior despesa do Orçamento, menor apenas que a Previdência, a folha do funcionalismo público apresenta distorções nos níveis salariais entre os vários Poderes. Os maiores beneficiados, segundo o último Atlas do Estado Brasileiro, do Ipea, com dados de 2019, estão nas áreas que mais costumam resistir às mudanças: Judiciário e Ministério Público.
A média salarial dessas duas categorias, segundo
o Atlas, é de R$ 12.115, enquanto no Legislativo está em R$ 6.011, e, no
Executivo, em R$ 4.026. A distorção ainda é maior no âmbito federal, em que a
média salarial das duas é R$ 15.274. No Legislativo federal, é R$ 9.438. Na
realidade, os valores são ainda maiores no topo das carreiras, porque o
levantamento não considera penduricalhos que inflam a remuneração de juízes e
procuradores, nem as benesses de deputados e senadores. “Entre as dez ocupações
mais bem pagas do serviço público brasileiro, sete são federais e nove estão no
Judiciário ou no Ministério Público”, afirma o estudo lançado com o Atlas. O
mundo desses funcionários é muito diferente do setor privado. Há férias de mais
de 30 dias, promoções baseadas apenas em tempo de serviço e muitas outras
regalias pagas pelo contribuinte. Na esfera federal, cerca de 49% dos
servidores ganham mais de R$ 15 mil, valor que os coloca com folga entre os 5%
de maior renda no país.
Pois a Proposta de Emenda Constitucional
(PEC) da reforma administrativa encaminhada pelo governo ao Congresso poupa
justamente magistrados, procuradores, promotores e parlamentares, categorias
classificadas como integrantes de outros Poderes. Pela lógica discutível do
governo, o Executivo só poderia encaminhar uma PEC restrita a seus próprios
servidores. Caberia ao Congresso tentar ampliar o alcance das mudanças.
Outra deficiência é que as mudanças valerão
apenas para servidores contratados depois da sanção da PEC. Foi, segundo o
governo, uma maneira de reduzir resistências políticas. É outro argumento
discutível, já que essa oposição existirá de qualquer forma.
A questão salarial no funcionalismo é
sempre explosiva e tem hoje no presidente Jair Bolsonaro uma barreira de
resistência, por motivos eleitorais e corporativistas. Como aconteceu na
reforma da Previdência — e como sempre ocorre quando se trata de algo que afete
militares e o pessoal de segurança pública, suas bases eleitorais.
A PEC mantém a estabilidade apenas para
carreiras consideradas típicas de Estado, um princípio até razoável. Mas será
necessário reduzir os elevados patamares iniciais dos salários no serviço
público. Pesquisa do Banco Mundial constatou que os servidores federais
brasileiros recebem em média o dobro do salário dos empregados do setor privado
em funções semelhantes. É a maior diferença encontrada na relação de 53 países
analisados.
A PEC está na Comissão de Constituição e
Justiça (CCJ) da Câmara. Para haver mudanças mesmo, elas precisam valer para
todos, em particular funcionários de Judiciário e Ministério Público. Nessa
batalha, estará em jogo a chance de o governo modernizar a administração de
pessoal e adotar práticas que permitam prestar serviços melhores aos
cidadãos.
Sociedade não pode ser conivente com a violência contra as crianças
O Globo
A morte do menino Henry Borel, de 4 anos, em 8 de março, vítima de tortura e agressões, causou comoção no país. A mãe, Monique Medeiros da Costa e Silva, e o padrasto, o vereador Jairo Souza Santos Júnior, o Dr. Jairinho, foram denunciados por homicídio triplamente qualificado e estão presos preventivamente. O casal alegou que o menino caíra da cama, mas o laudo de necropsia desfez a farsa. Apontou hemorragia interna, rompimento no fígado, contusão nos rins e no pulmão, lesões na cabeça, escoriações no nariz e hematomas no punho e no abdômen, sinais inequívocos de uma agressão monstruosa. Tão chocante quanto as muitas marcas da barbárie no corpo da criança é o fato de as sessões de tortura serem do conhecimento de várias pessoas. Pelo menos a mãe e a babá sabiam. E ninguém fez nada para salvá-lo.
Histórias como a de Henry infelizmente são
uma rotina vexatória no país. Sem distinção de classe social, crianças são
torturadas, espancadas e abusadas sob um silêncio criminoso. Menos de dois
meses depois do assassinato covarde de Henry, a menina Ketelen Vitória da
Rocha, de 6 anos, morreu depois de passar dias internada num hospital, vítima
de ferimentos graves causados por espancamento. A criança fora torturada e
agredida pela mãe e pela madrasta em sua casa de Porto Real, Sul Fluminense. As
duas estão presas. A avó tinha conhecimento das constantes agressões, que
incluíam chicotadas com o fio da TV, mas alegou medo de represália para não
denunciá-las.
Um estudo da Fundação para a Infância e
Adolescência (FIA) do Rio mostra que crianças de até seis anos são as maiores
vítimas dessas agressões (58%). Na maior parte das vezes, elas acontecem dentro
de casa. As que têm entre 7 e 11 anos representam 30%, e as de 12 a 17 anos,
12%. A violência é mais comum contra meninas (62%). Pais e padrastos são os
autores mais frequentes (40% e 20% respectivamente). Quase metade dos casos
(49%) envolve abuso sexual. Violências psicológica e física respondem, juntas,
por 40%.
