Folha de S. Paulo
Seu dadaísmo jurídico, em vez de protestar
contra a brutalidade, chancela Bolsonaro
Augusto
Aras está para Geraldo Brindeiro como Jair Bolsonaro está para
Fernando Henrique Cardoso. Mas essa síntese não é suficiente para expressar a
magnitude do equívoco dessa comparação apressada, incompleta e benevolente.
Brindeiro foi PGR pelos oito anos do
governo FHC e se celebrizou como engavetador-geral da República. Não sem razão.
Dizia examinar as representações que lhe chegavam "com a cautela que a
matéria requer". Costumavam terminar mesmo na gaveta.
Por pressão de FHC, recuou e não pediu
intervenção federal no Espírito Santo pelo colapso de segurança pública. Miguel
Reale Jr., então ministro, demitiu-se por isso. Sua apuração sobre compra de
votos para emenda da reeleição (a "pasta rosa") e os casos contra autoridades
do governo também ilustram sua deferência.
Não foi pouco. Apesar disso, Brindeiro nunca foi inimigo do Ministério Público, nunca lutou contra a instituição a pretexto de combater o "facciosismo"; nunca perseguiu ou desqualificou colegas de MP, nunca saiu em defesa gratuita e performática do presidente, nunca disputou publicamente corrida ao STF. Nunca perseguiu críticos do presidente e de si próprio. E não tinha sobre sua mesa a delinquência de Bolsonaro.
O Senado, prestes
a reconduzir o PGR para novo mandato, precisa de um balanço que faça
justiça a Aras. Um balanço que não o diminua. A omissão de Aras, diferentemente
da de Brindeiro, requer muito trabalho (como
descrevi em outra coluna). Seu primeiro mandato foi uma enormidade.
Esses dois anos de gestão foram dedicados a
três tarefas principais: garantir tranquilidade ao bolsonarismo; implodir a
Lava Jato sem fazer as distinções que importam (entre Curitiba, Rio de Janeiro
e São Paulo; entre combate à corrupção e a corrupção do combate à corrupção);
conflagrar e definhar o MPF.
A primeira tarefa exerceu de forma tão espalhafatosa
que resultou em inéditos
escrachos públicos por ministros do STF, solicitando que faça algo, cumpra
prazos; e culminou em duas representações por crime de prevaricação feitas
por ex-subprocuradores e senadores.
A segunda, ao generalizar
os graves vícios da Lava Jato de Curitiba para as forças-tarefas de São Paulo e
Rio de Janeiro, bloqueou, abruptamente, avanços contra a corrupção. A
cúpula dos governos de SP e RJ respirou aliviada. Aproveitou a onda e desmontou
a Força Tarefa da Amazônia. À arbitrariedade do lavajatismo respondeu com mais
arbitrariedade.
A terceira tarefa é extensa. Mas pode ser
ilustrada pelas muitas manchetes que narram a guerra interna. Como esta:
"Corregedora da PGR aponta manobra de Aras para blindar aliados e
perseguir adversários". E esta: "Subprocuradores querem que MPF
oficie MEC por censura a manifestação política".
Quando se defende das críticas, Aras surfa
na hermenêutica declaratória. Autoafirmação é seu critério de legalidade. Vale
qualquer coisa que saia de sua boca ou caneta: "existe alinhamento à
Constituição", "vou me manifestar dentro do quadrado
constitucional".
Vende silogismo jurídico e entrega
dadaísmo. A premissa maior: o PGR deve obedecer a Constituição. A premissa
menor: eu sou o PGR. A conclusão: Portanto, eu obedeço a Constituição.
Inferências produzidas por fluxo de consciência, onde a lógica não entra.
Faz um dadaísmo troncho, para ficar claro.
Abraça a contradição, recusa a racionalidade e se deleita com a sonoridade das
palavras, mas ignora a parte do dadaísmo que combate a violência. Em vez do
protesto contra a brutalidade, chancela Bolsonaro.
Esse dadaísmo também produz nonsenses
ridículos. Diz, por exemplo, que Roberto
Jefferson tem liberdade de expressão para incitar e ameaçar, mas cidadão
não tem pra criticá-lo. Seu tratado sobre a liberdade nem precisa ser escrito,
pois se resume à fórmula "acho que sim, acho que não". A fórmula não
é lotérica nem jurídica. E nada ingênua.
Dia desses, citou em live corporativa o
conceito de "sociedade aberta dos intérpretes da Constituição", de
Peter Häberle. Concluiu que o MP não combina com eleições internas e listas
tríplices, mas com mérito. Afora o palavrório, parecia crer que Bolsonaro o
nomeou por mérito. A
meritocracia bolsonarista, lembre-se, deixa brasileiro morrer sem vacina e
oxigênio.
Brindeiro só não fazia. Era grave. Aras faz
muito. É incomparável.
*Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.
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