Valor Econômico
O que ameaça o presidente é a inédita
unidade do Judiciário
A mobilização em redes sociais contra o
Judiciário na Polônia partiu de dentro do gabinete do ministro da Justiça, que
também é procurador-geral da República. O governo gastou € 40 milhões na
manutenção de contas de notícias falsas contra juízes e tribunais.
Na Hungria juízes foram forçados a
renunciar e o regime fez 1284 nomeações políticas. Aqueles que permaneceram em
suas funções tiveram sua autonomia confrontada.
Na Turquia 4,5 mil juízes foram presos nos
últimos cinco anos. Centenas ainda estão detidos. Seus bens foram espoliados. A
Associação Europeia de Magistrados criou um fundo de ajuda humanitária que
distribui € 900 para que as famílias de magistrados possam sobreviver ou deixar
o país como refugiadas.
Presidente da Associação Europeia de
Juízes, José Igreja Matos, desembargador na cidade do Porto, deixou a
magistratura brasileira de orelha em pé ao relatar esses casos, em conferência
virtual na semana passada.
O presidente Jair Bolsonaro não foi citado
uma única vez, mas pressupôs-se ali que aqueles três países não eram casos
isolados ante o avanço do populismo autoritário no mundo, em grande parte, sob
lideranças eleitas. A independência da magistratura, nos últimos cinco anos,
segundo Igreja Matos, que assumirá a União Internacional dos Juízes em
setembro, foi mitigada em 72% dos países. Não bastassem os populistas,
sobreveio a pandemia.
Sua audiência era composta de ministros do
STJ, presidentes de tribunais federais e estaduais, desembargadores e juízes.
Se nas gerações mais novas, o bolsonarismo um dia teve adeptos, como o ex-juiz
Sergio Moro já mostrou, este encanto não apenas se quebrou como se transformou
em medo.
Entre relatos colhidos na audiência, prevalece o temor, se não de uma situação radicalizada, como na Turquia, de uma afronta tanto ao Estado de direito quanto à corporação e suas prerrogativas. Não apenas em decorrência da escalada autoritária como do próprio risco de falência do país e seus desdobramentos para o custeio do Estado e de suas instituições.
Bolsonaro uniu o Judiciário de cima a baixo
contra si. Não se aceita mediação do Congresso simplesmente porque esta
pressupõe algum grau de confiança, hoje inexistente. Por isso, o encontro do
presidente do STF, Luiz Fux, com o ministro Ciro Nogueira, terá saído no lucro
se o café tiver sido servido quente.
Este embate estende-se ao conjunto da
magistratura. No Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, há duas vagas que a
Corte decidiu não preencher. Uma delas está aberta desde 2019. A confecção de
uma lista a basear a indicação passaria por uma solução compromissada com
Bolsonaro que, nem mesmo naquela Corte, existe mais. Ninguém está a fim de ser
indicado por um presidente que enfia o dedo no olho dos juízes.
Os aliados com que contava, vê-se agora,
estavam pendurados na vaga do Supremo Tribunal Federal que, alocada para um
escolhido de fora do STJ, fez ruir seu apoio pontual. Já há quem prefira
esperar pelo eleito em 2022 para definir a lista. Nos tribunais federais
acontece a mesma coisa. Como se faltassem sinais de que Bolsonaro já não
governa, eis que surge mais um.
Num andar acima, a situação do presidente é
de isolamento crescente. Nunca houve divisão no Supremo Tribunal Federal em
relação à decisão do ministro Alexandre de Moraes que mandou prender o
presidente do PTB, Roberto Jefferson.
A mesma Corte que anulou a operação da
Fecomercio, sob a alegação de que Marcelo Bretas não era o juiz competente do
caso, acata a prisão, por um ministro do Supremo, de um réu que não tem foro
privilegiado. O que está em jogo é a afronta, inclusive com ameaça física, ao
Estado de direito. Por isso, se, em outros tempos, alguém levantaria a mão para
arguir, hoje a Corte está de porteira fechada com Moraes.
Esta unidade do Judiciário é letal para
Bolsonaro. Se a ex-presidente Dilma Rousseff se submeteu a um processo
inteiramente conduzido pela política, o caso de Bolsonaro não se resolve no
Congresso. Pela simples razão de que ele entregou o Orçamento para o Centrão
executar.
Vem daí a concentração de torpedos em cima
do Judiciário. É o único poder que o ameaça. São duas, em resumo, as fontes de
preocupação do presidente. A primeira são as ações que tramitam no STF, a cargo
do ministro Alexandre de Moraes, sobre a atuação das redes de notícias falsas
bolsonaristas.
Este inquérito depende do indolente
procurador-geral da República para se transformar numa denúncia, mas o
compartilhamento de suas provas já foi requerido pelo Tribunal Superior Eleitoral.
Lá tramitam ações que apuram a falsificação de perfis para a difusão de
propaganda eleitoral fraudulenta da chapa Jair Bolsonaro-Hamilton Mourão. Feito
o compartilhamento, essas ações não demorarão a ir ao plenário do TSE
arriscando a cassação - da chapa inteira.
Outro inquérito é aquele pedido pelo
ministro Luis Felipe Salomão, corregedor do tribunal, que apura possíveis
crimes de abuso de poder político e econômico nos ataques contra as urnas
eletrônicas e a legitimidade das eleições de 2022. Este pode resultar na
inelegibilidade do presidente.
Um desdobramento deste inquérito foi o
pedido de suspensão dos repasses feitos pelas plataformas Facebook, Instagram,
YouTube, Twitter e Twitch TV a 12 perfis registrados nessas redes. Como essas
contas tiveram o sigilo quebrado, a intenção é cruzar a movimentação bancária
com os repasses das plataformas.
Havendo discrepância esta pode vir a ser
creditada à lavagem de dinheiro, ou, para usar a terminologia da era Bolsonaro,
a “rachadinhas”. Recursos de origem ilícita seriam creditados nas contas
bolsonaristas para serem divididos entre os “provedores” desses recursos e os
influenciadores digitais.
Esses julgamentos podem comprometer não
apenas o presidente como seus filhos. Ainda mexe os peões da política dentro e
fora do Congresso. No caso da cassação de chapa, é o presidente da Câmara quem
assume e chama eleições em até três meses. No caso da inelegibilidade, os anões
da terceira via passarão a disputar o polo oposto ao do ex-presidente Luiz
Inácio Lula da Silva.
A resolução, via TSE, padece do déficit de
legitimidade de uma decisão tomada por sete juízes, ao contrário do
impeachment, decidido pelo voto de 308 deputados federais. O próprio Bolsonaro,
porém, se encarrega de resolver o problema. Sua desaprovação, pela pesquisa
Ipespe/XP, chegou a 63% dos brasileiros, um recorde. Até aqui.
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