Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
O brasileiro esquece com facilidade as
injúrias, as patifarias antissociais, as agressões ao próprio direito de ser
representando no processo político
O período do governo Bolsonaro tem servido
como uma espécie de período experimental de conhecimento das novas fragilidades
do processo político no Brasil. Não só pelos constantes desafios a valores,
costumes e regras da própria ciência no que diz respeito à gestão política do
país, mas também pelas reiteradas ações de desconstrução das instituições.
É um governo interessante como cobaia da
curiosidade científica a respeito da vulnerabilidade da ordem social e
política. Muita coisa será aprendida até o final do ano e o final do governo
para que os partidos democráticos possam se reorganizar e possam definir e
empreender as profundas reformas políticas de que o país carece. Para que não
recaia nas armadilhas da improvisação, do amadorismo e do autoritarismo
embutido nas estruturas fundamentais do Estado brasileiro.
O novo governo chegou aparelhado por agentes de mentalidades exóticas, grupos extraoficiais de poder, invasivos, impunes e dotados de suficiente ousadia para desmontar o Estado e fragilizar a consciência crítica própria de uma sociedade que com dificuldade tem construído sua democracia.
Um de seus aspectos mais problemáticos é o
de que é ele um governo que inclui em suas ações a meta implícita de reduzir a
durabilidade da memória política, de modo a atenuar o que nela possa gerar o
julgamento de seus atos contrários ao bem comum.
Uma indicação da anomalia, que marca este
momento da história política brasileira, é o da diferença de duração das
lembranças da tragédia da gripe espanhola, de 1918, na mesma geração de sua
ocorrência, em comparação com a curta durabilidade da memória da pandemia de
covid-19, antes mesmo de acabar. Apesar dos indícios de que dois terços dos que
morreram poderiam ter sobrevivido, se providências de governo tivessem sido as
recomendadas pela ciência e tomadas com a prontidão própria de uma operação de
guerra pela vida.
Apesar de termos tido um general no
Ministério da Saúde e termos um capitão na Presidência da República, a
incapacidade para tomar as medidas adequadas no tempo adequado não tem
repercutido duradouramente na memória da população. As pesquisas sugerem que a
consciência popular, aparentemente, foi amansada em favor dos responsáveis
pelos erros cometidos.
A política depende muito da memória social
dos acontecimentos propriamente políticos, como esses que trouxeram dor e luto
a centenas de milhares de pessoas e medo e apreensão a milhões de outras.
Desde a conspiração que antecedeu as
eleições de 2018 não tem havido um único dia sem notórios retrocessos na
democracia brasileira. O Estado brasileiro está infiltrado por agentes
subversivos do retrocesso, empenhados em apagar a memória do que somos e das
lembranças de nossas possibilidades como povo.
Uma das armadilhas tem sido a de reinventar
a história social e política e recontá-la na perspectiva dos ligeirismos da
sociedade de consumo e das coisas e realidades descartáveis. Entre as
consequências está o empenho em refazer a consciência social para definir o
povo como agente secundário da história, agente descartável, e dela um sujeito
politicamente mínimo.
Um dos resultados antidemocráticos desse
crime de lesa-pátria é o do surgimento de uma temporalidade pós-moderna da
memória política, decorrente de uma engenharia de limitação de sua
durabilidade.
Estamos vivendo o momento decisivo em que
essa memória ou manifesta sua consistência ou sua fragilidade. O quanto
irregularidades que ferem a sensibilidade da consciência popular deixaram ou
não marcas que definirão acatamento ou repúdio. O que perdura daquilo que em
certo momento a população definiu como acerto ou aquilo que definiu como erro.
O que deve ser lembrado ou esquecido.
Já se vê os indícios do que se salvou desse
peneiramento. E vamos descobrindo que o brasileiro esquece com facilidade as
injúrias, as patifarias antissociais, as agressões ao próprio direito de ser
representando no processo político. Esse período tem sido um período de
verdadeira provação para o povo brasileiro. As imensas e fatais agressões e
omissões durante o período da pandemia, a mutilação da cidadania, a demolição
das instituições, o desafio cotidiano à constituição e às leis. Tudo vai sendo
esquecido como indicam as evidências das percepções eleitorais.
Mas há entre nós a característica cultural
da memória profunda, de dinâmica mais lenta do que a da eficácia superficial de
resultados da tecnologia de manipulação da consciência social.
Ela tem emergido ao longo da história
brasileira e está reemergindo agora, expressão do inaceitável. A consciência
das necessidades sociais que só podem ser saciadas com a ruptura e a superação.
*José de Souza Martins é
sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da
Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall
(1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras.
Entre outros livros, é autor de "Sociologia do desconhecimento ensaios
sobre a incerteza do instante" (Editora Unesp, 2021).
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