De acordo com dados do Observatório da
Criança e do Adolescente da Fundação Abrinq, a situação em todo o país tem se
agravado. Em 2009, foram feitas 9 mil notificações de casos de violência contra
crianças. Em 2018, já eram 59 mil.
Muitas dessas histórias escabrosas poderiam
ter tido outro desfecho. Se quem sabia das agressões reiteradas de Jairinho a
Henry tivesse comunicado o fato à polícia, inclusive a mãe — importante dizer,
não se trata de uma opção, mas de obrigação prevista em lei —, talvez o menino
pudesse ter sido afastado do convívio com o padrasto — e isso salvaria a sua
vida.
O perfil violento do vereador era conhecido
pela ex-mulher e por ex-namoradas, cujos filhos também foram agredidos por
Jairinho, que era chamado de “monstro”. No entanto integrava o Conselho de
Ética da Câmara Municipal, de que só foi destituído após o crime. Há casos em
que o silêncio pode ser tão letal quanto uma arma. A sociedade não pode ser
cúmplice dessa barbárie que envergonha o país.
Evidências de recuperação e a sina dos voos de galinha
Valor Econômico
Os pacotes de retomada da economia lançados
pelos países ricos e a alta das commodities vão salvando o dia. Já vimos isso
antes. Não dura
Os sucessivos recordes na arrecadação
federal mostram que a economia tem sobrevivido melhor do que o esperado ao
flagelo do coronavírus. O recorde histórico de abril, R$ 156,8 bilhões, reflete
a melhora generalizada da atividade econômica, comemorou o ministro da
Economia, Paulo Guedes. O recolhimento de tributos no primeiro quadrimestre é
igualmente recorde na série iniciada em 1995.
Não faltam dados para confirmar o otimismo
do ministro. No entanto, essa demonstração de força da economia ocorre em meio
à tragédia das mortes provocadas pelo coronavírus, contadas aos milhares por
dia. É aflitivo ver a lentidão com que a população brasileira tem sido
imunizada.
No primeiro quadrimestre, as receitas com o
Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o
Lucro Líquido (CSLL) avançaram 24,75%, em termos reais, sobre igual período de
2020. Reflete maior lucratividade das empresas, avalia a Receita.
As microempresas também dão mostra de
vigor. Os recolhimentos do Simples ficaram em R$ 35,276 bilhões no
quadrimestre, 16,96% maiores, em termos nominais, do que em 2020. Outro dado:
embora tenham sido autorizadas, em abril, a adiar os recolhimentos do Simples
Nacional, apenas 23% das microempresas e dos Microempreendedores Individuais
(MEIs) usaram essa prerrogativa.
O aumento de 5,7% no valor em dólares das
importações é outro sinal de economia em aquecimento. As importações, lembra a
Receita, são principalmente de insumos para uso industrial.
A renda das pessoas físicas que pagam
Imposto de Renda também aumentou. Os recolhimentos do IRPF cresceram 41,78% na
comparação com o primeiro quadrimestre do ano passado, impulsionados por ganhos
em aplicações nas bolsas de valores, pelo recolhimento de cotas do imposto e
por ganhos apurados na venda de empresas de sua propriedade.
A movimentação em participações societárias
explica parte do aumento nas receitas do IRPF e também do IRPJ e da CSLL. Não é
possível saber, segundo a Receita, se esse dado reflete crise ou recuperação. O
fato é que essas movimentações ocorreram e pelo menos parte delas geraram ganho
de capital.
Os dados de abril refletem o estado da
economia de março. Assim, a base de comparação em 2020 ainda estava afetada
pelas medidas de isolamento social que derrubaram a atividade econômica no ano
passado. Há crescimento mesmo desconsiderando esse efeito, informa a Receita.
Os dados da arrecadação confirmam o que
bancos, corretoras e analistas já haviam visto: a economia está rodando num
patamar mais alto do que o esperado no início do ano. O governo revisou para
cima, de 3,2% para 3,5%, sua estimativa de crescimento do Produto Interno Bruto
(PIB). É uma projeção até conservadora, pois há quem calcule uma expansão na
casa dos 4%.
Ainda assim, é imperativo sublinhar: se o
processo de vacinação dos brasileiros estivesse mais avançado, a recuperação
estaria num ritmo ainda maior, mostram dados do Ministério da Economia.
Estudo divulgado esta semana pela
Secretaria de Política Econômica (SPE) da pasta mostra que há uma correlação
direta entre a quantidade de pessoas vacinadas e as perspectivas de expansão do
PIB. Quanto maior a imunização, mais forte é o crescimento.
Isso torna ainda mais graves as
constatações, feitas na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid, de
que o governo desperdiçou oportunidades de comprar vacinas em maior volume e
num calendário mais antecipado do que o que se vê agora.
A chance desperdiçada de um crescimento
mais robusto tem sido mascarada pelos sinais de uma recuperação puxada pelo
setor externo. Os pacotes de retomada da economia lançados pelos países ricos e
a alta na demanda das commodities vão mais uma vez salvando o dia. Já vimos
isso antes. Não dura.
Enquanto isso, os sinais de deterioração da estrutura econômica continuam a se mostrar. Como alertou o secretário especial de Fazenda, Bruno Funchal, a alta dos juros longos, animada pela incerteza sobre os rumos das contas públicas no país, encarece investimentos. O tempo para aprovar reformas é cada vez mais exíguo e a disposição dos congressistas para adotar medidas amargas, cada vez menor. Chances são desperdiçadas uma a uma, e assim seguimos na sequência de “voos de galinha”.
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