- Valor Econômico
Orçamento secreto inova para continuar tudo
igual
Rogério Marinho, atual ministro do
Desenvolvimento Regional, faz parte de uma linhagem da qual pertenceram
Fernando Bezerra, Ramez Tebet, Ney Suassuna, Ciro Gomes, Geddel Vieira Lima,
Mário Negromonte, Gilberto Kassab, Fernando Coelho e Helder Barbalho, entre
outros. Em comum, são políticos com forte base local e que tiveram sob suas
mãos a distribuição de verbas para a realização de obras Brasil afora. Trata-se
da árvore genealógica do novo escândalo que ronda o governo Bolsonaro: o
orçamento secreto - ou “tratoraço”, como preferem alguns.
Em qualquer lugar do mundo, político adora
uma obra pública. Seja no lançamento da pedra fundamental ou no descerramento
da placa de inauguração, não podem faltar o discurso das autoridades, a banda
de música, a entrevista para a rádio local, as fotos para as redes sociais e
aquele “banho de povo” que pode render muitos votos nas próximas eleições.
Enquanto educação, saúde e segurança são políticas públicas difíceis de serem atribuídas a um político em particular - pois resultam da cooperação entre União, Estados e municípios e apresentam resultados apenas no médio e longo prazos -, obras são entregas concretas que levam a marca de quem conseguiu os recursos em Brasília e viabilizou a construção da ponte ou do açude, o asfaltamento da estrada ou o embelezamento da praça da Matriz.
Houve uma época, nos Estados Unidos, em que
ter uma despensa cheia de carne de porco era sinal de fartura e boa situação
financeira. Daí vem a expressão “pork barrel”, usada na ciência política para
designar a prática em que políticos tentam garantir recursos para agradar suas
bases eleitorais. Assim, na discussão do Orçamento cada parlamentar tenta
“puxar a brasa para a sua sardinha” - outra expressão alimentícia que talvez
faça mais sentido em português do que o “pork barrel” dos americanos.
No Brasil, graças ao desenho da
Constituição de 1988, esse jogo se dá em três etapas: 1) o Poder Executivo
elabora a proposta de orçamento anual; 2) o Congresso Nacional a analisa,
podendo modificá-la por meio de emendas e 3) a bola retorna ao Executivo, que
executa o que foi aprovado, de acordo com a disponibilidade de dinheiro.
Dadas as características de nosso processo
orçamentário, a pesquisa sobre o presidencialismo de coalizão brasileiro sempre
atribuiu papel central a essa dimensão. Como é o presidente da República quem,
em última instância, tem a chave do cofre, decidindo como vai aplicar os
escassos recursos arrecadados, isso vira uma moeda de troca valiosa nas
negociações com deputados e senadores. Atire a primeira pedra o presidente que
nunca liberou dinheiro para a execução de emendas parlamentares nas vésperas de
votações importantes no Congresso.
A prática do “é dando que se recebe” tem
origem em tempos imemoriais - e vale aqui a indicação do clássico “Coronelismo,
Enxada e Voto”, de Victor Nunes Leal (1948). A ditadura militar ressuscitou o
Ministério do Interior, ao qual ficavam vinculadas todas as autarquias e estatais
criadas para atuar em âmbito local, como a superintendências de desenvolvimento
(Sudene, Sudam, Sudeco), o Departamento Nacional de Obras contra a Seca
(Dnocs), a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (Codevasf), os
bancos da Amazônia (Basa) e do Nordeste (BNB) e o Banco Nacional da Habitação
(BNH), entre outros.
Já na Nova República, o balcão foi
rebatizado como Ministério da Integração Regional por Itamar Franco, que o
entregou ao então senador maranhense Alexandre Costa, do antigo PFL (atual
DEM). Nos governos seguintes, os nomes mudaram - Integração Nacional,
Desenvolvimento Regional - e houve desmembramento e depois reincorporação no
Ministério das Cidades. Mas a lógica permaneceu a mesma: o governo concede a
pasta a algum partido ou cacique regional, que decide onde alocar o orçamento
para obras de infraestrutura, geralmente com fins eleitoreiros ou de barganha
legislativa. E dá resultado.
O cientista político Fernando Meireles
defendeu em 2019 uma tese de doutorado intitulada “A Política Distributiva da
Coalizão”, da qual recebeu, com justiça, menção honrosa no Prêmio Capes.
Utilizando técnicas econométricas modernas, Meireles demonstra relações de
causalidade que comprovam que: 1) prefeitos de mesmo partido dos ministros
recebem mais dinheiro público, especialmente em anos de eleição; 2) ministros
tendem a favorecer municípios de seus Estados; e, fechando o ciclo, 3)
localidades contempladas pelas políticas distributivas tendem a entregar mais
votos para seu partido nas eleições seguintes para a Câmara dos Deputados.
Como Meireles alerta em sua tese, ao
distribuir recursos orçamentários de forma estratégica, buscando conquistar
votos ou apoio no Congresso, o governo acaba criando distorções. Sem dados ou
evidências, aplica o dinheiro público nos lugares que dão maior retorno
político aos políticos que patrocinam as emendas, e não onde é realmente
necessário. E abrem as portas para a corrupção - tema que não é objeto da
pesquisa do pesquisador.
Nos tempos de vacas gordas, quando o país
crescia após o Real ou pelo “boom” das commodities, FHC e Lula construíram um
arranjo político e econômico que gerava um superávit primário de 3% do PIB ao
ano e ainda sobrava recursos para os partidos de sua base aplicarem nos seus
redutos eleitorais. Com a crise a partir de 2015, a fonte secou e os
parlamentares trataram de garantir sardinha para a sua brasa colocando na
Constituição a execução obrigatória de parte de suas emendas individuais ou
coletivas.
Com Bolsonaro, inaugura-se uma nova etapa
do “pork barrel” brasileiro. Da boca pra fora, o presidente se gaba de não ter
incluído seus ministérios no toma-lá-dá-cá com o Centrão. Entre quatro paredes,
porém, Rogério Marinho e Luiz Eduardo Ramos (Casa Civil) criaram o orçamento
secreto das emendas de relator (RP9), distribuindo bilhões a quem se dispõe a
apoiá-lo, sem transparência ou controle, facilitando a corrupção.
Tudo muda, para continuar igual.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.
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