quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Pedro Cavalcanti Ferreira, Renato Fragelli Cardoso* - Carta ao Povo Brasileiro 2

Valor Econômico

A subsequente crise econômica profunda contribuiu imensamente para eleger Bolsonaro

Neste momento em que as forças democráticas precisam impedir a reeleição de Bolsonaro, Lula vem tentando construir alianças. Abaixo propomos um embrião de texto a ser usado em sua empreitada.

Brasileiros e brasileiras, venho por esta carta registrar tardiamente o mea-culpa que lhes devo há muitos anos. Começo pedindo perdão ao ex presidente FHC. O Plano Real, contra o qual o meu partido lutou acirradamente, foi um divisor de águas na história do Brasil. O fim da inflação permitiu a reorganização da economia, bem como iniciou a reversão da desigualdade de renda. FHC implantou reformas econômicas estruturais que muito beneficiaram governos futuros como o meu. E poderia ter feito muito mais, se não tivesse sofrido a aguerrida oposição do meu partido. O PT opôs-se às privatizações por puro oportunismo, pois os funcionários de empresas estatais constituíam parcela importante de nossa base eleitoral.

Hoje reconheço que o Estado não deve ter empresas. Numa democracia presidencialista multipartidária como a brasileira, o presidente tem muita dificuldade em formar uma maioria parlamentar estável capaz de aprovar sua agenda no Congresso. Inicialmente, contornei essa dificuldade implantando a negociação direta de votos, mas o esquema veio à tona sob a alcunha de Mensalão. Depois distribuí cargos federais entre os partidos aliados. O resultado foi o escândalo do Petrolão. Enquanto houver empresas estatais será impossível impedir que elas sejam saqueadas pela volúpia dos políticos.

Nós nos opusemos à reforma da previdência de FHC também por puro oportunismo. Num país em que as classes média e alta se aposentavam precocemente por Tempo de Contribuição, enquanto os pobres se aposentavam por idade aos 65 anos, a reforma claramente reduzia desigualdades. Mas meu partido manteve o discurso da retirada de direitos sociais para subtrair votos de nossos adversários. E para não desagradar nossa base de apoio, como servidores públicos e a elite sindical, beneficiada com condições de aposentadoria muito superiores à da massa trabalhadora.

Em 1999, logo após o Brasil ter sido forçado pelos mercados a deixar o real flutuar, houve uma maxi desvalorização de 50%. Meu partido, por intermédio de nossos satélites - CUT e MST -, apoiou a campanha golpista “Fora FHC” destinada a destituir um presidente reeleito em primeiro turno havia apenas quatro meses. Também lutou contra a Lei de Responsabilidade Fiscal, uma reforma fundamental que disciplinou as finanças de estados e municípios.

Em 2002, quando minha candidatura decolou nas pesquisas, o dólar disparou de R$ 2 para R$ 4, provocando uma abrupta elevação da inflação. Como estratégia eleitoral, atribuí a culpa daquela alta à política econômica de FHC. Na realidade, a culpa era somente minha e do meu partido, pois durante décadas nós havíamos defendido o repúdio da dívida pública que cinicamente dizíamos pertencer aos banqueiros. Quando os investidores perceberam que eu seria eleito presidente, eles venderam os títulos da dívida e compraram dólares, provocando a maxi desvalorização.

Em 2003, para reduzir a inflação era necessário reverter a desvalorização cambial, o que exigia sinalizar aos investidores que o PT adotaria um política econômica responsável. Meu governo aumentou o superávit primário e manteve a taxa de juros elevada, o que gerou temporariamente uma inevitável recessão. Nós adotamos - aliás, intensificamos - a mesma política econômica de FHC que tanto havíamos criticado quando éramos oposição. No entanto, no intuito de desviar de nós o desgaste daquelas medidas, cunhei a matreira narrativa da “herança maldita” deixada por FHC. Na realidade, tratava-se de uma herança bendita, pois herdamos um superávit primário de 3% do PIB, além das excelentes reformas tão combatidas pelo meu partido.

Reconheço também que, logo no início de meu governo, o PSDB cooperou muito conosco, apoiando as propostas econômicas enviadas pelo meu ministro Pallocci. Muitas delas eram meras atualizações de propostas que FHC não havia conseguido implantar, devido à oposição do meu partido. Quando estourou o escândalo do Mensalão, muitos queriam o meu impeachment, mas o então ex presidente FHC desarmou aquele movimento. Hoje reconheço mais essa generosidade dele.

Após minha reeleição, graças ao boom de commodities e às reformas econômicas minhas e de FHC, o Brasil crescia aceleradamente. A economia ia tão bem que havia dinheiro para dar a todos os grupos: aos pobres com o Bolsa Família, aos empresários via subsídios do BNDES, aos funcionários públicos com aumentos generosos de salários e aos artistas com a Lei Rouanet. Foi então que adotei o discurso do “nunca antes na história deste país”. Na realidade, o que havia de realmente novo era a magnitude do boom de commodities.

Em 2009, diante da descoberta do pré-sal, modifiquei o marco regulatório do petróleo, ampliando a participação da Petrobras na exploração, bem como decidi recriar a indústria naval, num programa fortemente protecionista e subsidiado. Durante os cinco anos seguintes, período em que o preço do petróleo estava altíssimo, a ANP não promoveu nenhum leilão. Aquele projeto nacionalista revelou-se um desastre para o país, com prejuízo de bilhões de dólares. A recriação da indústria naval, como sabemos, não funcionou e esta desapareceu mais uma vez quando os subsídios foram interrompidos.

Finalmente, devo reconhecer meu erro ao escolher Dilma minha sucessora. Uma neófita em política, sua gestão econômica altamente intervencionista desorganizou a economia, trazendo alta da inflação e atrofia na geração de empregos. Em 2014, mesmo com a economia já estagnada e a inflação artificialmente controlada pela contenção dos preços de combustíveis, trabalhei para elegê-la novamente. A subsequente crise econômica profunda contribuiu imensamente para eleger Bolsonaro.

Termino esta carta explicando que, por orientação de meus advogados, não abordei nenhum dos temas que levaram à minha condenação pelo juiz Sergio Moro e na segunda instância, pois qualquer informação aqui registrada poderia comprometer a estratégia de defesa a ser adotada no novo processo que correrá na vara de Brasília.

*Pedro Cavalcanti Ferreira é professor da EPGE-FGV e diretor da FGV Crescimento e Desenvolvimento
Renato Fragelli Cardoso é professor da Escola Brasileira de Economia e Finanças (EPGE-FGV)

 

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